19 de novembro de 2008

AS CARTAS VIII

Carta de Francisco para Maria.
Sem data.

Maria,
A paciência é o mais difícil dos heroísmos, o heroísmo constante, quotidiano. Isso nos ensina, com profunda sabedoria, numa lição cheia de verdade, o pensador francês Maxime de Champ. E, ao mesmo tempo, inspira-nos esse heroísmo, mostrando-nos, a traços firmes e claros, o espetáculo da vida, o conflito eterno dos seres, a luta silenciosa do bem e do mal. Este aparece com a maior freqüência que aquele. É uma conseqüência natural e lógica da própria luta em que os homens se empenham constante e eternamente, acumulando na sua alma um patrimônio de ódios, vinganças e maldades.
Por isso, como diz Anatole, “é necessário saber sofrer”, porque a ciência da dor é a única ciência da vida.
E a criatura humana aprende a sofrer somente quando atinge a esse estado que eu chamo divino, de paciência, depois de haver sofrido com resignação toda gama pungente das dores deste mundo.

Vieram-me ao pensamento essas breves considerações, porque um homem, perverso e infeliz, e a quem dediquei, há até bem pouco tempo, grande parte da minha afetividade, acaba de projetar na minha vida a amargura de um mal, felizmente reparável, por ser apenas material. E é esse homem que me impede de ir visitar-te... Saberás o porquê mais tarde.
Mas, eu, que já aprendi a sofrer, sei perdoar. E perdoei-o. Perdoei-o como se deve perdoar, com o mais nobre e verdadeiro perdão: esquecendo o mal produzido.
Para mim, o homem é tão ínfimo, tão miserável, que o acho até indigno de receber das almas superiores um gesto verberativo, uma atitude condenatória aos seus atos de torpeza. O homem superior teria de descer demasiado. E eles não merecem tal honra. Eles merecem apenas um piedoso e completo perdão, que é o desprezo superior dos espíritos nobres.

Não sei se ainda esta semana poderei gozar o encanto doce e perfumado do teu convívio, dentro da beleza pagã e luminosa da natureza, nesse recanto delicioso do nosso Estúdio. Correr contigo, nas manhãs radiosas de sol, pelos campos úmidos, a aspirar o cheiro ocre e sadio das resinas campestres. Embriagar-me, perto de ti, à hora fauniana do meio-dia, na preguiça sensual do repouso. E, à tarde, quando o sol pintasse de ametista o horizonte, contemplar o crepúsculo do dia através do crepúsculo dos teus olhos, cantando na minha lira de Apolo a imortalidade do nosso sonho. E depois, trêmulos, amorosos, debaixo da palidez clorótica da lua, sonharmos, sentindo na carne a carícia de seda dos dedos invisíveis da noite.

Que doçura, que sonho, que poesia, meu amor, meu amor, meu grande amor...
Do teu Francisco.

Observações:Esta carta me parece ser bem posterior àquelas postadas até agora. Espantoso como Francisco não consegue esconder a imensa frustração que experimentou ao perceber que não poderia rever sua Maria, supostamente, por conta de alguém que não cumpriu com a palavra empenha. Conquanto queira mostrar-se superior, esforçando-se por perdoar o tal homem perverso, Francisco não esconde o sentimento de desprezo e repulsa que filosoficamente nutre contra quem o impediu de estar com sua amada. Quando leio coisas assim, viajo no tempo. E fico eu mesma imaginando o que terá sido um romance vivido dessa forma, entre personagens reais que habitaram Porto Alegre há tanto tempo.