Carta de Francisco para Maria escrita em agosto de 1924.
Maria,
Ontem, fui até a casa que abandonaste. Fui em visita de recordação, sofrer a volúpia do abandono.
Pobre casa que te guardou!... Quando cheguei, à procura de qualquer coisa que lá houvesses deixado: um perfume, uma expressão... ela me sorriu um sorriso de tristeza, em que vislumbrei uma queixa, um desconsolo doloroso de velharia abandonada.
Estive, horas e horas, a conversar com ela, a exumar, a reviver... Falou-me, em seguida, de uns olhos, de uma boca, de uns cabelos... Recordou-me um gesto que me enternecera, um dia... Um pedido que me cobrira de emoção... uma promessa que enchera de esperança a minha vida... Contou-me a história de uma separação, que o amor desfizera, para tornar mais nova, mais cheia de encantos, a união... Lembrou-me certas perversidades, certas contrariedades propositais, certos gestos dúbios, que são a tortura e a delícia do amor...
Avivou-me n’alma trechos de dor, trechos de alegria, e tanta coisa, tanta coisa mais... Confidências, frangalhos de alma, pedaços de vida, coisas passadas, coisas vividas que já estão na memória, mas que ainda alegram ou doem...
Disse-me então, que é viva de segredos, de mistérios, de palavras que nunca tocaram ouvido algum, de confissões que morreram no silêncio...
Pôs-se a recordar, depois, a vida que vivera antes. Os dias de festa, os dias de esplendor, quando o seu interior era sacudido pela sonoridade das risadas felizes. A graça feminina que lhe povoara de leve o ambiente... Toda a sua vida anterior, luminosa, e, agora, aquele vazio, aquele silêncio...
— É o fim de todas as coisas, minha pobre amiga.
A casa sorriu tristemente e acabou:
— Vivo, agora, da saudade do que fui antes, da lembrança do que, talvez, não serei mais...
E desandou a chorar. Chorei com ela. Nesse momento, ameia-a mais que nunca. Éramos irmãos na mesma dor...
Deixei-a chorando ainda. E quando me separava, os meus passos acordaram os teus passos adormecidos na calçada.
E eu senti, então, a ilusão da tua chegada.
Mas, não chegaste. Chegou a Tristeza, que me levou, carinhosa e boa, abraçada comigo, até ao meu quarto. Foi a minha companhia de vigília nessa noite. Depois ficou morando comigo. Santa Tristeza!
Santa Tristeza!
Meu amor!
Do teu
Francisco
Observações:
Maria,
Ontem, fui até a casa que abandonaste. Fui em visita de recordação, sofrer a volúpia do abandono.
Pobre casa que te guardou!... Quando cheguei, à procura de qualquer coisa que lá houvesses deixado: um perfume, uma expressão... ela me sorriu um sorriso de tristeza, em que vislumbrei uma queixa, um desconsolo doloroso de velharia abandonada.
Estive, horas e horas, a conversar com ela, a exumar, a reviver... Falou-me, em seguida, de uns olhos, de uma boca, de uns cabelos... Recordou-me um gesto que me enternecera, um dia... Um pedido que me cobrira de emoção... uma promessa que enchera de esperança a minha vida... Contou-me a história de uma separação, que o amor desfizera, para tornar mais nova, mais cheia de encantos, a união... Lembrou-me certas perversidades, certas contrariedades propositais, certos gestos dúbios, que são a tortura e a delícia do amor...
Avivou-me n’alma trechos de dor, trechos de alegria, e tanta coisa, tanta coisa mais... Confidências, frangalhos de alma, pedaços de vida, coisas passadas, coisas vividas que já estão na memória, mas que ainda alegram ou doem...
Disse-me então, que é viva de segredos, de mistérios, de palavras que nunca tocaram ouvido algum, de confissões que morreram no silêncio...
Pôs-se a recordar, depois, a vida que vivera antes. Os dias de festa, os dias de esplendor, quando o seu interior era sacudido pela sonoridade das risadas felizes. A graça feminina que lhe povoara de leve o ambiente... Toda a sua vida anterior, luminosa, e, agora, aquele vazio, aquele silêncio...
— É o fim de todas as coisas, minha pobre amiga.
A casa sorriu tristemente e acabou:
— Vivo, agora, da saudade do que fui antes, da lembrança do que, talvez, não serei mais...
E desandou a chorar. Chorei com ela. Nesse momento, ameia-a mais que nunca. Éramos irmãos na mesma dor...
Deixei-a chorando ainda. E quando me separava, os meus passos acordaram os teus passos adormecidos na calçada.
E eu senti, então, a ilusão da tua chegada.
Mas, não chegaste. Chegou a Tristeza, que me levou, carinhosa e boa, abraçada comigo, até ao meu quarto. Foi a minha companhia de vigília nessa noite. Depois ficou morando comigo. Santa Tristeza!
Santa Tristeza!
Meu amor!
Do teu
Francisco
Observações:
É notável como Francisco encontra, no fato de sofrer, um consolo para a ausência de sua amada. Como se ir até a casa de onde sua Maria se mudara fosse trazê-la para mais perto dele. Recordar-se de coisas alegres ou tristes, cuidar de reviver na memória os menores gestos e detalhes, fosse um perfume, fosse o som de passos na calçada. Ao menos sua ausência, sentida com intensidade, parece-lhe servir de consolo. Estas cartas de 1924 são especialmente poéticas e apresentam passagens notáveis, como aquela da união desfeita pelo próprio amor, para torná-la mais forte. Francisco foi um romântico incorrigível e suas cartas dão inegável testemunho disso. No entanto, ele também encarna um jovem porto-alegrense dos anos vinte, estudante, culto e, penso eu, elegante e refinado, seja pela letra, seja pela correção e estilo. Maria, por sua vez, nos é revelada através do amor de Francisco que, embora não a descreva fisicamente nas cartas, nos fornece dados não pouco precisos sobre a jovem que encantou e o manteve cativo por décadas e décadas, deixando-nos suas cartas como testemunho de sua história.