31 de dezembro de 2008
Meus Durant
Desconfiem sempre de uma biblioteca bem arrumada repleta de livros bem cuidados. Desconfie de quem não risca livros, não sublinha, não escreve nas suas margens nem os dobra e mesmo os mancha com um dedo engordurado de quem lê na cozinha, enquanto come alguma coisa pelas madrugadas. Meus livros, pelo menos os mais queridos e aqueles aos quais eu devoto um maior apego, estão todos marcados, usados e com partes destacadas. É evidente que uma biblioteca bem cuidada e cheia de livros novos pode ser bonita e até decorativa. Eu, porém, prefiro aquelas que têm ácaros, traças, riscos, livros surrados, marcados e que se amontoam ao meu redor, transmitindo a certeza de uma presença constante que forma pontes no tempo e no espaço, sem que seja preciso mais que o gesto de folhear uma página.
29 de dezembro de 2008
Will Durant (1885-1981)
Conquista da minha bibliteca poder contar com todos os volumes da monumental A História da Civilização, obra escrita em co-autoria com Ariel Durant, sua mulher. Durant não é, todavia, muito bem visto junto aos acadêmicos, uma vez que ousou escrever com simplicidade sobre história e sobre filosofia, mas, diga-se, não sem profundidade. De seu texto, colhe-se o respeito e o entusiasmo que contagiam, conferindo ao leitor uma visão geral bastante sintética de todos os povos nas respectivas épocas.
Uma Descarada Admiração por Heróis
Dos muitos ideais que na juventude deram à vida um sentido e um brilho que faltam às perspectivas arrepiantes da meia-idade, pelo menos um permeneceu comigo tão luminoso e satisfatório como sempre fora -- a admiração descarada dos heróis. Numa era que a tudo nivelaria e a nada adoraria, eu me ponho ao lado do Carlyle vitoriano, e acendo minhas velas, como Mirandola diante da imagem de Platão, no santuário dos grandes homens.Eu digo "descarada", porque sei o quão fora de moda é, agora, reconhecer na vida ou na história qualquer gênio mais sublime que o nosso. Nosso dogma democrático pôs num mesmo patamar não somente todos os votantes, mas também todos os líderes; deliciamo-nos em mostrar que os gênios que vivem são apenas medíocres, e que os já mortos são mitos.Se pudermos acreditar em Mr. Wells, Cesar era um imbecil e Napoleão um idiota. E já que é contrário às boas maneiras exaltarmos a nós mesmos, chegamos ao mesmo resultado por meio da indicação maliciosa de o quão inferiores são os grandes homens da terra. Em alguns de nós, talvez, trata-se de um nobre e cruel ascetismo, que arrancaria de nossos corações o último vestígio de admiração e adoração, receando que os velhos deuses voltassem para nos aterrorizar mais uma vez.De minha parte, eu me agarro a esta religião final, e descubro nela um conteúdo e um estímulo mais duradouro do que aquele que vinha dos êxtases devocionais da juventude. Quão natural parecia cumprimentar Rabindranath Tagore por aquele título que por tanto tempo lhe foi dado por seus compatriotas, Gurudeva -- "Mestre Reverenciado". Pois por que razão deveríamos nos colocar em veneração diante de cachoeiras e topos de montanha, ou uma lua estival sobre um mar tranqüilo, e não diante do maior de todos os milagres -- um homem que é ao mesmo tempo grandioso e bom? Tantos de nós somos meros talentos, crianças espertas no jogo da vida, que quando um gênio se levanta em nossa presença, nós podemos apenas nos curvar à sua frente como a uma obra de Deus, um prosseguimento da criação. Tais homens são a própria vida e o sangue da história, para os quais a política e a indústria não passam de moldura e ossos.Causa parcial do academicismo árido do qual estávamos sofrendo quando James Harvey Robinson nos convocou a humanizar nosso conhecimento foi a concepção da história como um fluxo impessoal de figuras e "fatos", no qual o gênio exercia um papel tão pouco essencial que os historiadores se orgulhavam de ignorá-los. Deveu-se a Marx, acima de tudo, essa teoria da história; ela estava amarrada a uma visão da vida que desconfiava do homem excepcional, invejava o talento superior, e exaltava os humildes como os herdeiros da terra. No fim, os homens começaram a escrever a história como se ela jamais tivesse sido vivida, como se nenhum drama jamais tivesse passado por ela, nenhuma comédia ou tragédia de homens em luta ou frustrados. As vívidas narrativas de Gibbon e Taine deram lugar a montes de cinzas feitas com uma erudição irrelevante na qual todos os fatos estavam corretos, documentados e mortos.Não, a história verdadeira do homem não está em preços e salários, nem em eleições e batalhas, nem nas tendências rasas do homem comum; está nas contribuições duradouras feitas pelos gênios ao conjunto da civilização humana e da cultura. A história da França não é, se é possível dizer isso com toda a cortesia, a história do povo francês; a história daqueles homens e mulheres anônimos que cultivavam a terra, consertavam os sapatos, cortavam a roupa e vendiam as mercadorias (pois tais coiss tem sido feitas sempre e em todos os lugares) -- a história da França é o registro de seus homens e mulheres excepcionais, seus inventores, cientistas, estadistas, poetas, artistas, músicos, filósofos e santos, e os acréscimos que eles fizeram à tecnologia e à sabedoria, às artes e à decência, do seu povo e da espécie humana. E assim com todo país, assim com o mundo; sua história é propriamente a história de seus grandes homens. Que somos o resto de nós senão tijolos e argamassa dóceis em suas mãos, para que eles possam fazer uma raça um pouco melhor que nós mesmos? Portanto, eu vejo a história não como um cenário triste de político e carnificina, mas como o esforço do homem -- por meio do gênio -- contra a inércia obstinada da matéria e o mistério atordoante da mente; o esforço para compreender, controla e reconstruir a si próprio e ao mundo.Vejo homens de pé à beira do conhecimento, e segurando a luz uma pouco mais além; homens esculpindo o mármore em formas enobrecedoras; homens moldando povos em instrumentos melhores de grandeza; homens criando uma línguagem da música e uma música da linguagem; homens sonhando com vidas melhores, e vivendo-as. Eis um processo de criação mais vívido que em qualquer mito, uma divindade mais real que em qualquer credo.Contemplar tais homens, nos insinuarmos pelo estudo em algum modesto discipulado em relação a eles, observá-los em seu trabalho e nos aquecermos no fogo que os consome -- isto é recapturar um pouco da emoção que a juventude nos dava quando pensávamos, no altar ou no confessionário, que estávamos a tocar ou a ouvir Deus.Nessa juventude sonhadora nós acreditamos que a vida era má, e que somente a morte poderia nos conduzir ao paraíso. Estávamos errados; mesmo agora -- enquanto vivemos -- podemos entrar nele. Cada grande livro, cada trabalho de arte reveladora, cada registro de uma vida devotada é um chamado e um "Abre-te, sésamo" para os Campos Elísios.Extinguimos cedo demais a chama de nossa esperança e nossa reverência. Mudemos os ícones, e acendamos as velas mais uma vez.
Will Durant
Will Durant
28 de dezembro de 2008
AS CARTAS XIII
Carta de Francisco para Maria de algum dia de agosto de 1924.
Maria,
Penso que foi para a sensação de receber flores que eu adoeci, tanto elas me satisfizeram. E nem tenho já quase vontade de restabelecer-me!... As primeiras violetas, as outras... Elas tomam quase sempre a forma das tuas carícias, quando as toco e quando as olho, e sinto-as com pura volúpia... Mas é um gozo triste, um gozo com sabor amargo de lágrimas, porque as violetas são tristes, e são tristes os seus longos olhos de melancólicas pupilas. São tristes como a morte...
Talvez, infelizmente, elas me ofereçam um símbolo... No destino de cada criatura, para seu sofrer eterno ou para sua eterna alegria, existe uma lágrima, a última, a que não nos é dado conhecer, que já se abeira do túmulo, e dele nos traz a amável sensação de alívio. E são certas flores as portadoras da forma visível desse fim, provocando, assim, nas criaturas, determinadas emoções reveladoras da sua proximidade. E, eu creio, a violeta é uma dessas flores predestinadas.
Mas, não filosofemos. Sejamos mais sábios. Falemos um pouco de ti. Que tens feito? E a minha ausência? Pouco te faz sofrer, não é? Ainda bem. Eu, entretanto, longe de ti, não sinto a vida. Trago, a queimar-me o peito, uma grande saudade do meu amor. É que eu te amo mais que a mim próprio. Coloquei o universo dentro do teu ser, e só por ele vivo e palpito. Encontrei, no mundo, a minha “pedra luminosa”... Na extinção da sua luz está a extinção da minha vida. E és tu a guardadora dessa minha pedra... Está nas tuas mãos, pois, a minha vida, a vida do teu,
para o sempre,
Francisco
Maria,
Penso que foi para a sensação de receber flores que eu adoeci, tanto elas me satisfizeram. E nem tenho já quase vontade de restabelecer-me!... As primeiras violetas, as outras... Elas tomam quase sempre a forma das tuas carícias, quando as toco e quando as olho, e sinto-as com pura volúpia... Mas é um gozo triste, um gozo com sabor amargo de lágrimas, porque as violetas são tristes, e são tristes os seus longos olhos de melancólicas pupilas. São tristes como a morte...
Talvez, infelizmente, elas me ofereçam um símbolo... No destino de cada criatura, para seu sofrer eterno ou para sua eterna alegria, existe uma lágrima, a última, a que não nos é dado conhecer, que já se abeira do túmulo, e dele nos traz a amável sensação de alívio. E são certas flores as portadoras da forma visível desse fim, provocando, assim, nas criaturas, determinadas emoções reveladoras da sua proximidade. E, eu creio, a violeta é uma dessas flores predestinadas.
Mas, não filosofemos. Sejamos mais sábios. Falemos um pouco de ti. Que tens feito? E a minha ausência? Pouco te faz sofrer, não é? Ainda bem. Eu, entretanto, longe de ti, não sinto a vida. Trago, a queimar-me o peito, uma grande saudade do meu amor. É que eu te amo mais que a mim próprio. Coloquei o universo dentro do teu ser, e só por ele vivo e palpito. Encontrei, no mundo, a minha “pedra luminosa”... Na extinção da sua luz está a extinção da minha vida. E és tu a guardadora dessa minha pedra... Está nas tuas mãos, pois, a minha vida, a vida do teu,
para o sempre,
Francisco
25 de dezembro de 2008
AS CARTAS XII
Carta de Francisco para Maria de 1º de agosto de 1924.
Maria,
Perdoa-me os versos que hoje te mando. Eu vivi contigo dentro da tua velha casa. Tu partiste; eu fiquei. Ficaram comigo a tua imagem e a saudade, que acorda dentro de mim a imagem da vida que lá vivemos.
A nossa velha casa... Ela era grande, mas para mim se resumia, apenas, no aposento onde tu pensavas no teu amor, sozinha com ele, perfumando-o de carícias.
O teu aposento era pequenino e lindo. Tinha um ar estranho de mistério e sensualidade. Evocava-me, não sei por que, em originais e suaves mutações, cenas febris do Oriente e a vida límpida e pacífica dos santos.
A um canto, sobre um tapete persa, repousava um divã cor de trevo. Era esse o teu recanto predileto.
− É o templo da preguiça e dos sonhos, tu me dizias, sorrindo.
E o teu sorriso, de súbito, abria um reflexo de luz na sala toda e alumiava a minha alma.
O piano, ao longo da parede, punha uma nota solene na melancolia do aposento.
À noite, depois do chá, mal acabavam de soar, no relógio da Igreja, as badaladas das dez horas, tu te sentavas ao piano. E logo, os primeiros acordes da Cathedral Engloutie começavam espaçados, sonolentos, envoltos em sombra, a arrancar pedaços de alma...
Bem me lembro de tudo isso... Eras muito religiosa também. Junto a uma janela, colocaste um oratório, com a imagem de Santa Teresa do Menino Jesus, e uma chama de amor e de fé, a crepitar.
Tinhas uma devoção especial por essa Santa. Recordo que, uma vez, eu fui te encontrar de joelhos em frente dela, numa atitude de êxtase, e uma imploração no olhar. Sorriste, confusa, ao ver-me. E depois, cheia de pudor, a cabeça deitada no meu ombro, confessaste-me o teu pedido: a graça de não acontecer uma coisa que temias... Depois, choraste muito, e eu chorei também... Ficamos os dois, longo tempo, a chorar, ingenuamente, sem saber por que, quase sem querer...
Tudo isso na velha casa... Como eu me lembro!... E como é bom lembrar!... como é bom evocar o tempo que passou, o nosso tempo, aquele tempo... Recordar, ressentir o que ficou lá longe, perdido... Velhas sensações que nos despertam novas... Frangalhos de nós mesmos deixados ao longo do tempo... O passado... Bastante razão tem Henri Bataille: o passado é um segundo coração que bate em nós...
Um grande pensamento
do teu
Francisco
Maria,
Perdoa-me os versos que hoje te mando. Eu vivi contigo dentro da tua velha casa. Tu partiste; eu fiquei. Ficaram comigo a tua imagem e a saudade, que acorda dentro de mim a imagem da vida que lá vivemos.
A nossa velha casa... Ela era grande, mas para mim se resumia, apenas, no aposento onde tu pensavas no teu amor, sozinha com ele, perfumando-o de carícias.
O teu aposento era pequenino e lindo. Tinha um ar estranho de mistério e sensualidade. Evocava-me, não sei por que, em originais e suaves mutações, cenas febris do Oriente e a vida límpida e pacífica dos santos.
A um canto, sobre um tapete persa, repousava um divã cor de trevo. Era esse o teu recanto predileto.
− É o templo da preguiça e dos sonhos, tu me dizias, sorrindo.
E o teu sorriso, de súbito, abria um reflexo de luz na sala toda e alumiava a minha alma.
O piano, ao longo da parede, punha uma nota solene na melancolia do aposento.
À noite, depois do chá, mal acabavam de soar, no relógio da Igreja, as badaladas das dez horas, tu te sentavas ao piano. E logo, os primeiros acordes da Cathedral Engloutie começavam espaçados, sonolentos, envoltos em sombra, a arrancar pedaços de alma...
Bem me lembro de tudo isso... Eras muito religiosa também. Junto a uma janela, colocaste um oratório, com a imagem de Santa Teresa do Menino Jesus, e uma chama de amor e de fé, a crepitar.
Tinhas uma devoção especial por essa Santa. Recordo que, uma vez, eu fui te encontrar de joelhos em frente dela, numa atitude de êxtase, e uma imploração no olhar. Sorriste, confusa, ao ver-me. E depois, cheia de pudor, a cabeça deitada no meu ombro, confessaste-me o teu pedido: a graça de não acontecer uma coisa que temias... Depois, choraste muito, e eu chorei também... Ficamos os dois, longo tempo, a chorar, ingenuamente, sem saber por que, quase sem querer...
Tudo isso na velha casa... Como eu me lembro!... E como é bom lembrar!... como é bom evocar o tempo que passou, o nosso tempo, aquele tempo... Recordar, ressentir o que ficou lá longe, perdido... Velhas sensações que nos despertam novas... Frangalhos de nós mesmos deixados ao longo do tempo... O passado... Bastante razão tem Henri Bataille: o passado é um segundo coração que bate em nós...
Um grande pensamento
do teu
Francisco
Da condição das mulheres nos diversos governos
Nos estados despóticos, as mulheres não introduzem o luxo. Elas próprias são um objeto de luxo. Elas devem ser extremamente submissas.
(pg. 111)
(pg. 111)
21 de dezembro de 2008
Nós, Déspotas.
Despotismo é uma tendência e talvez mesmo um componente nosso. É humano, integra o homem sempre que ele se vê desfrutando de um poder qualquer. Poder também é um tipo de paixão exercida de múltiplas formas, de acordo com cada governante, desde o reizinho do asteróide do Pequeno Príncipe até as crianças diante dos insetos, e os Napoleões, e os Alexandres, e os Césares e os Sesóstris. Amorfos, porém, escapam disso. Amorfos nunca são despóticos, por exemplo. Mas a maioria de nós o é, numa ou noutra fase da vida, seja manejando exército de soldadinhos de chumbo, seja dirigindo uma empresa, seja fantasiando o cachorro de Papai Noel e conferindo-lhe humanidade, seja mesmo se colocando como guia, exemplo, guru ou proprietário de verdades reveladas.
Todos nós temos, enfim, nossos momentos de déspota, de roubar cenas e brilhar no cenário da vida. Alguns se viciam nisso, e sentem-se insultados quando não são reconhecidos como tais, ou quando o seu fascínio falha, e percebe-se então que o rei sempre esteve nu, porque a realeza passa, a beleza passa, o poder passa e mesmo as verdades mudam quando convém.
Felizmente, não somos sempre os mesmos ao longo do tempo. E até as paixões e mesmo o poder deixam de fascinar um dia, e se acabam, mudam de rumo ou sofrem desvios, viram rotina e acomodação, sofrem desgastes. E no final, — no tão esperado e temido THE END que já está escrito na história de todos nós, — seremos igualados mediante o império da mais democrática das revoluções que é a própria Morte. Essa sim, induvidosamente, nos vai igualar a todos, por mais ostensivo ou simplório que seja o túmulo: pirâmide, lápide ou vala comum.
Todos nós temos, enfim, nossos momentos de déspota, de roubar cenas e brilhar no cenário da vida. Alguns se viciam nisso, e sentem-se insultados quando não são reconhecidos como tais, ou quando o seu fascínio falha, e percebe-se então que o rei sempre esteve nu, porque a realeza passa, a beleza passa, o poder passa e mesmo as verdades mudam quando convém.
Felizmente, não somos sempre os mesmos ao longo do tempo. E até as paixões e mesmo o poder deixam de fascinar um dia, e se acabam, mudam de rumo ou sofrem desvios, viram rotina e acomodação, sofrem desgastes. E no final, — no tão esperado e temido THE END que já está escrito na história de todos nós, — seremos igualados mediante o império da mais democrática das revoluções que é a própria Morte. Essa sim, induvidosamente, nos vai igualar a todos, por mais ostensivo ou simplório que seja o túmulo: pirâmide, lápide ou vala comum.
Rotinas
O tédio e a mesmice são um culto que se pratica perpetuando hábitos, porque isso nos torna mais úteis e mais eficientes na linha de produção que é a vida social, corrente de repetições mecânicas que amarra o homem às tradições de seu grupo, incluindo-o nele, integrando-o, fazendo-o agir como seus ancestrais. Nisso entra até o que ele deve sentir, regramentos de amor e ódio, visões de mundo, uma vida prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-sentir.
Mas também uma vida repleta de premiações conferidas àqueles que fazem a sua parte no rebanho. A imensa maioria de nós só vê o que lhes foi ensinado ver, e nisso não vai nenhum demérito. Tampouco desistem de defender seus pontos de vista com todas as forças, sempre que uma ameaça de desmentido ou de revolução axiológica faz frente a essa herança viva a que se resume o tesouro do clã.
Desvincular-se é solitário, e a solidão, por si mesma, exclui, separa, desvincula, consagrando o trauma edênico inscrito no imaginário desde a expulsão do Paraíso e o Pecado Original. Os desobedientes viram réprobos ou Cains e revoltam-se, tornando-se visionários e às vezes místicos. E os distraídos e desligados refogem também a essa mecânica insidiosa. São freqüentemente artistas, meio deslocados, porque perdem o tal foco, — palavra da moda, — e olham o mundo por si, sentindo-o, e não para si, utilizando-o. Perdem-se de si e dos outros, mas terminam sempre por encontrar, ainda que nada procurem.
Pode-se olhar e não ver, porque para ver é preciso sentir, e nisso entram, mais que os olhos, ainda o instinto e a intuição, duas coisas um tanto quanto impopulares, porque requerem mais impulsividade que cálculo. Enfim, pensar e perceber, sentir e criar são exercícios solitários, tanto quanto viver.
Mas também uma vida repleta de premiações conferidas àqueles que fazem a sua parte no rebanho. A imensa maioria de nós só vê o que lhes foi ensinado ver, e nisso não vai nenhum demérito. Tampouco desistem de defender seus pontos de vista com todas as forças, sempre que uma ameaça de desmentido ou de revolução axiológica faz frente a essa herança viva a que se resume o tesouro do clã.
Desvincular-se é solitário, e a solidão, por si mesma, exclui, separa, desvincula, consagrando o trauma edênico inscrito no imaginário desde a expulsão do Paraíso e o Pecado Original. Os desobedientes viram réprobos ou Cains e revoltam-se, tornando-se visionários e às vezes místicos. E os distraídos e desligados refogem também a essa mecânica insidiosa. São freqüentemente artistas, meio deslocados, porque perdem o tal foco, — palavra da moda, — e olham o mundo por si, sentindo-o, e não para si, utilizando-o. Perdem-se de si e dos outros, mas terminam sempre por encontrar, ainda que nada procurem.
Pode-se olhar e não ver, porque para ver é preciso sentir, e nisso entram, mais que os olhos, ainda o instinto e a intuição, duas coisas um tanto quanto impopulares, porque requerem mais impulsividade que cálculo. Enfim, pensar e perceber, sentir e criar são exercícios solitários, tanto quanto viver.
19 de dezembro de 2008
Da Estupidez
Nos bons velhos tempos, um rei, com seu poder sem limites, tinha o direito de vida e de morte sobre milhões de súditos que lhe pertenciam desde o berço. E como estava cercado por uma tropa de servidores solidamente armados, robustos e sem escrúpulos, ele podia fazer enforcar e dar tratos de polé, segundo seu prazer. Podia mesmo forçar milhões de indivíduos a trabalhar para seu palácio ou para seu túmulo durante anos e anos. As pirâmides não são apenas um magnífico edifício. Elas são ainda um esplêndido testemunho da loucura humana, pois que todo um povo deslocou e empilhou enormes pedras durante trinta anos, com o único fim de construir, para o Rei Quéops, uma sepultura que desenhasse seu prodigioso perfil a alguns quilômetros de distância. Que dez milhões de escravos tenham assim, sem se revoltar, suado, penado, sofrido para a satisfação de um único personagem, por Quéops que ele fosse, eis uma inépcia que se ergue bem acima do vértice da alta pirâmide.
Mas Quéops não foi o único a escravizar um grande povo a tarefas absurdas. A história do mundo é, sobretudo, aquela dos diversos Quéops, obscuros ou famosos, que foram servidos por milhões de escravos. Houve Sesóstris, Xerxes, Dario, Nero, Julio César, Carlos Magno, Carlos V, Luís XIV, Napoleão, Guilherme II e ainda muitos outros potentados que esmagaram, sob suas fantasias, imensas populações dóceis e estúpidas.
Que certos semideuses, — Carlos Magno ou Luís XIV, Carlos V ou Napoleão, — tenham dado testemunho de uma inteligência superior àquela dos homens vulgares, é quase indiscutível. Ainda assim, que desproporção entre a enormidade de seu poder e o vigor de seu espírito! Assim como seus mais humildes súditos, eles eram homens. Seu sangue era da mesma cor e suas excreções da mesma espécie. Eles respiraram pela primeira vez e deram seu último suspiro à maneira dos mais humildes mamíferos.
Charles Richet
Mas Quéops não foi o único a escravizar um grande povo a tarefas absurdas. A história do mundo é, sobretudo, aquela dos diversos Quéops, obscuros ou famosos, que foram servidos por milhões de escravos. Houve Sesóstris, Xerxes, Dario, Nero, Julio César, Carlos Magno, Carlos V, Luís XIV, Napoleão, Guilherme II e ainda muitos outros potentados que esmagaram, sob suas fantasias, imensas populações dóceis e estúpidas.
Que certos semideuses, — Carlos Magno ou Luís XIV, Carlos V ou Napoleão, — tenham dado testemunho de uma inteligência superior àquela dos homens vulgares, é quase indiscutível. Ainda assim, que desproporção entre a enormidade de seu poder e o vigor de seu espírito! Assim como seus mais humildes súditos, eles eram homens. Seu sangue era da mesma cor e suas excreções da mesma espécie. Eles respiraram pela primeira vez e deram seu último suspiro à maneira dos mais humildes mamíferos.
Charles Richet
18 de dezembro de 2008
O Homem Estúpido
Prefácio
Lineu, tentando colocar em boa ordem as diversas formas vivas que povoam nosso planeta, chamou o homem, — o qual constitui, evidentemente, uma espécie animal distinta de todas as outras, — Homo sapiens, o homem sábio.
Mas tal elogio é manifestamente injustificado, porque o homem acumula em si abundantes exemplos de extraordinária estupidez, tantos, que deveria, — para conformar-se à realidade das coisas, — denominar-se de outro modo, e dizer: homo stultus, o homem estúpido.
Quando concordarmos em empregar uma classificação zoológica séria, será necessário adotar esse termo.
Nesse breve ensaio, estabelecemos — ou, ao menos, tentamos estabelecer — que o homem é inferior à maior parte das espécies animais, seja pelo bom senso, seja pela sabedoria. Parece-me mesmo que teríamos o direito de classificá-lo como homo stultissimus, o homem estupidíssimo.
Todavia, para ser moderado, contentar-nos-emos em dar-lhe — sem superlativo — o apelido que lhe convém: homo stultus, homem estúpido. E daremos as provas de sua imensa e irremediável estupidez.
O autor não faz qualquer alusão à sorte reservada a esse exame de consciência que machucará, que ofenderá os intelectuais, tanto quanto a populaça, e que deixará em todos uma dolorosa impressão.
Sim. Nós o sabemos!
Assim, ó leitor, quem quer que sejas, intelectual ou artista, este livro vai perturbar — ainda que por um instante — a boa opinião que tu tens de ti mesmo. Ele espantará essa convicção íntima de que tu és sábio, prudente, racional. É pouco agradável ouvir-se dizer que se é estúpido, e é muito mais desagradável ainda receber a demonstração.
Mas não se trata de apresentar, à maneira de Watteau ou de Florian, pastores de ópera. Os camponeses de La Bruyère não têm cajados enfeitados com fitas, e estimo, com o velho mestre, que toda verdade é boa de se dizer, por amarga e decepcionante que seja.
Charles Richet
Observações.: A obra está disponível nos Classiques des Sciences Sociales.
Mas tal elogio é manifestamente injustificado, porque o homem acumula em si abundantes exemplos de extraordinária estupidez, tantos, que deveria, — para conformar-se à realidade das coisas, — denominar-se de outro modo, e dizer: homo stultus, o homem estúpido.
Quando concordarmos em empregar uma classificação zoológica séria, será necessário adotar esse termo.
Nesse breve ensaio, estabelecemos — ou, ao menos, tentamos estabelecer — que o homem é inferior à maior parte das espécies animais, seja pelo bom senso, seja pela sabedoria. Parece-me mesmo que teríamos o direito de classificá-lo como homo stultissimus, o homem estupidíssimo.
Todavia, para ser moderado, contentar-nos-emos em dar-lhe — sem superlativo — o apelido que lhe convém: homo stultus, homem estúpido. E daremos as provas de sua imensa e irremediável estupidez.
O autor não faz qualquer alusão à sorte reservada a esse exame de consciência que machucará, que ofenderá os intelectuais, tanto quanto a populaça, e que deixará em todos uma dolorosa impressão.
Sim. Nós o sabemos!
Assim, ó leitor, quem quer que sejas, intelectual ou artista, este livro vai perturbar — ainda que por um instante — a boa opinião que tu tens de ti mesmo. Ele espantará essa convicção íntima de que tu és sábio, prudente, racional. É pouco agradável ouvir-se dizer que se é estúpido, e é muito mais desagradável ainda receber a demonstração.
Mas não se trata de apresentar, à maneira de Watteau ou de Florian, pastores de ópera. Os camponeses de La Bruyère não têm cajados enfeitados com fitas, e estimo, com o velho mestre, que toda verdade é boa de se dizer, por amarga e decepcionante que seja.
Charles Richet
Observações.: A obra está disponível nos Classiques des Sciences Sociales.
Charles Richet (1850-1935)
Vou postar alguns textos de Richet que selecionei traduzi da obra intitulada O Homem Estúpido. Assim, não custa expor aqui alguns dados biográficos.
Charles Robert Richet era filho de um cirurgião. Ele nasceu em Paris, em 26 de agosto de 1850 e ali morreu em 04 de dezembro de 1935, sem assistir integralmente ao espetáculo da II Grande Guerra, detalhe providencial talvez. Ainda enquanto estudante, assistiu aos cirurgiões Léon Clément le Fort (1829-1893) e Aristide Auguste Stanislas Verneuil (1823–1895). Porém, servindo como interno em hospitais em 1872, iniciou experimentos relacionados ao hipnotismo. Durante os dois anos seguintes, produziu numerosos transes em pacientes. Foi ele quem cunhou o termo metapsíquica para a pesquisa parapsicológica. Esta experiência provavelmente o influenciou a abandonar a cirurgia e devotar-se à fisiologia.
Foi no campo desta estranha metapsíquica e do estudo dos fenômenos paranormais que Richet tornou-se mais conhecido entre nós como entre seus contemporâneos. Sua obra veio a coroar as investigações mais ou menos convergentes recolhidas ao longo de setenta anos. Seu Traité de Métapsychique, editado em Paris, 1923 por Felix Alcan, obra esta que infelizmente eu ainda não tenho, embora já a tenha manueseado, resume o conhecimento da época nesse campo. Richet, ao longo de toda sua vida, interessou-se vivamente pelos fenômenos ditos paranormais, tornando-se presidente do Instituto Metapsíquico Internacional de Paris e mantendo estreitas relações com metapsiquistas de todo o mundo. Firme adversário da hipótese espiritista, aportou a estas investigações — de caráter tão especial — toda a sua lealdade, vigor, clareza mental, tudo quanto distinguiu sempre, de modo marcante, o seu trabalho. Sua obra comprometeu indiretamente a própria metapsíquica, desferindo-lhe um golpe do qual não se recuperou jamais.
Chamado muitas vezes a investigar fenômenos curiosos, como o aparecimento de fantasmas, nada escapava ao sábio. Pode-se imaginar sua atuação frente ao famoso caso da Villa Carmen, de Argel, onde a médium, uma tal Marthe Béraud, jovem de excelente sociedade, produzia, no ano de 1904, a aparição de um fantasma chamado Bien Boa, fantasma de bigodes que circulava em torno dos assistentes envolto num manto branco e que se desmaterializava sobre o piso. O caso provocou a edição de mais um livro do Dr. Richet: Les Phénomènes Dits de Matèrisation de la Villa Carmen (Os Fenômenos Ditos de Materialização da Villa Carmen), Bureau dos Anais de Ciências Psíquicas, Paris, 1906, onde teceu sérias objeções a respeito do fenômeno.
Em 1878 Richet foi nomeado professor agregado da Faculdade de Medicina. Foi professor da Universidade de Paris, Sorbonne, de 1887 a 1927.
Foi um homem de muitos talentos e interesses. Pesquisador da fisiologia, escritor, atraído pela aviação. Participou, inclusive do desenho e da construção de um dos primeiros aviões. Dedicado pacifista, procurou demonstrar os malévolos efeitos da guerra, publicando trabalhos sob o pseudônimo de Charles Epheyer. Escreveu também sobre filosofia, poesia e drama. Durante a I Guerra, no fronte, investigou problemas relacionados à transfusão de plasma sangüíneo. Em 1926, recebeu a Cruz da Legião de Honra.
Charles Robert Richet era filho de um cirurgião. Ele nasceu em Paris, em 26 de agosto de 1850 e ali morreu em 04 de dezembro de 1935, sem assistir integralmente ao espetáculo da II Grande Guerra, detalhe providencial talvez. Ainda enquanto estudante, assistiu aos cirurgiões Léon Clément le Fort (1829-1893) e Aristide Auguste Stanislas Verneuil (1823–1895). Porém, servindo como interno em hospitais em 1872, iniciou experimentos relacionados ao hipnotismo. Durante os dois anos seguintes, produziu numerosos transes em pacientes. Foi ele quem cunhou o termo metapsíquica para a pesquisa parapsicológica. Esta experiência provavelmente o influenciou a abandonar a cirurgia e devotar-se à fisiologia.
Foi no campo desta estranha metapsíquica e do estudo dos fenômenos paranormais que Richet tornou-se mais conhecido entre nós como entre seus contemporâneos. Sua obra veio a coroar as investigações mais ou menos convergentes recolhidas ao longo de setenta anos. Seu Traité de Métapsychique, editado em Paris, 1923 por Felix Alcan, obra esta que infelizmente eu ainda não tenho, embora já a tenha manueseado, resume o conhecimento da época nesse campo. Richet, ao longo de toda sua vida, interessou-se vivamente pelos fenômenos ditos paranormais, tornando-se presidente do Instituto Metapsíquico Internacional de Paris e mantendo estreitas relações com metapsiquistas de todo o mundo. Firme adversário da hipótese espiritista, aportou a estas investigações — de caráter tão especial — toda a sua lealdade, vigor, clareza mental, tudo quanto distinguiu sempre, de modo marcante, o seu trabalho. Sua obra comprometeu indiretamente a própria metapsíquica, desferindo-lhe um golpe do qual não se recuperou jamais.
Chamado muitas vezes a investigar fenômenos curiosos, como o aparecimento de fantasmas, nada escapava ao sábio. Pode-se imaginar sua atuação frente ao famoso caso da Villa Carmen, de Argel, onde a médium, uma tal Marthe Béraud, jovem de excelente sociedade, produzia, no ano de 1904, a aparição de um fantasma chamado Bien Boa, fantasma de bigodes que circulava em torno dos assistentes envolto num manto branco e que se desmaterializava sobre o piso. O caso provocou a edição de mais um livro do Dr. Richet: Les Phénomènes Dits de Matèrisation de la Villa Carmen (Os Fenômenos Ditos de Materialização da Villa Carmen), Bureau dos Anais de Ciências Psíquicas, Paris, 1906, onde teceu sérias objeções a respeito do fenômeno.
Em 1878 Richet foi nomeado professor agregado da Faculdade de Medicina. Foi professor da Universidade de Paris, Sorbonne, de 1887 a 1927.
Foi um homem de muitos talentos e interesses. Pesquisador da fisiologia, escritor, atraído pela aviação. Participou, inclusive do desenho e da construção de um dos primeiros aviões. Dedicado pacifista, procurou demonstrar os malévolos efeitos da guerra, publicando trabalhos sob o pseudônimo de Charles Epheyer. Escreveu também sobre filosofia, poesia e drama. Durante a I Guerra, no fronte, investigou problemas relacionados à transfusão de plasma sangüíneo. Em 1926, recebeu a Cruz da Legião de Honra.
17 de dezembro de 2008
16 de dezembro de 2008
15 de dezembro de 2008
Intuição
Há uma realidade ao menos que nós percebemos por dentro, por intuição, e não por simples análise. É nossa própria pessoa em seu escoar através do tempo. É nosso eu que dura. Nós podemos não simpatizar intelectualmente ou, antes, espiritualmente, com qualquer outra coisa. Mas nós simpatizamos, seguramente, com nós mesmos.
H. Bergson
H. Bergson
Tardianas
Mas eu acrescento que seria um erro profundo fazer honrar as coletividades, mesmo sob sua forma a mais espiritual do progresso humano. Toda iniciativa fecunda, definitivamente, emana de um pensamento individual, independente e forte; e, para pensar, é necessário isolar-se, não apenas da multidão, – como diz Lamartine, – mas do público. É isto que esquecem os grandes aduladores do povo tomado em massa, e eles não se dão conta da espécie de contradição que está implicada em suas apologias. Porque eles não testemunham, em geral, tanta admiração pelas grandes obras soi-disant anônimas e coletivas, senão para exprimir seu desprezo pelos gênios individuais diferentes do seu. Também é de notar que esses célebres admiradores das unânimes multidões, depreciadores, ao mesmo tempo, de todos os homens em particular, têm sido prodígios de orgulho. Ninguém, mais que Wagner, exceto Victor Hugo, após Chateaubriand talvez e Rousseau, professou a teoria segundo a qual “o povo é a força eficiente da obra de arte” e “o indivíduo isolado nada saberia inventar, mas poderia apenas apropriar-se de uma invenção comum”. Essas admirações coletivas, que não custam nada ao amor próprio de ninguém, são como sátiras impessoais que não ofendem ninguém, porque se endereçam a todo mundo indistintamente.
G. Tarde
G. Tarde
Papel
Papel. Nada mais inspirador. Seja ele alimento de traças, seja ele virtual como estas páginas, a impressão que se tem é de que ainda é o mesmo papel.
Florbela Espanca
SEM REMÉDIO
Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.
E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!
Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!
E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!...
14 de dezembro de 2008
Reflexões Tardianas
O perigo das novas democracias é a dificuldade crescente, para os homens de pensamento, de escaparem à obsessão da agitação fascinadora. É penoso descer em sino de mergulho num mar muito agitado. As individualidades dirigentes que nossas sociedades contemporâneas põem em relevo são, cada vez mais, os escritores que vivem com elas em contínuo contato; e a ação poderosa que eles exercem, preferível, seguramente, à cegueira das multidões acéfalas, é já um desmentido infligido à teoria das massas criadoras. Mas isso não é bastante, e, como não é suficiente difundir, em toda parte, uma cultura média, e é necessário, antes de tudo, elevar sempre mais alto a alta cultura, podemos, com Sumner Maine, preocuparmo-nos já com a sorte que terão, amanhã, os últimos intelectuais, dos quais os serviços, com longos vencimentos, não surpreendem os olhos. O que preserva as montanhas de serem arrasadas e transformadas em terras cultiváveis, em vinhas ou em alfafa pelas populações montanhesas não é, de modo algum, o sentimento pelos serviços prestados por esses castelos naturais; é, simplesmente, pela solidez de seus picos, pela dureza de sua substância, muito difícil de dinamitar. O que preservará da destruição e do nivelamento democrático as sumidades intelectuais e artísticas da humanidade não será, eu temo, o reconhecimento pelo bem que o mundo lhes deve, a justa estima do preço de suas descobertas. Que será, pois?... Eu quereria acreditar que será sua força de resistência. Cuidado, se vierem a se desagregar!
G. Tarde.
G. Tarde.
Os Reclames de Antigamente
A Conquista do Corpo Ideal
Revista Leoplán
Uma revista literária, magazine argentino. Tenho algumas perdidas por ai. Esta tarde encontrei duas, uma de junho de 1944 e outra de dezembro de 1941.
Por acaso...
Por acaso esse papel de alguns centímetros quadrados estava justamente dentro do livro que trata do acaso e de suas leis, esse aí da postagem abaixo. Se vocês quiserem, podem ampliar a imagem com um clic e deliciar-se com o que presumo seja um vale presente pela eternidade afora.
O Acaso
Foi um achado de algumas semanas atrás. No Beco dos Livros, fuçando no recinto dos franceses de uma das lojas da Riachuelo, deparei-me com esse estranho título:
O ACASO
SUA LEI E SUAS CONSEQÜÊNCIAS
NAS CIÊNCIAS E NA FILOSOFIA
Mas se é acaso, como falar de suas leis? O fascínio do acaso não está justamente em sua imprevisibilidade, no imponderável que ele abriga dentro de si? Bem, não resisti e aqui estão novos ácaros que, em breve, completarão cem anos junto comigo, que já estou a meio caminho disso. Ao contrário do que eu pensava, o livro não é sem interesse. No mínimo, tem seu valor pelo que testemunha de uma época. A ediçao é de 1909. Mais curioso, porém, foi constatar que o volume traz ainda um ensaio sobre:
O ACASO
SUA LEI E SUAS CONSEQÜÊNCIAS
NAS CIÊNCIAS E NA FILOSOFIA
Mas se é acaso, como falar de suas leis? O fascínio do acaso não está justamente em sua imprevisibilidade, no imponderável que ele abriga dentro de si? Bem, não resisti e aqui estão novos ácaros que, em breve, completarão cem anos junto comigo, que já estou a meio caminho disso. Ao contrário do que eu pensava, o livro não é sem interesse. No mínimo, tem seu valor pelo que testemunha de uma época. A ediçao é de 1909. Mais curioso, porém, foi constatar que o volume traz ainda um ensaio sobre:
A METEMPSICOSE
BASEADA SOBRE OS PRINCÍPIOS DA BIOLOGIA
E DO MAGNETISMO FISIOLÓGICO
Naturalmente que vou ler. Embora descrente, me encanta constatar o fascínio que certas crenças e teorias, até bem articuladas às vezes, despertam nas pessoas que se entregam a elas sem formular nenhuma objeção. Ora, os ácaros se encontram, e, para isso, devem ter razões que própria razão desconhece.
AS CARTAS XI
Carta de Francisco para Maria escrita em agosto de 1924.
Maria,
Ontem, fui até a casa que abandonaste. Fui em visita de recordação, sofrer a volúpia do abandono.
Pobre casa que te guardou!... Quando cheguei, à procura de qualquer coisa que lá houvesses deixado: um perfume, uma expressão... ela me sorriu um sorriso de tristeza, em que vislumbrei uma queixa, um desconsolo doloroso de velharia abandonada.
Estive, horas e horas, a conversar com ela, a exumar, a reviver... Falou-me, em seguida, de uns olhos, de uma boca, de uns cabelos... Recordou-me um gesto que me enternecera, um dia... Um pedido que me cobrira de emoção... uma promessa que enchera de esperança a minha vida... Contou-me a história de uma separação, que o amor desfizera, para tornar mais nova, mais cheia de encantos, a união... Lembrou-me certas perversidades, certas contrariedades propositais, certos gestos dúbios, que são a tortura e a delícia do amor...
Avivou-me n’alma trechos de dor, trechos de alegria, e tanta coisa, tanta coisa mais... Confidências, frangalhos de alma, pedaços de vida, coisas passadas, coisas vividas que já estão na memória, mas que ainda alegram ou doem...
Disse-me então, que é viva de segredos, de mistérios, de palavras que nunca tocaram ouvido algum, de confissões que morreram no silêncio...
Pôs-se a recordar, depois, a vida que vivera antes. Os dias de festa, os dias de esplendor, quando o seu interior era sacudido pela sonoridade das risadas felizes. A graça feminina que lhe povoara de leve o ambiente... Toda a sua vida anterior, luminosa, e, agora, aquele vazio, aquele silêncio...
— É o fim de todas as coisas, minha pobre amiga.
A casa sorriu tristemente e acabou:
— Vivo, agora, da saudade do que fui antes, da lembrança do que, talvez, não serei mais...
E desandou a chorar. Chorei com ela. Nesse momento, ameia-a mais que nunca. Éramos irmãos na mesma dor...
Deixei-a chorando ainda. E quando me separava, os meus passos acordaram os teus passos adormecidos na calçada.
E eu senti, então, a ilusão da tua chegada.
Mas, não chegaste. Chegou a Tristeza, que me levou, carinhosa e boa, abraçada comigo, até ao meu quarto. Foi a minha companhia de vigília nessa noite. Depois ficou morando comigo. Santa Tristeza!
Santa Tristeza!
Meu amor!
Do teu
Francisco
Observações:
Maria,
Ontem, fui até a casa que abandonaste. Fui em visita de recordação, sofrer a volúpia do abandono.
Pobre casa que te guardou!... Quando cheguei, à procura de qualquer coisa que lá houvesses deixado: um perfume, uma expressão... ela me sorriu um sorriso de tristeza, em que vislumbrei uma queixa, um desconsolo doloroso de velharia abandonada.
Estive, horas e horas, a conversar com ela, a exumar, a reviver... Falou-me, em seguida, de uns olhos, de uma boca, de uns cabelos... Recordou-me um gesto que me enternecera, um dia... Um pedido que me cobrira de emoção... uma promessa que enchera de esperança a minha vida... Contou-me a história de uma separação, que o amor desfizera, para tornar mais nova, mais cheia de encantos, a união... Lembrou-me certas perversidades, certas contrariedades propositais, certos gestos dúbios, que são a tortura e a delícia do amor...
Avivou-me n’alma trechos de dor, trechos de alegria, e tanta coisa, tanta coisa mais... Confidências, frangalhos de alma, pedaços de vida, coisas passadas, coisas vividas que já estão na memória, mas que ainda alegram ou doem...
Disse-me então, que é viva de segredos, de mistérios, de palavras que nunca tocaram ouvido algum, de confissões que morreram no silêncio...
Pôs-se a recordar, depois, a vida que vivera antes. Os dias de festa, os dias de esplendor, quando o seu interior era sacudido pela sonoridade das risadas felizes. A graça feminina que lhe povoara de leve o ambiente... Toda a sua vida anterior, luminosa, e, agora, aquele vazio, aquele silêncio...
— É o fim de todas as coisas, minha pobre amiga.
A casa sorriu tristemente e acabou:
— Vivo, agora, da saudade do que fui antes, da lembrança do que, talvez, não serei mais...
E desandou a chorar. Chorei com ela. Nesse momento, ameia-a mais que nunca. Éramos irmãos na mesma dor...
Deixei-a chorando ainda. E quando me separava, os meus passos acordaram os teus passos adormecidos na calçada.
E eu senti, então, a ilusão da tua chegada.
Mas, não chegaste. Chegou a Tristeza, que me levou, carinhosa e boa, abraçada comigo, até ao meu quarto. Foi a minha companhia de vigília nessa noite. Depois ficou morando comigo. Santa Tristeza!
Santa Tristeza!
Meu amor!
Do teu
Francisco
Observações:
É notável como Francisco encontra, no fato de sofrer, um consolo para a ausência de sua amada. Como se ir até a casa de onde sua Maria se mudara fosse trazê-la para mais perto dele. Recordar-se de coisas alegres ou tristes, cuidar de reviver na memória os menores gestos e detalhes, fosse um perfume, fosse o som de passos na calçada. Ao menos sua ausência, sentida com intensidade, parece-lhe servir de consolo. Estas cartas de 1924 são especialmente poéticas e apresentam passagens notáveis, como aquela da união desfeita pelo próprio amor, para torná-la mais forte. Francisco foi um romântico incorrigível e suas cartas dão inegável testemunho disso. No entanto, ele também encarna um jovem porto-alegrense dos anos vinte, estudante, culto e, penso eu, elegante e refinado, seja pela letra, seja pela correção e estilo. Maria, por sua vez, nos é revelada através do amor de Francisco que, embora não a descreva fisicamente nas cartas, nos fornece dados não pouco precisos sobre a jovem que encantou e o manteve cativo por décadas e décadas, deixando-nos suas cartas como testemunho de sua história.
Especulações Tardianas
Gabriel Tarde é um dos muitos autores que mais me fascinam. Tenho por ele um carinho especial, e é difícil que se passe uma semana sem que eu folheie uma de suas obras e assinale alguma passagem. Muitas vezes anoto, traduzo e esqueço a referência. Viram folhas soltas, avulsas, anotações como esta, cuja referência não anotei, e que me serviu para assinalar a faceta surpreendentemente mística deste autor, coisa que lhe valeu críticas de Enrico Ferri. São suas especulações metafísicas, pela quais ele se desculpa, inclusive:
Não digamos nem a outra vida nem o nada; digamos a não-vida, sem nada prejulgar. A não-vida, não mais que o não-eu, não é, necessariamente o não-ser; e os argumentos de certos filósofos contra a possibilidade da existência após a morte não funcionam, não mais que aqueles dos cépticos idealistas contra a realidade do mundo exterior. — Que a vida seja preferível à não-vida, nada de menos demonstrado. — Talvez a vida seja somente um tempo de provas, de exercícios escolares e dolorosos impostos às mônadas que, ao saírem desta dura e mística escola, encontrem-se purgadas de sua anterior necessidade de dominação universal. Persuado-me de que poucas dentre elas, uma vez depostas de seu trono cerebral, aspirem para aí retornar. Retornadas à sua originalidade própria, à sua independência absoluta, elas renunciam sem trabalho e para sempre ao poder corporal, e, durante a eternidade, vão saborear o estado divino, onde o ultimo segundo da vida as mergulhou, isentas de todas os males e de todos os desejos, — eu não digo de todos os amores — e na certeza de terem um bem escondido, eternamente durável. Assim se explicaria a morte: assim se justificaria a vida, pela purgação do desejo... Mas chega de formular hipóteses! Você perdoa-me esta brincadeira metafísica, amiga leitora?
Observação: Melhor esclarecer este ponto para alguns de nossos leitores. Mônada, segundo Leibniz, seria cada uma das substâncias simples e de número infinito, de natureza psíquica. Elas não teriam qualquer relação umas com as outras, e se agregariam harmoniosamente por predeterminação da divindade, constituindo as coisas de que a natureza se compõe.
Não digamos nem a outra vida nem o nada; digamos a não-vida, sem nada prejulgar. A não-vida, não mais que o não-eu, não é, necessariamente o não-ser; e os argumentos de certos filósofos contra a possibilidade da existência após a morte não funcionam, não mais que aqueles dos cépticos idealistas contra a realidade do mundo exterior. — Que a vida seja preferível à não-vida, nada de menos demonstrado. — Talvez a vida seja somente um tempo de provas, de exercícios escolares e dolorosos impostos às mônadas que, ao saírem desta dura e mística escola, encontrem-se purgadas de sua anterior necessidade de dominação universal. Persuado-me de que poucas dentre elas, uma vez depostas de seu trono cerebral, aspirem para aí retornar. Retornadas à sua originalidade própria, à sua independência absoluta, elas renunciam sem trabalho e para sempre ao poder corporal, e, durante a eternidade, vão saborear o estado divino, onde o ultimo segundo da vida as mergulhou, isentas de todas os males e de todos os desejos, — eu não digo de todos os amores — e na certeza de terem um bem escondido, eternamente durável. Assim se explicaria a morte: assim se justificaria a vida, pela purgação do desejo... Mas chega de formular hipóteses! Você perdoa-me esta brincadeira metafísica, amiga leitora?
Observação: Melhor esclarecer este ponto para alguns de nossos leitores. Mônada, segundo Leibniz, seria cada uma das substâncias simples e de número infinito, de natureza psíquica. Elas não teriam qualquer relação umas com as outras, e se agregariam harmoniosamente por predeterminação da divindade, constituindo as coisas de que a natureza se compõe.
7 de dezembro de 2008
AS CARTAS X
Carta de Francisco para Maria escrita em agosto de 1924.
Maria,
Longos dias a te procurar em vão, andei pelas ruas da cidade. Meu vulto doloroso, meio esbatido entre a névoa destes últimos dias, era todo o anseio de uma busca e o desânimo de uma desilusão. Tu não me aparecias...
Da primeira claridade do dia, no meio do bulício, entre o torvelinho humano, à meia-tinta do crepúsculo, sempre em vão, rodei pelos caminhos, em procura da minha vida, em procura de mim mesmo.
E a tua figura, vezes e vezes, vivia, efemeramente, aos olhos da minha ilusão, na figura das outras mulheres que passavam, vagas, indistintas, tecendo o meu engano.
Rodavam comigo a Saudade, a soluçar a canção das lágrimas, e o meu cigarro.
E depois, na solidão da noite, todo o impossível de te ver doía-me n’alma... Era uma dor absconsa, enorme, a apertar-me o coração e a umedecer-me os olhos... E eu desesperava...
De repente ela veio... Veio vindo, vagarosa, tímida... Começou tomando-me as mãos entre as suas mãos longas e frias... Depois enlaçou-me o busto, recolheu-me as lágrimas dos olhos com os seus lábios de morta, e pôs-se a murmurar, num sopro, ao meu ouvido, palavras de conforto.
Um pouco anestesiado da grande dor, olheia-a com simpatia de infeliz...
Era a chuva, a minha irmã... A minha doce e melancólica irmã... Trazia nos olhos de violeta toda a doçura e nos gestos de sombra toda a ternura do amor.
Cessaram as minhas lágrimas. Já não era tão só. Envolvi-me, então, longamente, tristemente, nas suas carícias frias, a sonhar, de pálpedras caídas, com as carícias mornas do teu corpo de pássaro...
E quando a chuva se foi, tu vieste
para o teu
Francisco
Maria,
Longos dias a te procurar em vão, andei pelas ruas da cidade. Meu vulto doloroso, meio esbatido entre a névoa destes últimos dias, era todo o anseio de uma busca e o desânimo de uma desilusão. Tu não me aparecias...
Da primeira claridade do dia, no meio do bulício, entre o torvelinho humano, à meia-tinta do crepúsculo, sempre em vão, rodei pelos caminhos, em procura da minha vida, em procura de mim mesmo.
E a tua figura, vezes e vezes, vivia, efemeramente, aos olhos da minha ilusão, na figura das outras mulheres que passavam, vagas, indistintas, tecendo o meu engano.
Rodavam comigo a Saudade, a soluçar a canção das lágrimas, e o meu cigarro.
E depois, na solidão da noite, todo o impossível de te ver doía-me n’alma... Era uma dor absconsa, enorme, a apertar-me o coração e a umedecer-me os olhos... E eu desesperava...
De repente ela veio... Veio vindo, vagarosa, tímida... Começou tomando-me as mãos entre as suas mãos longas e frias... Depois enlaçou-me o busto, recolheu-me as lágrimas dos olhos com os seus lábios de morta, e pôs-se a murmurar, num sopro, ao meu ouvido, palavras de conforto.
Um pouco anestesiado da grande dor, olheia-a com simpatia de infeliz...
Era a chuva, a minha irmã... A minha doce e melancólica irmã... Trazia nos olhos de violeta toda a doçura e nos gestos de sombra toda a ternura do amor.
Cessaram as minhas lágrimas. Já não era tão só. Envolvi-me, então, longamente, tristemente, nas suas carícias frias, a sonhar, de pálpedras caídas, com as carícias mornas do teu corpo de pássaro...
E quando a chuva se foi, tu vieste
para o teu
Francisco
Guy de Maupassant (1850-1893)
Adoro Maupassant. Tenho sua obra em 17 volumes colocada em lugar de honra numa estante. Este fascinante escritor, insuperável mestre do conto, viveu pouco mais de quarenta anos, e morreu atormentado pela loucura. Seu O HORLA, na versão escrita em forma de diário, descreve em primeira pessoa os transtornos sofridos por alguém que narra os acontecimentos sobrenaturais com que se depara no dia-a-dia. Horla, — título do conto, — é nome próprio, palavra com que o autor batizou a criatura misteriosa que assombra o personagem que escreve o diário. Essa palavra, contudo, tem a mesma pronúncia da expressão hors là, que significa o que está fora daqui, o que se situa além. Uma de minhas passagens favoritas é esta:
12 de maio — Tenho um pouco de febre desde alguns dias; sinto-me sofrer ou, antes, sinto-me triste.
De onde vêm essas influências misteriosas que transformam em desencorajamento nossa felicidade e nossa confiança em desespero? Dir-se-ia que o ar, o ar invisível está cheio de Forças desconhecidas, das quais nós sofremos a vizinhança misteriosa. Desperto cheio de alegria, com vontade de cantar na garganta. — Por quê? — Será um arrepio de frio que, roçando minha pele, abalou meus nervos e escureceu minha alma? Será a forma das nuvens, ou a cor do dia, a cor das coisas, tão variável, que, passando por meus olhos, perturbou meu pensamento? Sabe-se? Tudo aquilo que nos cerca, tudo aquilo que nós vemos sem enxergar, tudo aquilo em que roçamos sem conhecer, tudo aquilo em que tocamos sem palpar, tudo aquilo que encontramos sem distinguir têm sobre nós, sobre nossos órgãos e, através deles, sobre nossas idéias, sobre nosso coração ele mesmo, efeitos rápidos, surpreendentes e inexplicáveis.
Como é profundo esse mistério do Invisível! Nós não o podemos sondar com nossos sentidos miseráveis, com nossos olhos que não sabem perceber nem o muito pequeno, nem o muito grande, nem o muito perto, nem o muito longe, nem os habitantes de uma estrela, nem os habitantes de uma gota d’água... Com nossos ouvidos que nos enganam, porque eles nos transmitem as vibrações do ar em notas sonoras. Eles são fadas que realizam esse milagre de transformar em ruído esse movimento e, através dessa metamorfose, dão nascimento à música que torna cantante a agitação muda da natureza... Com nosso olfato, mais fraco que aquele de um cão... Com nosso paladar que mal pode distinguir a idade de um vinho!
Ah! Se nós tivéssemos outros órgãos que realizassem em nosso favor outros milagres, quantas coisas poderíamos descobrir ainda em torno de nós!
De onde vêm essas influências misteriosas que transformam em desencorajamento nossa felicidade e nossa confiança em desespero? Dir-se-ia que o ar, o ar invisível está cheio de Forças desconhecidas, das quais nós sofremos a vizinhança misteriosa. Desperto cheio de alegria, com vontade de cantar na garganta. — Por quê? — Será um arrepio de frio que, roçando minha pele, abalou meus nervos e escureceu minha alma? Será a forma das nuvens, ou a cor do dia, a cor das coisas, tão variável, que, passando por meus olhos, perturbou meu pensamento? Sabe-se? Tudo aquilo que nos cerca, tudo aquilo que nós vemos sem enxergar, tudo aquilo em que roçamos sem conhecer, tudo aquilo em que tocamos sem palpar, tudo aquilo que encontramos sem distinguir têm sobre nós, sobre nossos órgãos e, através deles, sobre nossas idéias, sobre nosso coração ele mesmo, efeitos rápidos, surpreendentes e inexplicáveis.
Como é profundo esse mistério do Invisível! Nós não o podemos sondar com nossos sentidos miseráveis, com nossos olhos que não sabem perceber nem o muito pequeno, nem o muito grande, nem o muito perto, nem o muito longe, nem os habitantes de uma estrela, nem os habitantes de uma gota d’água... Com nossos ouvidos que nos enganam, porque eles nos transmitem as vibrações do ar em notas sonoras. Eles são fadas que realizam esse milagre de transformar em ruído esse movimento e, através dessa metamorfose, dão nascimento à música que torna cantante a agitação muda da natureza... Com nosso olfato, mais fraco que aquele de um cão... Com nosso paladar que mal pode distinguir a idade de um vinho!
Ah! Se nós tivéssemos outros órgãos que realizassem em nosso favor outros milagres, quantas coisas poderíamos descobrir ainda em torno de nós!
A propósito, é sobre uma passagem desse famoso conto de Maupassant, — O HORLA, — que estudiosos de psicologia coletiva se debruçaram, indicando-a, inclusive. Maupassant é citado por Rossi, por Sighele e por Ferri, entre outros. Vale a pena conhecer esta passagem do diário que, na obra, aparece com a data da Queda da Bastilha, passagem que chamou a atenção de muitos estudiosos das multidões:
14 de julho — Festa da República. Passeio pelas ruas. Os petardos e as bandeiras divertem-me como a uma criança. É, todavia, muito estúpido ser feliz em data fixa, por decreto do governo. O povo é uma tropa imbecil, ora estupidamente paciente e ora ferozmente revoltado. Diz-se-lhe: “Alegra-te.” Ele se alegra. Diz-se-lhe: “Vai bater-te com teu vizinho.” Ele vai bater-se. Diz-se-lhe: “Vota pelo Imperador.” Ele vota pelo Imperador. Depois, diz-se-lhe: “Vota pela República.” E ele vota pela República.
Aqueles que o dirigem são também estúpidos; mas, em lugar de obedecer a homens, eles obedecem a princípios, os quais não podem ser senão nadas, estéreis e falsos, por isso mesmo que são princípios, quer dizer, idéias reputadas certas e imutáveis nesse mundo onde não se está seguro de nada, pois a luz é uma ilusão, pois o ruído é uma ilusão.
Aqueles que o dirigem são também estúpidos; mas, em lugar de obedecer a homens, eles obedecem a princípios, os quais não podem ser senão nadas, estéreis e falsos, por isso mesmo que são princípios, quer dizer, idéias reputadas certas e imutáveis nesse mundo onde não se está seguro de nada, pois a luz é uma ilusão, pois o ruído é uma ilusão.
6 de dezembro de 2008
AS CARTAS IX
Carta de Francisco para Maria escrita em 17 de março de 1924
Maria,
Em tua carta de hoje, supuseste muita coisa para explicar o não recebimento da minha carta de dez e, entanto, não supuseste tudo. Deixaste até de fazer suposições mais aceitáveis, pelo menos para mim, que aquelas que fizeste. Pensaste, antes de tudo (era natural...) numa exageração de castigo; depois numa viagem imprevista; e, afinal, num outro qualquer motivo grandemente dominador. Erraste em todas as tuas conjecturas, em todas as tuas hipóteses. Motivo grandemente dominador, viagem, exageração de castigo, nada disso houve. Nem pouca vontade de escrever, nem preguiça, nem falta de prazer, nem desejo de dizer-te qualquer coisa, iluminado pela ânsia de receber de ti alguma coisa. Ao contrário: foi até radiante de felicidade que senti chegar o dia oito, que te escrevi, e tão ansiosamente esperava já a tua resposta que nem pus, nessa carta, o dia em que devias esperar outra... Em vez de te castigar, eu é que estava sendo castigado... Por isso foi com surpresa que soube do não recebimento da minha carta. Esta, como já disse, foi escrita e deitada na caixa postal dia oito. Agora, para mim, as presunções possíveis, admissíveis, verdadeiras, são estas: ou houve extravio ou receptação. Tanto a primeira quanto a segunda hipóteses são aceitáveis. Mas quem poderá saber qual foi a realizada? Em todo caso, a segunda é a menos difícil de ser verificada.
Essa complicação veio trazer-me o antigo temor na fragilidade de nosso plano. Eu tenho bem consciência de sua inconsistência. Receio que sejamos descobertos. Não que eu tema por mim. Eu temo por ti unicamente, que estás tão perto das criaturas que se preocupam tanto contigo e com as nossas coisas.
Por isso, dou-te uma sugestão prudente: cessarmos a nossa correspondência. Eu irei sofrer muito. Irei sentir mais desolada a minha solidão. Mas, é necessário. A vida, continuamente, exige do homem, para sua felicidade, um novo sacrifício. Eu estou pronto a fazer todos os que me pedir. Irei fazer mais um.
Responde-me logo.
Francisco
Maria,
Em tua carta de hoje, supuseste muita coisa para explicar o não recebimento da minha carta de dez e, entanto, não supuseste tudo. Deixaste até de fazer suposições mais aceitáveis, pelo menos para mim, que aquelas que fizeste. Pensaste, antes de tudo (era natural...) numa exageração de castigo; depois numa viagem imprevista; e, afinal, num outro qualquer motivo grandemente dominador. Erraste em todas as tuas conjecturas, em todas as tuas hipóteses. Motivo grandemente dominador, viagem, exageração de castigo, nada disso houve. Nem pouca vontade de escrever, nem preguiça, nem falta de prazer, nem desejo de dizer-te qualquer coisa, iluminado pela ânsia de receber de ti alguma coisa. Ao contrário: foi até radiante de felicidade que senti chegar o dia oito, que te escrevi, e tão ansiosamente esperava já a tua resposta que nem pus, nessa carta, o dia em que devias esperar outra... Em vez de te castigar, eu é que estava sendo castigado... Por isso foi com surpresa que soube do não recebimento da minha carta. Esta, como já disse, foi escrita e deitada na caixa postal dia oito. Agora, para mim, as presunções possíveis, admissíveis, verdadeiras, são estas: ou houve extravio ou receptação. Tanto a primeira quanto a segunda hipóteses são aceitáveis. Mas quem poderá saber qual foi a realizada? Em todo caso, a segunda é a menos difícil de ser verificada.
Essa complicação veio trazer-me o antigo temor na fragilidade de nosso plano. Eu tenho bem consciência de sua inconsistência. Receio que sejamos descobertos. Não que eu tema por mim. Eu temo por ti unicamente, que estás tão perto das criaturas que se preocupam tanto contigo e com as nossas coisas.
Por isso, dou-te uma sugestão prudente: cessarmos a nossa correspondência. Eu irei sofrer muito. Irei sentir mais desolada a minha solidão. Mas, é necessário. A vida, continuamente, exige do homem, para sua felicidade, um novo sacrifício. Eu estou pronto a fazer todos os que me pedir. Irei fazer mais um.
Responde-me logo.
Francisco
4 de dezembro de 2008
Um Pequeno Cão de Nada
Do Memorial de Aires, o comovente parágrafo 444, escrito ao melhor estilo de Machado de Assis, fala-nos da devoção de um casal a um cão:
Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho levou-lho um dia, com poucos meses de existência, e ambos entraram a gostar dele. Não lhe conto o que a madrinha fazia por ele, desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia crédito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze anos da raça; a doença achou enfermeira, e a morte teve lágrimas. Quando entrar no jardim à esquerda, ao pé do muro, olhe, foi aí que o enterraram; e já não lembrava, a madrinha é que mo apontou ontem.
Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho levou-lho um dia, com poucos meses de existência, e ambos entraram a gostar dele. Não lhe conto o que a madrinha fazia por ele, desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia crédito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze anos da raça; a doença achou enfermeira, e a morte teve lágrimas. Quando entrar no jardim à esquerda, ao pé do muro, olhe, foi aí que o enterraram; e já não lembrava, a madrinha é que mo apontou ontem.
Calar-se
... o próprio silêncio se define em relação às palavras, assim como a pausa, em música, ganha o seu sentido a partir dos grupos de notas que a circundam. Calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar ― logo, ainda é falar.
Sartre. Que é a literatura? Ed. Ática, SP, 1989. Pg. 22.
Sartre. Que é a literatura? Ed. Ática, SP, 1989. Pg. 22.
3 de dezembro de 2008
30 de novembro de 2008
Memorial de Aires
8 de abril
Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá dessa vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa do sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor.
Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o céu, ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele chegue, virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios.
Escuta, papel. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito, algo parecida com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudá-la se tiver ocasião. Tempo sobra-me, mas tu sabes que é ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado José, e para ti, se tenho vagar e quê, — e pouco mais.
Ando relendo o Memorial. Lemos Machado de Assis na adolescência, e essa não é época que se penetre fundo em todo sentido da prosa desse fantástico autor. O diário encontrado pertencia ao conselheiro Aires e nos mostra como um viúvo de sessenta anos confessa ao papel uma inesperada paixão que o acometeu repentinamente ao encontrar-se, num cemitério, com a jovem viúva Fidélia.
Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá dessa vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa do sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor.
Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o céu, ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele chegue, virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios.
Escuta, papel. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito, algo parecida com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudá-la se tiver ocasião. Tempo sobra-me, mas tu sabes que é ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado José, e para ti, se tenho vagar e quê, — e pouco mais.
Ando relendo o Memorial. Lemos Machado de Assis na adolescência, e essa não é época que se penetre fundo em todo sentido da prosa desse fantástico autor. O diário encontrado pertencia ao conselheiro Aires e nos mostra como um viúvo de sessenta anos confessa ao papel uma inesperada paixão que o acometeu repentinamente ao encontrar-se, num cemitério, com a jovem viúva Fidélia.
21 de novembro de 2008
Bertrand e seus Ensaios Impopulares
Desde que a evolução ficou na moda, a glorificação do Homem adquiriu nova forma. Dizem-nos que a evolução foi guiada por um grande Propósito: durante os milhões de anos em que éramos limo, ou trilobites, durante as idades dos dinossauros, dos fetos gigantes, das abelhas e das flores silvestres, Deus se achava preparando o Grande Clímax. Por fim, na plenitude do tempo, Ele produziu o homem, incluindo tais espécimes como Nero, Calígula, Hitler e Mussolini, cuja glória transcendente justificava o longo e penoso processo. De minha parte, acho mesmo a condenação eterna menos incrível e ridícula, do que esta precária e impotente conclusão que nos convidam a admirar como o esforço supremo da Onipotência. E se Deus é de fato onipotente, por que razão não teria ele produzido esse glorioso resultado sem esse longo e tedioso prólogo? (p. 108/109). RUSSEL, Bertrand. Ensaios Impopulares. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1956.
19 de novembro de 2008
AS CARTAS VIII
Carta de Francisco para Maria.
Sem data.
Maria,
A paciência é o mais difícil dos heroísmos, o heroísmo constante, quotidiano. Isso nos ensina, com profunda sabedoria, numa lição cheia de verdade, o pensador francês Maxime de Champ. E, ao mesmo tempo, inspira-nos esse heroísmo, mostrando-nos, a traços firmes e claros, o espetáculo da vida, o conflito eterno dos seres, a luta silenciosa do bem e do mal. Este aparece com a maior freqüência que aquele. É uma conseqüência natural e lógica da própria luta em que os homens se empenham constante e eternamente, acumulando na sua alma um patrimônio de ódios, vinganças e maldades.
Por isso, como diz Anatole, “é necessário saber sofrer”, porque a ciência da dor é a única ciência da vida.
E a criatura humana aprende a sofrer somente quando atinge a esse estado que eu chamo divino, de paciência, depois de haver sofrido com resignação toda gama pungente das dores deste mundo.
Vieram-me ao pensamento essas breves considerações, porque um homem, perverso e infeliz, e a quem dediquei, há até bem pouco tempo, grande parte da minha afetividade, acaba de projetar na minha vida a amargura de um mal, felizmente reparável, por ser apenas material. E é esse homem que me impede de ir visitar-te... Saberás o porquê mais tarde.
Mas, eu, que já aprendi a sofrer, sei perdoar. E perdoei-o. Perdoei-o como se deve perdoar, com o mais nobre e verdadeiro perdão: esquecendo o mal produzido.
Para mim, o homem é tão ínfimo, tão miserável, que o acho até indigno de receber das almas superiores um gesto verberativo, uma atitude condenatória aos seus atos de torpeza. O homem superior teria de descer demasiado. E eles não merecem tal honra. Eles merecem apenas um piedoso e completo perdão, que é o desprezo superior dos espíritos nobres.
Não sei se ainda esta semana poderei gozar o encanto doce e perfumado do teu convívio, dentro da beleza pagã e luminosa da natureza, nesse recanto delicioso do nosso Estúdio. Correr contigo, nas manhãs radiosas de sol, pelos campos úmidos, a aspirar o cheiro ocre e sadio das resinas campestres. Embriagar-me, perto de ti, à hora fauniana do meio-dia, na preguiça sensual do repouso. E, à tarde, quando o sol pintasse de ametista o horizonte, contemplar o crepúsculo do dia através do crepúsculo dos teus olhos, cantando na minha lira de Apolo a imortalidade do nosso sonho. E depois, trêmulos, amorosos, debaixo da palidez clorótica da lua, sonharmos, sentindo na carne a carícia de seda dos dedos invisíveis da noite.
Que doçura, que sonho, que poesia, meu amor, meu amor, meu grande amor...
Do teu Francisco.
Observações:Esta carta me parece ser bem posterior àquelas postadas até agora. Espantoso como Francisco não consegue esconder a imensa frustração que experimentou ao perceber que não poderia rever sua Maria, supostamente, por conta de alguém que não cumpriu com a palavra empenha. Conquanto queira mostrar-se superior, esforçando-se por perdoar o tal homem perverso, Francisco não esconde o sentimento de desprezo e repulsa que filosoficamente nutre contra quem o impediu de estar com sua amada. Quando leio coisas assim, viajo no tempo. E fico eu mesma imaginando o que terá sido um romance vivido dessa forma, entre personagens reais que habitaram Porto Alegre há tanto tempo.
Sem data.
Maria,
A paciência é o mais difícil dos heroísmos, o heroísmo constante, quotidiano. Isso nos ensina, com profunda sabedoria, numa lição cheia de verdade, o pensador francês Maxime de Champ. E, ao mesmo tempo, inspira-nos esse heroísmo, mostrando-nos, a traços firmes e claros, o espetáculo da vida, o conflito eterno dos seres, a luta silenciosa do bem e do mal. Este aparece com a maior freqüência que aquele. É uma conseqüência natural e lógica da própria luta em que os homens se empenham constante e eternamente, acumulando na sua alma um patrimônio de ódios, vinganças e maldades.
Por isso, como diz Anatole, “é necessário saber sofrer”, porque a ciência da dor é a única ciência da vida.
E a criatura humana aprende a sofrer somente quando atinge a esse estado que eu chamo divino, de paciência, depois de haver sofrido com resignação toda gama pungente das dores deste mundo.
Vieram-me ao pensamento essas breves considerações, porque um homem, perverso e infeliz, e a quem dediquei, há até bem pouco tempo, grande parte da minha afetividade, acaba de projetar na minha vida a amargura de um mal, felizmente reparável, por ser apenas material. E é esse homem que me impede de ir visitar-te... Saberás o porquê mais tarde.
Mas, eu, que já aprendi a sofrer, sei perdoar. E perdoei-o. Perdoei-o como se deve perdoar, com o mais nobre e verdadeiro perdão: esquecendo o mal produzido.
Para mim, o homem é tão ínfimo, tão miserável, que o acho até indigno de receber das almas superiores um gesto verberativo, uma atitude condenatória aos seus atos de torpeza. O homem superior teria de descer demasiado. E eles não merecem tal honra. Eles merecem apenas um piedoso e completo perdão, que é o desprezo superior dos espíritos nobres.
Não sei se ainda esta semana poderei gozar o encanto doce e perfumado do teu convívio, dentro da beleza pagã e luminosa da natureza, nesse recanto delicioso do nosso Estúdio. Correr contigo, nas manhãs radiosas de sol, pelos campos úmidos, a aspirar o cheiro ocre e sadio das resinas campestres. Embriagar-me, perto de ti, à hora fauniana do meio-dia, na preguiça sensual do repouso. E, à tarde, quando o sol pintasse de ametista o horizonte, contemplar o crepúsculo do dia através do crepúsculo dos teus olhos, cantando na minha lira de Apolo a imortalidade do nosso sonho. E depois, trêmulos, amorosos, debaixo da palidez clorótica da lua, sonharmos, sentindo na carne a carícia de seda dos dedos invisíveis da noite.
Que doçura, que sonho, que poesia, meu amor, meu amor, meu grande amor...
Do teu Francisco.
Observações:Esta carta me parece ser bem posterior àquelas postadas até agora. Espantoso como Francisco não consegue esconder a imensa frustração que experimentou ao perceber que não poderia rever sua Maria, supostamente, por conta de alguém que não cumpriu com a palavra empenha. Conquanto queira mostrar-se superior, esforçando-se por perdoar o tal homem perverso, Francisco não esconde o sentimento de desprezo e repulsa que filosoficamente nutre contra quem o impediu de estar com sua amada. Quando leio coisas assim, viajo no tempo. E fico eu mesma imaginando o que terá sido um romance vivido dessa forma, entre personagens reais que habitaram Porto Alegre há tanto tempo.
Paulo Mantegazza (1831-1910)
Todos estes livros foram escritos pelo adorável Mantegazza, psicólogo italiano que foi amigo de Lombroso. Ele escrevia deliciosamente. Estas passagens pertencencem à sua Hygiene do Amor, de 1903.
Nada há de mais caprichoso, nem de mais variável, que a necessidade de amar nos diversos indivíduos. Depois do cérebro não há nada mais variável que o testículo do homem.
(p. 111).
O homem consome sempre nas batalhas d'amor uma energia muito superior à que despende a mulher, e por isso a economia de suas forças é muito mais necessária a ele (p.196).
Dizem todos os autores que a hora da manhã é a mais própícia para os torneios amorosos, e isso é exato; e dizem muitos que, logo depois do jantar, a hora é mal escolhida, e isso também é verdade, especialmente para os homens obesos e que têm disposições para as congestões cerebrais. Há, porém, uma coisa mais verdadeira ainda, e que é o momento mais oportuno para sacrificar a Vênus é aquele em que os desejos são mais irresistíveis (p. 220).
15 de novembro de 2008
Herbert Spencer, fragmentos biográficos, idéias e críticas
Aliás, a propósito...
Para brincar com as tais regras às quais me referi na postagem anterior, eu mesma me dei ao trabalho de escrever um artigo do tipo supostamente respeitável, ou seja, observando todas as tais regras que ditavam espaços, margens, fontes, citações, bibliografia e sei lá o que mais. Consegui não surtar violentamente e, fato é que encontrei o tal artigo que mereceu terríveis críticas, a ponto de ficar metido numa pasta que escapou à ação da tecla DELET por muito pouco. Li rapidamente hoje à tarde as dezessete páginas inéditas do Herbert Spencer, fragmentos biográficos, idéias e críticas, e confesso que experimentei um certo prazer perverso ao perceber a maneira como desenvolvi o assunto, destacando no que os fundamentos sobre os quais Spencer estabeleceu seu pensamento foram criticados por Russel, Bergson e Tarde.
Bem, agora é do mundo.
Está ali no link das minhas traduções, artigos, etc.
Para brincar com as tais regras às quais me referi na postagem anterior, eu mesma me dei ao trabalho de escrever um artigo do tipo supostamente respeitável, ou seja, observando todas as tais regras que ditavam espaços, margens, fontes, citações, bibliografia e sei lá o que mais. Consegui não surtar violentamente e, fato é que encontrei o tal artigo que mereceu terríveis críticas, a ponto de ficar metido numa pasta que escapou à ação da tecla DELET por muito pouco. Li rapidamente hoje à tarde as dezessete páginas inéditas do Herbert Spencer, fragmentos biográficos, idéias e críticas, e confesso que experimentei um certo prazer perverso ao perceber a maneira como desenvolvi o assunto, destacando no que os fundamentos sobre os quais Spencer estabeleceu seu pensamento foram criticados por Russel, Bergson e Tarde.
Bem, agora é do mundo.
Está ali no link das minhas traduções, artigos, etc.
Bertrand Russell (1872-1970)
O apaixonante Bertrand Russel deveria ser lido diariamente para tonificar nossos cérebros. Ele morreu velhinho, escrevendo com vigor e, sobretudo, com sua costumeira e admirável irreverência, coisa que hoje gelaria de terror alguns acadêmicos, chatos ao extremo, que diuturnamente devem dedicar todos os seus esforços para obterem, receio que com sucesso, o engessamento completo da expressão, submissa a fórmulas que aniquilam a individualidade pelo emprego de regras impostas à edição de textos e artigos científicos.
Gosto, então, em contrapartida, de mostrar o lado maroto de homens que, — ninguém duvida, contribuíram para com a criação da própria ciência, — homens que jamais deixaram de mostrar-se em seus textos, descobrindo-se perante o leitor. Spencer, — que até os trinta anos não tinha grande noção do que era filosofia — Bergson, Gabriel Tarde e Bertrand Russel, todos presentes na minha biblioteca e neste blog, mostram essa força em suas obras, e creio que é justamente aí que reside o fato de elas nos encantarem até hoje, não obstante sua alegada obsolescência.
Essas passagens são de Bertrand Russel:
...the existence of universe is an empirical fact. It is true that if the word did not exist, logic-books would not exist; but the existence of logic-books is not one of the premises of logic, nor can it be inferred from any proposition that has a right to be in a logic-book.
Para ele, foi a presunção humana, “chocada com a revelação de seu parentesco com o macaco”, que encontrou um meio de se afirmar: “esse meio é a filosofia da evolução. O processo que levou da ameba ao Homem pareceu aos filósofos um progresso patente — conquanto não se saiba se a ameba concorda com essa opinião”.
Não, ele também não foi nada complacente com os filósofos. Na conferência “Herbert Spencer”, Oxford, 1914, publicada na obra referida sob o título Sobre o método científico em filosofia, afirmou: “Dizem-nos que a vida orgânica se desenvolveu gradualmente dos protozoários ao filósofo, desenvolvimento que nos garantem ser indubitável melhora. Infelizmente, é o filósofo, não os protozoários, que o afirmam...”.
Em que pese o darwinismo ter seguidores do quilate de Huxley, Russell fez ressaltar a grande polêmica gerada em torno da questão atinente a um ancestral comum entre homens e símios. “Eu desconfio — disse ele — que tal suposição possa ofender aos macacos, mas, em todo caso, pouca gente se aborrece com isso nos dias de hoje”.
“De um modo qualquer — diz ele — sem afirmativa explícita, insinua-se a garantia de que o futuro, embora não possamos prevê-lo, será melhor que o passado ou o presente: o leitor é como a criança que espera um doce porque lhe disseram que abra a boca e feche os olhos”.
“O escravo é condenado a adorar o Tempo, o Destino e a Morte, porque são maiores do que tudo o que ele encontra em si mesmo, e porque todos os seus pensamentos são de coisas que essas forças devoram”.
Gosto, então, em contrapartida, de mostrar o lado maroto de homens que, — ninguém duvida, contribuíram para com a criação da própria ciência, — homens que jamais deixaram de mostrar-se em seus textos, descobrindo-se perante o leitor. Spencer, — que até os trinta anos não tinha grande noção do que era filosofia — Bergson, Gabriel Tarde e Bertrand Russel, todos presentes na minha biblioteca e neste blog, mostram essa força em suas obras, e creio que é justamente aí que reside o fato de elas nos encantarem até hoje, não obstante sua alegada obsolescência.
Essas passagens são de Bertrand Russel:
...the existence of universe is an empirical fact. It is true that if the word did not exist, logic-books would not exist; but the existence of logic-books is not one of the premises of logic, nor can it be inferred from any proposition that has a right to be in a logic-book.
Para ele, foi a presunção humana, “chocada com a revelação de seu parentesco com o macaco”, que encontrou um meio de se afirmar: “esse meio é a filosofia da evolução. O processo que levou da ameba ao Homem pareceu aos filósofos um progresso patente — conquanto não se saiba se a ameba concorda com essa opinião”.
Não, ele também não foi nada complacente com os filósofos. Na conferência “Herbert Spencer”, Oxford, 1914, publicada na obra referida sob o título Sobre o método científico em filosofia, afirmou: “Dizem-nos que a vida orgânica se desenvolveu gradualmente dos protozoários ao filósofo, desenvolvimento que nos garantem ser indubitável melhora. Infelizmente, é o filósofo, não os protozoários, que o afirmam...”.
Em que pese o darwinismo ter seguidores do quilate de Huxley, Russell fez ressaltar a grande polêmica gerada em torno da questão atinente a um ancestral comum entre homens e símios. “Eu desconfio — disse ele — que tal suposição possa ofender aos macacos, mas, em todo caso, pouca gente se aborrece com isso nos dias de hoje”.
“De um modo qualquer — diz ele — sem afirmativa explícita, insinua-se a garantia de que o futuro, embora não possamos prevê-lo, será melhor que o passado ou o presente: o leitor é como a criança que espera um doce porque lhe disseram que abra a boca e feche os olhos”.
“O escravo é condenado a adorar o Tempo, o Destino e a Morte, porque são maiores do que tudo o que ele encontra em si mesmo, e porque todos os seus pensamentos são de coisas que essas forças devoram”.
Herbert Spencer (1820-1903)
Um pouco mais deste solteirão encantador, que muitos consideravam mal-humorado e irreligioso:
Ainda que me acontecesse atirar pedras em pássaros por esse amor à brincadeira no qual a destreza manifestada constitui o principal prazer, todavia, em todos os casos em que havia aí imposição de sofrimento sem o elemento da habilidade, não apenas eu me abstinha, mas ainda protestava contra os atos de meus companheiros, opondo-me sempre a que, gratuitamente, se fizesse mal aos animais e a que se divertissem, por exemplo, torturando insetos.
É-me bastante amar o bilhar, e vejo como um motivo suficiente gozar esse prazer. Há muito tempo, elevo-me deliberadamente contra este ascetismo que considera como um pecado o fato de fazer-se uma coisa apenas pelo prazer de fazê-la; tenho pretendido sempre que, enquanto ninguém sofrer por isso, enquanto nós mesmos não sofrermos mais tarde, e enquanto se cumprir os diferentes deveres, a procura do prazer pelo prazer é perfeitamente legítima e dispensa escusa.
É um erro em toda a amplitude da nossa aquisição dos conhecimentos. Porque o espírito, como o corpo, não pode assimilar mais do que uma certa porção; e se o sobrecarregarem com mais fatos do que aqueles que ele pode assimilar, bem depressa serão rejeitados: em vez de contribuírem para a edificação da fábrica intelectual, são logo rejeitados pela memória depois de passarem pelo exame a que foram submetidos.
Não são os conhecimentos amontoados, como uma gordura intelectual, que têm valor; mas aqueles que se tranformam em músculo intelectual.
Um governo sem eqüidade não pode sustentar-se senão que pelo apoio de um povo proporcionalmente falto de eqüidade em seus sentimentos e em seus atos. A injustiça não pode reinar, se a comunidade não fornece uma certa quantidade de agentes injustos. Um tirano não tiraniza um povo senão que sob a condição de que esse povo seja bastante maldoso para fornecer-lhe soldados que lutarão por sua tirania e que manterão seus irmãos na escravidão. Uma classe não pode manter sua supremacia comprando votos, se não se encontrarem multidões de eleitores para vender seu voto. E assim em toda parte e em todos os escalões: a má conduta daqueles que estão no poder é correlativa à má conduta daqueles sobre quem se exerce o poder.
Ainda que me acontecesse atirar pedras em pássaros por esse amor à brincadeira no qual a destreza manifestada constitui o principal prazer, todavia, em todos os casos em que havia aí imposição de sofrimento sem o elemento da habilidade, não apenas eu me abstinha, mas ainda protestava contra os atos de meus companheiros, opondo-me sempre a que, gratuitamente, se fizesse mal aos animais e a que se divertissem, por exemplo, torturando insetos.
É-me bastante amar o bilhar, e vejo como um motivo suficiente gozar esse prazer. Há muito tempo, elevo-me deliberadamente contra este ascetismo que considera como um pecado o fato de fazer-se uma coisa apenas pelo prazer de fazê-la; tenho pretendido sempre que, enquanto ninguém sofrer por isso, enquanto nós mesmos não sofrermos mais tarde, e enquanto se cumprir os diferentes deveres, a procura do prazer pelo prazer é perfeitamente legítima e dispensa escusa.
É um erro em toda a amplitude da nossa aquisição dos conhecimentos. Porque o espírito, como o corpo, não pode assimilar mais do que uma certa porção; e se o sobrecarregarem com mais fatos do que aqueles que ele pode assimilar, bem depressa serão rejeitados: em vez de contribuírem para a edificação da fábrica intelectual, são logo rejeitados pela memória depois de passarem pelo exame a que foram submetidos.
Não são os conhecimentos amontoados, como uma gordura intelectual, que têm valor; mas aqueles que se tranformam em músculo intelectual.
Um governo sem eqüidade não pode sustentar-se senão que pelo apoio de um povo proporcionalmente falto de eqüidade em seus sentimentos e em seus atos. A injustiça não pode reinar, se a comunidade não fornece uma certa quantidade de agentes injustos. Um tirano não tiraniza um povo senão que sob a condição de que esse povo seja bastante maldoso para fornecer-lhe soldados que lutarão por sua tirania e que manterão seus irmãos na escravidão. Uma classe não pode manter sua supremacia comprando votos, se não se encontrarem multidões de eleitores para vender seu voto. E assim em toda parte e em todos os escalões: a má conduta daqueles que estão no poder é correlativa à má conduta daqueles sobre quem se exerce o poder.
Vida e Pensamento de Ingenieros
Tenho observado um elevado número de acessos às postagens dedicadas a Ingenieros aqui no blog, o que me levou a mexer nos arquivos onde guardei material sobre este autor, na época em que trabalhava junto a uma editora que pretendia reeditar sua Criminologia. Encontrei um apanhado biográfico que, agora, está à disposição de todos, logo abaixo, na parte dedicada às minhas traduções, artigos, etc. Basta acessar o link Vida e Pensamento de Ingenieros.
Chamou-me atenção especialmente a oportunidade de divulgar um pouco mais as curiosas razões que levaram o autor a escrever sua famosa obra O Homem Medíocre, maliciosamente dedicada a um inimigo político que era ninguém menos que o Presidente da República à época. Por outro lado, também curioso o fato de Ingenieros ambicionar morrer cedo, o que efetivamente lhe aconteceu. Sempre disse que preferia morrer antes de envelhecer, e escreveu sobre isso, seja em As Forças Morais, seja no próprio Homem Medíocre, onde afirmou:
Há um momento em que se alcança a plenitude máxima; depois dessa época, é-se incapaz de progredir, logo soem advertirem-se os sintomas iniciais da decadência, o tremular da chama interior que se apaga. Quando o corpo se nega a servir a todas as nossas intenções e desejos, ou quando estes são medidos em previsão de fracassos possíveis, podemos afirmar que começou a velhice.Morto aos 45 anos, fica-se a pensar no quanto teria produzido se chegasse a ostentar as cãs que tanto repúdio e receio lhes causavam a ponto de escrever delas que seria avarentas, e avareza, uma árvore estéril: Se um avaro possuísse o sol, deixaria o universo às escuras, para evitar que o seu tesouro se gastasse.
Chamou-me atenção especialmente a oportunidade de divulgar um pouco mais as curiosas razões que levaram o autor a escrever sua famosa obra O Homem Medíocre, maliciosamente dedicada a um inimigo político que era ninguém menos que o Presidente da República à época. Por outro lado, também curioso o fato de Ingenieros ambicionar morrer cedo, o que efetivamente lhe aconteceu. Sempre disse que preferia morrer antes de envelhecer, e escreveu sobre isso, seja em As Forças Morais, seja no próprio Homem Medíocre, onde afirmou:
Há um momento em que se alcança a plenitude máxima; depois dessa época, é-se incapaz de progredir, logo soem advertirem-se os sintomas iniciais da decadência, o tremular da chama interior que se apaga. Quando o corpo se nega a servir a todas as nossas intenções e desejos, ou quando estes são medidos em previsão de fracassos possíveis, podemos afirmar que começou a velhice.Morto aos 45 anos, fica-se a pensar no quanto teria produzido se chegasse a ostentar as cãs que tanto repúdio e receio lhes causavam a ponto de escrever delas que seria avarentas, e avareza, uma árvore estéril: Se um avaro possuísse o sol, deixaria o universo às escuras, para evitar que o seu tesouro se gastasse.
14 de novembro de 2008
A Arte de Mentir
"O francês distingue duas formas de mentira: a mentira verdadeira, mensonge, que é a coisa que se diz mentindo, bastas vezes mesmo de pouca importância, e menterie, outra coisa não sendo senão uma ficção oriunda da volubilidade do espírito". (p.15)
13 de novembro de 2008
Espelho de Enganos, Teatro de Verdades...
Mais unhas há; mas as que temos visto neste Tratado bastam para as conhecermos todas e para entendermos quão perniciosas e desarrazoadas são. Ab unguibus Leo, diz o provérbio — pelas unhas se conhece o leão — e pelas mesmas se conhece o ladrão. Conhecidos assim bem todos os ladrões, suas unhas e artes, boas três tesouras vos dei, para lha's cortardes todas (p.313).
9 de novembro de 2008
Eugênia Grandet
Terrível condição do homem! Não há uma só de suas felicidades que não venha de uma ignorância qualquer. (p. 87)
Os avarentos não acreditam numa vida futura, o presente é tudo para eles. Esta reflexão joga uma horrível clareza sobre a época atual, onde, mais que em nenhum outro tempo, o dinheiro domina as leis, a política e os costumes. Intituições, livros, homens e doutrinas, tudo conspira para minar a crença em uma vida futura sobre a qual o edifício social se apóia há dezoito séculos. Agora o ataúde é uma transiçao pouco temida. O amanhã que nos esperava além do réquiem foi transposto para o presente. Chegar por todos os meios, legítimos ou não, ao paraíso terrestre do luxo e dos gozos vaidosos, petrificar seu coração e macerar-se o corpo à vista de posses passageiras, como sofria-se outrora o martírio da vida à vista de bens eternos, é o pensamento geral. Pensamento, aliás, escrito em toda parte, até nas leis que perguntam ao legislador: "Que pagas tu?" em lugar de dizer-lhe: "Que pensas tu?" Quando esta doutrina houver passado da burguesia ao povo, que acontecerá ao país? (p. 142)
Os avarentos não acreditam numa vida futura, o presente é tudo para eles. Esta reflexão joga uma horrível clareza sobre a época atual, onde, mais que em nenhum outro tempo, o dinheiro domina as leis, a política e os costumes. Intituições, livros, homens e doutrinas, tudo conspira para minar a crença em uma vida futura sobre a qual o edifício social se apóia há dezoito séculos. Agora o ataúde é uma transiçao pouco temida. O amanhã que nos esperava além do réquiem foi transposto para o presente. Chegar por todos os meios, legítimos ou não, ao paraíso terrestre do luxo e dos gozos vaidosos, petrificar seu coração e macerar-se o corpo à vista de posses passageiras, como sofria-se outrora o martírio da vida à vista de bens eternos, é o pensamento geral. Pensamento, aliás, escrito em toda parte, até nas leis que perguntam ao legislador: "Que pagas tu?" em lugar de dizer-lhe: "Que pensas tu?" Quando esta doutrina houver passado da burguesia ao povo, que acontecerá ao país? (p. 142)
6 de novembro de 2008
Vida e Obra de Ravaisson
Jean-Gaspar-Félix Laché Ravaisson nasceu em 23 de outubro de 1813 em Namur, então cidade francesa, sede administrativa do departamento de Sambre-et-Meuse. Seu pai, tesoureiro-pagador nesta cidade, era originário do Meio-Dia; Ravaisson é o nome de uma pequena região situada nas proximidades de Caylus, não distante de Montauban. A criança tinha um ano apenas, quando os eventos de 1814 forçaram a família a deixar Namur. Pouco tempo depois, ele perdia seu pai. Sua primeira educação foi dirigida por sua mãe e também por seu tio materno, Gaspard-Théodore Molien, do qual tomou o nome mais tarde. Numa carta datada de 1821, Molien escreve de seu pequeno sobrinho, então com a idade de oito anos: “Félix é um matemático completo, um antiquário, um historiador, tudo enfim”. Já se revelava na criança uma qualidade intelectual à qual deviam juntar-se, facilmente, muitas outras.
A filosofia grega, – diz Ravaisson, – explica primeiro todas as coisas por um elemento material: a água, o ar, o fogo ou alguma matéria indefinida. Dominada pela sensação, como o era no início a inteligência humana, ela não conhece outra intuição que não a intuição sensível nem outro aspecto das coisas que não a materialidade. Vieram então os pitagóricos e os platônicos que mostraram a insuficiência das explicações unicamente pela matéria, e tomaram por princípio os Números e as Idéias. Mas o progresso foi mais aparente que real. Com os números pitagóricos, com as idéias platônicas, está-se na abstração e, por sábia que seja a manipulação à qual se submetem esses elementos, permanece-se no abstrato. A inteligência, maravilhada pela simplificação que ela aporta ao estudo das coisas, em as agrupando sob idéias gerais, imagina, sem dúvida, penetrar através delas até a própria substância da qual as coisas são feitas. À medida que ela via mais longe na série de generalidades, acreditava elevar-se mais na escala das realidades. Mas o que ela toma por uma espiritualidade mais alta não é senão a crescente rarefação do ar que ela respira. Ela não vê que, quanto mais uma idéia é geral, mais ela é abstrata e vazia, e que, de abstração em abstração, de generalidade em generalidade, caminha-se para o nada. O mesmo vale ater-se aos dados dos sentidos, que não nos entregam, sem dúvida, senão uma parte da realidade, mas que nos deixam ao menos sobre o sólido terreno do real. Haveria outro caminho a seguir. Isso seria prolongar a visão do olho por uma visão do espírito. Isso seria, sem abandonar o domínio da intuição, quer dizer, das coisas reais, individuais, concretas, procurar, sob a intuição sensível, uma intuição intelectual. Isso seria, por um poderoso esforço de visão mental, atravessar o invólucro material das coisas e ir ler a fórmula, invisível ao olho, que desenrola e manifesta sua materialidade. Então apareceria a unidade que liga os seres uns aos outros, a unidade de um pensamento que nós veríamos, – da matéria bruta à planta, da planta ao animal, do animal ao homem, – reunir-se sob sua própria substância até que, de concentração em concentração, chegaríamos ao pensamento divino, que pensa todas as coisas e se pensa a si mesmo. Tal foi a doutrina de Aristóteles. Tal é a disciplina intelectual da qual ele forneceu a regra e o exemplo. Nesse sentido, Aristóteles é o fundador da metafísica e o iniciador de um certo método de pensar que é a própria Filosofia.
Mas não parece duvidoso que, do período compreendido entre 1835 e 1845, date o estudo mais aprofundado que ele fez da arte italiana da Renascença. E é ao mesmo período que se deve fazer remontar a influência que teve sobre ele o mestre que não cessou jamais de ser, aos seus olhos, a personificação mesma da arte: Leonardo da Vinci.
Há, no Tratado de Pintura de Leonardo da Vinci, uma página que Ravaisson gostava de citar. É aquela onde ele diz que o ser vivo se caracteriza pela linha ondulosa ou serpentina; que cada ser tem sua maneira própria de serpentear; e que o objetivo da arte é expressar esse serpenteamento individual.”O segredo da arte de desenhar é descobrir, em cada objeto, a maneira particular através da qual ele se dirige ao longo de toda sua extensão, tal como uma onda central que se desdobra em ondas superficiais, uma certa linha flexível que é como seu eixo gerador.” Esta linha pode, aliás, não ser nenhuma das linhas visíveis da figura. Ela não está mais aqui do que ali, mas ela dá a chave de tudo. Ela é menos percebida pelo olho que pensada pelo espírito. “A pintura, – dizia Leonardo da Vinci, – é coisa mental.” E acrescenta que é a alma que faz o corpo a sua imagem. A obra inteira do mestre poderia servir de comentário a essa frase. Detenhamo-nos perante o retrato de Monna Lisa ou mesmo diante daquele de Lucrezia Crivelli: não nos parece que as linhas visíveis da figura vão na direção de um centro virtual situado atrás da tela, onde se descobriria de um golpe, reunido numa só palavra, o segredo que nós jamais terminaríamos de ler, frase a frase, na enigmática fisionomia? É aí que o pintor está colocado. É desenvolvendo uma visão mental simples, concentrada neste ponto, que ele encontrou, traço por traço, o modelo que tinha sob os olhos, reproduzindo, à sua maneira, o esforço gerador da natureza.
A arte do pintor não consiste, pois, para Leonardo da Vinci, em detalhar cada um dos traços do modelo, para transportá-los à tela, reproduzindo, porção por porção, a materialidade. Ela não consiste, não mais, em figurar eu não sei que tipo impessoal e abstrato, onde o modelo que se vê e que se toca vem a dissolver-se numa vaga idealidade. A verdadeira arte visa a expressar a individualidade do modelo e, para isso, ela vai procurar, atrás das linhas que se vêem, o movimento que o olho não vê, atrás do próprio movimento, alguma coisa de mais secreta ainda, a intenção original, a aspiração fundamental da pessoa, pensamento simples que equivale à riqueza indefinida de formas e de cores.
Como não ser surpreendido pela semelhança entre esta estética de Leonardo da Vinci e a metafísica de Aristóteles, tal como Ravaisson a interpreta?
Fonte: Berson, Henri, La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Presses Universitaires de France, 1950, 27ª edição, Paris, 1950, Capítulo IX. A Vida e a Obra de Ravaisson, tradução parcial.
2 de novembro de 2008
Ambiente Acolhedor
Nesta prateleira onde está escrito São Paulo, bem embaixo, estavam duas edições muito interessantes e belíssimas: uma sobre o MASP e outra sobre a cidade de SP, seus palácios e as obras de arte que possui. Um verdadeiro catálogo. Essas duas, e ainda outras duas de outro sebo, ambas sobre arte, eu trouxe comigo. A propósito, tudo presente do Rogério.
Cinco Andares Repletos de Livros
Justamente isso. Em SP, na famosa Rua Aurora, fica um sebo de cinco andares (eu disse CINCO mesmo...) e mais um subsolo ainda. Dá pra imaginar? Tem literalmente de tudo por lá. Acho que nem preciso dizer como me senti num lugar desses, preciso? E olhem o charme do nome: LIVRARIA TREZE LISTRAS...
26 de outubro de 2008
A Dignidade
Os estóicos ensinavam os segredos da dignidade: contentar-se com o que tem, restringindo as próprias necessidades. Um homem livre não espera nada dos outros, nem precisa pedir. A felicidade que o dinheiro dá está em não ser obrigado a pensar nele: por ignorar este preceito, o avaro não é livre, nem feliz.
Os bens que temos são a base de nossa independência; os bens que desejamos são os anéis da corrente que nos liga à escravidão. A fortuna aumenta a liberdade dos espíritos cultos, e torna vergonhoso o ridículo dos papalvos. É suprema a indignidade dos que adulam tendo fortuna; esta os redimiria de todas as domesticidades, se não fossem escravos da vaidade.
Os únicos bens intangíveis são aqueles que se acumulam no cérebro e no coração; quando estes faltam, nenhum tesouro os substitui.
J. Ingenieros
Os bens que temos são a base de nossa independência; os bens que desejamos são os anéis da corrente que nos liga à escravidão. A fortuna aumenta a liberdade dos espíritos cultos, e torna vergonhoso o ridículo dos papalvos. É suprema a indignidade dos que adulam tendo fortuna; esta os redimiria de todas as domesticidades, se não fossem escravos da vaidade.
Os únicos bens intangíveis são aqueles que se acumulam no cérebro e no coração; quando estes faltam, nenhum tesouro os substitui.
J. Ingenieros
O Hipócrita
Uma palavra do hipócrita basta para separar dois amigos, ou para distanciar dois amantes. Suas armas são poderosas, devido a serem invisíveis; com uma suspeita falsa, pode envenenar uma felicidade, destruir uma harmonia, quebrar uma concordância.
J. Ingenieros
J. Ingenieros
AS CARTAS VII
Poesia de Francisco para Maria remetida em agosto de 1923
Ao teu ouvido, em surdina...
Teu perfil, pouco a pouco, suaviza-se
no ouro embaciado do crepúsculo.
O crepúsculo é um cofre de veludo,
onde teu perfil repousa,
no silêncio das horas...
Mística doçura envolve tudo...
Estremecem lágrimas no olhar das coisas...
E o crepúsculo, brandamente,
cobre de cinzas teu perfil,
no silêncio das horas...
Ao teu ouvido, em surdina...
Teu perfil, pouco a pouco, suaviza-se
no ouro embaciado do crepúsculo.
O crepúsculo é um cofre de veludo,
onde teu perfil repousa,
no silêncio das horas...
Mística doçura envolve tudo...
Estremecem lágrimas no olhar das coisas...
E o crepúsculo, brandamente,
cobre de cinzas teu perfil,
no silêncio das horas...
René Worms (1869-1926)
Sociólogo francês nascido em Rennes em 1869. Auditor do Conselho de Estado, ensinou Direito em Caen (1897-1902) e no Instituto Comercial (1902). Ele fundou o Instituto Internacional de Sociologia. Suas obras filosóficas são: Précis de philosophie e Elements de philosophie scientifique (1891), um estudo sobre a moral de Espinoza, Morale de Spinoza (1892). Além de diversas obras sobre Direito e economia política, ele escreveu uma Philosophie des sciences sociales.
Fonte: Larousse du XXe. Siècle.
Mais aqui mesmo em René Worms
Fonte: Larousse du XXe. Siècle.
Mais aqui mesmo em René Worms
René Worms
Tarde,
As Transformaçoes do Direito
René Worms
A obra do Senhor Tarde sobre as transformações do direito[1] é um ensaio de sistemática jurídica. O zoólogo pode, ou examinar uma a uma as espécies, traçando a monografia de cada uma delas, ou seguir, no conjunto do reino animal, um ou mais órgãos, uma ou mais funções; do mesmo modo, o sociólogo pode, ou dar a descrição de uma nação isolada, ou ligar-se a uma ordem de fatos no conjunto das nações. O senhor Tarde escolheu a segunda via, e ligou-se primeiro à série de fatos que lhe são profissional e cientificamente os mais familiares: os fatos jurídicos. Seu livro, seguindo a própria ordem na qual são verdadeiramente desenvolvidas as matérias do direito, estuda sucessivamente a história do direito criminal, do processo, do regime de pessoas, do regime de bens, do direito das obrigações. Ele termina por dois capítulos sobre a doutrina do direito natural, e sobre as relações do direito e da sociologia. A idéia mestra desse livro é aquela que o autor já desenvolveu com talento em sua obra precedente: Les lois de l'imitation, e que ele próprio resumiu, aliás, nesta fórmula surpreendente: a diversidade, e não a unidade, está no coração das coisas. Ao contrário do senhor Spencer, (...) ele não crê em uma homogeneidade primitiva, da qual o heterogêneo teria saído ulteriormente pela diferenciação. Ele acredita, ao contrário, na originária heterogeneidade dos seres, na seqüência, mais ou menos aproximados uns dos outros pela imitação que faz o grande número das invenções de alguns. Também se ergue ele com força contra a teoria daqueles que crêem na identidade fundamental da evolução jurídica em todos os povos. Para ele, os processos desta evolução foram múltiplos e diversos. Cada grupo humano teve seu direito distinto na origem e não foi senão progressivamente que o direito se unificou, sob a ação de grupos que o haviam aperfeiçoado. Primitivamente, cada família formava um todo fechado, de onde nada transpirava para fora: tinha sua propriedade para si, ciumentamente fechada ao estrangeiro, seus contratos e seus delitos domésticos eram sancionados pela autoridade familial, tudo como teve ela, a família, suas tradições e seu culto. Progressivamente, a nação do direito amplia-se: admite-se que contrate, com os membros da família, aquele que não pertence a ela; em lugar vê-lo como um inimigo, — em relação ao qual tudo era primitivamente permitido, — aplicam-se a ele, em suas relações com os membros da família, as mesmas regras menos severas do direito penal familiar; mais tarde, depois que as famílias concluíram semelhantes pactos entre elas, admitiu-se beneficiar com o direito aquele que se situava fora dessas gentes fortemente hierarquizadas: o plebeu, o estrangeiro, o escravo; e terminou-se por ter a noção de uma justiça comum a toda humanidade, de um direito de todos os homens à liberdade, à equidade, à propriedade mesmo. Em suma, pois, foi o direito familial que, — em se generalizando, em se estendendo pouco a pouco por efeito da imitação e da simpatia, — engendrou o direito nacional, depois, o direito humano. Os historiadores da legislação romana objetarão, sem dúvida, que, segundo as idéias aceitas, não há propriamente como falar de direito no interior da gens, o pater familias, proprietário das pessoas e dos bens, regendo-a de acordo com sua vontade; e que, por conseqüência, é apenas nas relações interfamiliares que pôde nascer o direito. Todavia, a nosso sentir, o senhor Tarde poderia responder que esta concepção da gens não é absolutamente exata: mesmo na família romana antiga, havia um direito ao menos rudimentar: quando o pai, por exemplo, condenava seu filho à morte, ele não fazia senão uso do direito que tem o proprietário de destruir sua coisa, ele age como magistrado doméstico; e a prova é que ele busca o parecer de um consilium. Está-se, pois, autorizado a ver, no direito de família, a origem de todo direito.
Insistimos nesta idéia, porque ela nos pareceu a idéia mestra do livro de T. Lamentamos não dispor do espaço necessário para sinalar agora todos os detalhes curiosos, novos, sugestivos que pululam nesse livro. O autor indica com razão diferenças essenciais entre a história do direito grego e aquela do direito romano. Ele duvida muito de que o matriarcado haja, na origem, reinado em toda parte; mas é ir muito longe perguntar se “esse matriarcado tão famoso existiu”. Ele sinala, em nossa civilização francesa contemporânea, singulares sobrevivências de casamentos obrigatórios ou proibidos. A transformação da nobreza forneceu-lhe interessantes observações. A propriedade privada parece-lhe tão antiga quanto a propriedade coletiva; o comunismo de aldeia é posterior ao comunismo de família, o mir e a zadruga não remontam aos primeiros tempos da humanidade; as comunidades que se organizaram na Idade Média, as “comunas[2] juradas”, por exemplo, não foram senão que uma imitação dos conventos (capítulo IV). É falso que todos os povos tenham sido primeiro caçadores, depois pastores, depois agricultores. Conhecem-se povos onde a ordem desta evolução foi invertida, outros que jamais conheceram o estado pastoral. Não há mais uniformidade na evolução do direito de hereditariedade. Vê-se, com os progressos da civilização, recuar a idade da maioridade e elevar-se a duração da posse requerida para prescrever. Em matéria de obrigações, o contrato não é senão um derivado da declaração unilateral de vontade, que reaparece hoje e tende a limitar o domínio das obrigações contratuais. O direito natural não nasceu em Roma do comércio internacional, mas da filosofia, que generalizou, em as estendendo, as relações de todos os homens, as regras que governavam as relações dos cidadãos entre si. Jamais houve a fusão do jus naturale e do jus gentium. A idéia do direito natural encontra no senhor Tarde um contraditor encarniçado: ele declara-a pouco precisa e imprópria para guiar o legislador. Ao contrário, ele acentua, para a educação do jurista, a sociologia, da qual o direito não é, para ele, senão que um fragmento. Sem dúvida, como a linguagem (com a qual T. o compara muito engenhosamente) o direito “é o espelho integral da vida social”. Mas “é preciso estudá-lo como um simples ramo da sociologia, se quisermos compreendê-lo em sua realidade viva e completa”.
Eis algumas das concepções do autor. Elas podem, — nesta enumeração rápida que fizemos, — parecer um pouco chocantes e assaz mediocremente coerentes. Confessamos que, com a leitura do livro, um leitor superficial poderia ser tentado a fazer esta reprovação contra o autor mesmo. A idéia fundamental que tentamos destacar a toda hora, domina-o, todavia, e inspira-o em toda parte. A vivacidade, a originalidade do estilo vêm apenas tornar a leitura mais atraente e mais fácil.
O senhor Tarde acrescenta às suas idéias científicas algumas idéias de reformas que convocam a contradição. Ele persegue com seu ódio (aqui e em outras publicações) a instituição do júri: “o que existe de menos perfeito no mundo”, — escreve ele — “é o júri”. O direito à apelação não lhe parece menos contestável que contestado. Ele estima que “o processo ideal não implica necessariamente na existência de advogados e de meirinhos”. Ele não deposita maior confiança no dogma da dualidade das Câmaras, e encontra que não se deveria “poder fabricar leis, a não ser com a condição de apresentar, ao menos, as mesmas provas oficiais que se exigem dos juízes encarregados unicamente de aplicá-las”. Mesma independência de espírito à vista das teorias da ciência pura. No auge da corrente das idéias evolucionistas, e simpático, em suma, ao movimento geral que elas representam, T. guarda-se bem, no mínimo, de aceitá-las inteiramente feitas. Vimos mesmo que sua doutrina mestra faz antítese àquela de Spencer. Ele chega até a falar, em alguma parte, das “pretensas leis da evolução”, opondo-as às únicas verdadeiras leis, as “leis de causação”. E, todavia, à descoberta dessas leis de evolução, ele aporta o concurso mais eficaz, em destacando o critério que permite reconhecê-las. Para que a relação que une dois fenômenos sucessivos seja uma relação necessária, ou seja, uma lei, para que, em uma palavra, se possa afirmar que é nesse sentido que a evolução deveu se produzir, o que é preciso? É preciso — responde Tarde — que essa relação seja irreversível, critério que ele, mais de uma vez, aplicou com engenhosidade em seu livro. — Ei-nos aí bem adiantados, — responder-se-á; — a fórmula é evidente, e o que é evidente não nos ensina nada. — Mas as fórmulas da lógica aristotélica são evidentes, elas também, e é precisamente isso que faz sua força. Pode-se sustentar que elas não nos tenham ensinado nada? Quem sabe, — diremos nós, — se, no critério das leis de sucessão, não existe o gérmen de toda uma lógica nova, a lógica — não mais metafísica, à maneira de Hegel, — mas científica, da evolução?
Revue des livres. Tarde, Les Transformations du Droit, par René Worms. Extraído da Revue internationale de Sociologie, 1º. ano, n° 1, janeiro-fevereiro de 1893, p. 101-104. Disponível em Les Classiques des Sciences Sociales. Tradução: Maristela Bleggi Tomasini.
[1] Gabriel Tarde, Les Transformations du Droit. Paris, Félix Alcan (Bibliothèque de philosophie contemporaine), 1893 ; un vol. in-18, de 212 p.
[2] Chamavam-se comunas, na Idade Média, as cidades que haviam obtido por carta do Senhor um estatuto mais ou menos iberal, comportando uma certa autonomia, com jurisdição e finanças próprias. Larousse du XX Siècle, op. Cit. (N. da T.)
As Transformaçoes do Direito
René Worms
A obra do Senhor Tarde sobre as transformações do direito[1] é um ensaio de sistemática jurídica. O zoólogo pode, ou examinar uma a uma as espécies, traçando a monografia de cada uma delas, ou seguir, no conjunto do reino animal, um ou mais órgãos, uma ou mais funções; do mesmo modo, o sociólogo pode, ou dar a descrição de uma nação isolada, ou ligar-se a uma ordem de fatos no conjunto das nações. O senhor Tarde escolheu a segunda via, e ligou-se primeiro à série de fatos que lhe são profissional e cientificamente os mais familiares: os fatos jurídicos. Seu livro, seguindo a própria ordem na qual são verdadeiramente desenvolvidas as matérias do direito, estuda sucessivamente a história do direito criminal, do processo, do regime de pessoas, do regime de bens, do direito das obrigações. Ele termina por dois capítulos sobre a doutrina do direito natural, e sobre as relações do direito e da sociologia. A idéia mestra desse livro é aquela que o autor já desenvolveu com talento em sua obra precedente: Les lois de l'imitation, e que ele próprio resumiu, aliás, nesta fórmula surpreendente: a diversidade, e não a unidade, está no coração das coisas. Ao contrário do senhor Spencer, (...) ele não crê em uma homogeneidade primitiva, da qual o heterogêneo teria saído ulteriormente pela diferenciação. Ele acredita, ao contrário, na originária heterogeneidade dos seres, na seqüência, mais ou menos aproximados uns dos outros pela imitação que faz o grande número das invenções de alguns. Também se ergue ele com força contra a teoria daqueles que crêem na identidade fundamental da evolução jurídica em todos os povos. Para ele, os processos desta evolução foram múltiplos e diversos. Cada grupo humano teve seu direito distinto na origem e não foi senão progressivamente que o direito se unificou, sob a ação de grupos que o haviam aperfeiçoado. Primitivamente, cada família formava um todo fechado, de onde nada transpirava para fora: tinha sua propriedade para si, ciumentamente fechada ao estrangeiro, seus contratos e seus delitos domésticos eram sancionados pela autoridade familial, tudo como teve ela, a família, suas tradições e seu culto. Progressivamente, a nação do direito amplia-se: admite-se que contrate, com os membros da família, aquele que não pertence a ela; em lugar vê-lo como um inimigo, — em relação ao qual tudo era primitivamente permitido, — aplicam-se a ele, em suas relações com os membros da família, as mesmas regras menos severas do direito penal familiar; mais tarde, depois que as famílias concluíram semelhantes pactos entre elas, admitiu-se beneficiar com o direito aquele que se situava fora dessas gentes fortemente hierarquizadas: o plebeu, o estrangeiro, o escravo; e terminou-se por ter a noção de uma justiça comum a toda humanidade, de um direito de todos os homens à liberdade, à equidade, à propriedade mesmo. Em suma, pois, foi o direito familial que, — em se generalizando, em se estendendo pouco a pouco por efeito da imitação e da simpatia, — engendrou o direito nacional, depois, o direito humano. Os historiadores da legislação romana objetarão, sem dúvida, que, segundo as idéias aceitas, não há propriamente como falar de direito no interior da gens, o pater familias, proprietário das pessoas e dos bens, regendo-a de acordo com sua vontade; e que, por conseqüência, é apenas nas relações interfamiliares que pôde nascer o direito. Todavia, a nosso sentir, o senhor Tarde poderia responder que esta concepção da gens não é absolutamente exata: mesmo na família romana antiga, havia um direito ao menos rudimentar: quando o pai, por exemplo, condenava seu filho à morte, ele não fazia senão uso do direito que tem o proprietário de destruir sua coisa, ele age como magistrado doméstico; e a prova é que ele busca o parecer de um consilium. Está-se, pois, autorizado a ver, no direito de família, a origem de todo direito.
Insistimos nesta idéia, porque ela nos pareceu a idéia mestra do livro de T. Lamentamos não dispor do espaço necessário para sinalar agora todos os detalhes curiosos, novos, sugestivos que pululam nesse livro. O autor indica com razão diferenças essenciais entre a história do direito grego e aquela do direito romano. Ele duvida muito de que o matriarcado haja, na origem, reinado em toda parte; mas é ir muito longe perguntar se “esse matriarcado tão famoso existiu”. Ele sinala, em nossa civilização francesa contemporânea, singulares sobrevivências de casamentos obrigatórios ou proibidos. A transformação da nobreza forneceu-lhe interessantes observações. A propriedade privada parece-lhe tão antiga quanto a propriedade coletiva; o comunismo de aldeia é posterior ao comunismo de família, o mir e a zadruga não remontam aos primeiros tempos da humanidade; as comunidades que se organizaram na Idade Média, as “comunas[2] juradas”, por exemplo, não foram senão que uma imitação dos conventos (capítulo IV). É falso que todos os povos tenham sido primeiro caçadores, depois pastores, depois agricultores. Conhecem-se povos onde a ordem desta evolução foi invertida, outros que jamais conheceram o estado pastoral. Não há mais uniformidade na evolução do direito de hereditariedade. Vê-se, com os progressos da civilização, recuar a idade da maioridade e elevar-se a duração da posse requerida para prescrever. Em matéria de obrigações, o contrato não é senão um derivado da declaração unilateral de vontade, que reaparece hoje e tende a limitar o domínio das obrigações contratuais. O direito natural não nasceu em Roma do comércio internacional, mas da filosofia, que generalizou, em as estendendo, as relações de todos os homens, as regras que governavam as relações dos cidadãos entre si. Jamais houve a fusão do jus naturale e do jus gentium. A idéia do direito natural encontra no senhor Tarde um contraditor encarniçado: ele declara-a pouco precisa e imprópria para guiar o legislador. Ao contrário, ele acentua, para a educação do jurista, a sociologia, da qual o direito não é, para ele, senão que um fragmento. Sem dúvida, como a linguagem (com a qual T. o compara muito engenhosamente) o direito “é o espelho integral da vida social”. Mas “é preciso estudá-lo como um simples ramo da sociologia, se quisermos compreendê-lo em sua realidade viva e completa”.
Eis algumas das concepções do autor. Elas podem, — nesta enumeração rápida que fizemos, — parecer um pouco chocantes e assaz mediocremente coerentes. Confessamos que, com a leitura do livro, um leitor superficial poderia ser tentado a fazer esta reprovação contra o autor mesmo. A idéia fundamental que tentamos destacar a toda hora, domina-o, todavia, e inspira-o em toda parte. A vivacidade, a originalidade do estilo vêm apenas tornar a leitura mais atraente e mais fácil.
O senhor Tarde acrescenta às suas idéias científicas algumas idéias de reformas que convocam a contradição. Ele persegue com seu ódio (aqui e em outras publicações) a instituição do júri: “o que existe de menos perfeito no mundo”, — escreve ele — “é o júri”. O direito à apelação não lhe parece menos contestável que contestado. Ele estima que “o processo ideal não implica necessariamente na existência de advogados e de meirinhos”. Ele não deposita maior confiança no dogma da dualidade das Câmaras, e encontra que não se deveria “poder fabricar leis, a não ser com a condição de apresentar, ao menos, as mesmas provas oficiais que se exigem dos juízes encarregados unicamente de aplicá-las”. Mesma independência de espírito à vista das teorias da ciência pura. No auge da corrente das idéias evolucionistas, e simpático, em suma, ao movimento geral que elas representam, T. guarda-se bem, no mínimo, de aceitá-las inteiramente feitas. Vimos mesmo que sua doutrina mestra faz antítese àquela de Spencer. Ele chega até a falar, em alguma parte, das “pretensas leis da evolução”, opondo-as às únicas verdadeiras leis, as “leis de causação”. E, todavia, à descoberta dessas leis de evolução, ele aporta o concurso mais eficaz, em destacando o critério que permite reconhecê-las. Para que a relação que une dois fenômenos sucessivos seja uma relação necessária, ou seja, uma lei, para que, em uma palavra, se possa afirmar que é nesse sentido que a evolução deveu se produzir, o que é preciso? É preciso — responde Tarde — que essa relação seja irreversível, critério que ele, mais de uma vez, aplicou com engenhosidade em seu livro. — Ei-nos aí bem adiantados, — responder-se-á; — a fórmula é evidente, e o que é evidente não nos ensina nada. — Mas as fórmulas da lógica aristotélica são evidentes, elas também, e é precisamente isso que faz sua força. Pode-se sustentar que elas não nos tenham ensinado nada? Quem sabe, — diremos nós, — se, no critério das leis de sucessão, não existe o gérmen de toda uma lógica nova, a lógica — não mais metafísica, à maneira de Hegel, — mas científica, da evolução?
Revue des livres. Tarde, Les Transformations du Droit, par René Worms. Extraído da Revue internationale de Sociologie, 1º. ano, n° 1, janeiro-fevereiro de 1893, p. 101-104. Disponível em Les Classiques des Sciences Sociales. Tradução: Maristela Bleggi Tomasini.
[1] Gabriel Tarde, Les Transformations du Droit. Paris, Félix Alcan (Bibliothèque de philosophie contemporaine), 1893 ; un vol. in-18, de 212 p.
[2] Chamavam-se comunas, na Idade Média, as cidades que haviam obtido por carta do Senhor um estatuto mais ou menos iberal, comportando uma certa autonomia, com jurisdição e finanças próprias. Larousse du XX Siècle, op. Cit. (N. da T.)
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