Carta de Francisco para Maria de 1º de agosto de 1924.
Maria,
Perdoa-me os versos que hoje te mando. Eu vivi contigo dentro da tua velha casa. Tu partiste; eu fiquei. Ficaram comigo a tua imagem e a saudade, que acorda dentro de mim a imagem da vida que lá vivemos.
A nossa velha casa... Ela era grande, mas para mim se resumia, apenas, no aposento onde tu pensavas no teu amor, sozinha com ele, perfumando-o de carícias.
O teu aposento era pequenino e lindo. Tinha um ar estranho de mistério e sensualidade. Evocava-me, não sei por que, em originais e suaves mutações, cenas febris do Oriente e a vida límpida e pacífica dos santos.
A um canto, sobre um tapete persa, repousava um divã cor de trevo. Era esse o teu recanto predileto.
− É o templo da preguiça e dos sonhos, tu me dizias, sorrindo.
E o teu sorriso, de súbito, abria um reflexo de luz na sala toda e alumiava a minha alma.
O piano, ao longo da parede, punha uma nota solene na melancolia do aposento.
À noite, depois do chá, mal acabavam de soar, no relógio da Igreja, as badaladas das dez horas, tu te sentavas ao piano. E logo, os primeiros acordes da Cathedral Engloutie começavam espaçados, sonolentos, envoltos em sombra, a arrancar pedaços de alma...
Bem me lembro de tudo isso... Eras muito religiosa também. Junto a uma janela, colocaste um oratório, com a imagem de Santa Teresa do Menino Jesus, e uma chama de amor e de fé, a crepitar.
Tinhas uma devoção especial por essa Santa. Recordo que, uma vez, eu fui te encontrar de joelhos em frente dela, numa atitude de êxtase, e uma imploração no olhar. Sorriste, confusa, ao ver-me. E depois, cheia de pudor, a cabeça deitada no meu ombro, confessaste-me o teu pedido: a graça de não acontecer uma coisa que temias... Depois, choraste muito, e eu chorei também... Ficamos os dois, longo tempo, a chorar, ingenuamente, sem saber por que, quase sem querer...
Tudo isso na velha casa... Como eu me lembro!... E como é bom lembrar!... como é bom evocar o tempo que passou, o nosso tempo, aquele tempo... Recordar, ressentir o que ficou lá longe, perdido... Velhas sensações que nos despertam novas... Frangalhos de nós mesmos deixados ao longo do tempo... O passado... Bastante razão tem Henri Bataille: o passado é um segundo coração que bate em nós...
Um grande pensamento
do teu
Francisco