26 de outubro de 2008

René Worms

Tarde,
As Transformaçoes do Direito

René Worms

A obra do Senhor Tarde sobre as transformações do direito[1] é um ensaio de sistemática jurídica. O zoólogo pode, ou examinar uma a uma as espécies, traçando a monografia de cada uma delas, ou seguir, no conjunto do reino animal, um ou mais órgãos, uma ou mais funções; do mesmo modo, o sociólogo pode, ou dar a descrição de uma nação isolada, ou ligar-se a uma ordem de fatos no conjunto das nações. O senhor Tarde escolheu a segunda via, e ligou-se primeiro à série de fatos que lhe são profissional e cientificamente os mais familiares: os fatos jurídicos. Seu livro, seguindo a própria ordem na qual são verdadeiramente desenvolvidas as matérias do direito, estuda sucessivamente a história do direito criminal, do processo, do regime de pessoas, do regime de bens, do direito das obrigações. Ele termina por dois capítulos sobre a doutrina do direito natural, e sobre as relações do direito e da sociologia. A idéia mestra desse livro é aquela que o autor já desenvolveu com talento em sua obra precedente: Les lois de l'imitation, e que ele próprio resumiu, aliás, nesta fórmula surpreendente: a diversidade, e não a unidade, está no coração das coisas. Ao contrário do senhor Spencer, (...) ele não crê em uma homogeneidade primitiva, da qual o heterogêneo teria saído ulteriormente pela diferenciação. Ele acredita, ao contrário, na originária heterogeneidade dos seres, na seqüência, mais ou menos aproximados uns dos outros pela imitação que faz o grande número das invenções de alguns. Também se ergue ele com força contra a teoria daqueles que crêem na identidade fundamental da evolução jurídica em todos os povos. Para ele, os processos desta evolução foram múltiplos e diversos. Cada grupo humano teve seu direito distinto na origem e não foi senão progressivamente que o direito se unificou, sob a ação de grupos que o haviam aperfeiçoado. Primitivamente, cada família formava um todo fechado, de onde nada transpirava para fora: tinha sua propriedade para si, ciumentamente fechada ao estrangeiro, seus contratos e seus delitos domésticos eram sancionados pela autoridade familial, tudo como teve ela, a família, suas tradições e seu culto. Progressivamente, a nação do direito amplia-se: admite-se que contrate, com os membros da família, aquele que não pertence a ela; em lugar vê-lo como um inimigo, — em relação ao qual tudo era primitivamente permitido, — aplicam-se a ele, em suas relações com os membros da família, as mesmas regras menos severas do direito penal familiar; mais tarde, depois que as famílias concluíram semelhantes pactos entre elas, admitiu-se beneficiar com o direito aquele que se situava fora dessas gentes fortemente hierarquizadas: o plebeu, o estrangeiro, o escravo; e terminou-se por ter a noção de uma justiça comum a toda humanidade, de um direito de todos os homens à liberdade, à equidade, à propriedade mesmo. Em suma, pois, foi o direito familial que, — em se generalizando, em se estendendo pouco a pouco por efeito da imitação e da simpatia, — engendrou o direito nacional, depois, o direito humano. Os historiadores da legislação romana objetarão, sem dúvida, que, segundo as idéias aceitas, não há propriamente como falar de direito no interior da gens, o pater familias, proprietário das pessoas e dos bens, regendo-a de acordo com sua vontade; e que, por conseqüência, é apenas nas relações interfamiliares que pôde nascer o direito. Todavia, a nosso sentir, o senhor Tarde poderia responder que esta concepção da gens não é absolutamente exata: mesmo na família romana antiga, havia um direito ao menos rudimentar: quando o pai, por exemplo, condenava seu filho à morte, ele não fazia senão uso do direito que tem o proprietário de destruir sua coisa, ele age como magistrado doméstico; e a prova é que ele busca o parecer de um consilium. Está-se, pois, autorizado a ver, no direito de família, a origem de todo direito.

Insistimos nesta idéia, porque ela nos pareceu a idéia mestra do livro de T. Lamentamos não dispor do espaço necessário para sinalar agora todos os detalhes curiosos, novos, sugestivos que pululam nesse livro. O autor indica com razão diferenças essenciais entre a história do direito grego e aquela do direito romano. Ele duvida muito de que o matriarcado haja, na origem, reinado em toda parte; mas é ir muito longe perguntar se “esse matriarcado tão famoso existiu”. Ele sinala, em nossa civilização francesa contemporânea, singulares sobrevivências de casamentos obrigatórios ou proibidos. A transformação da nobreza forneceu-lhe interessantes observações. A propriedade privada parece-lhe tão antiga quanto a propriedade coletiva; o comunismo de aldeia é posterior ao comunismo de família, o mir e a zadruga não remontam aos primeiros tempos da humanidade; as comunidades que se organizaram na Idade Média, as “comunas[2] juradas”, por exemplo, não foram senão que uma imitação dos conventos (capítulo IV). É falso que todos os povos tenham sido primeiro caçadores, depois pastores, depois agricultores. Conhecem-se povos onde a ordem desta evolução foi invertida, outros que jamais conheceram o estado pastoral. Não há mais uniformidade na evolução do direito de hereditariedade. Vê-se, com os progressos da civilização, recuar a idade da maioridade e elevar-se a duração da posse requerida para prescrever. Em matéria de obrigações, o contrato não é senão um derivado da declaração unilateral de vontade, que reaparece hoje e tende a limitar o domínio das obrigações contratuais. O direito natural não nasceu em Roma do comércio internacional, mas da filosofia, que generalizou, em as estendendo, as relações de todos os homens, as regras que governavam as relações dos cidadãos entre si. Jamais houve a fusão do jus naturale e do jus gentium. A idéia do direito natural encontra no senhor Tarde um contraditor encarniçado: ele declara-a pouco precisa e imprópria para guiar o legislador. Ao contrário, ele acentua, para a educação do jurista, a sociologia, da qual o direito não é, para ele, senão que um fragmento. Sem dúvida, como a linguagem (com a qual T. o compara muito engenhosamente) o direito “é o espelho integral da vida social”. Mas “é preciso estudá-lo como um simples ramo da sociologia, se quisermos compreendê-lo em sua realidade viva e completa”.

Eis algumas das concepções do autor. Elas podem, — nesta enumeração rápida que fizemos, — parecer um pouco chocantes e assaz mediocremente coerentes. Confessamos que, com a leitura do livro, um leitor superficial poderia ser tentado a fazer esta reprovação contra o autor mesmo. A idéia fundamental que tentamos destacar a toda hora, domina-o, todavia, e inspira-o em toda parte. A vivacidade, a originalidade do estilo vêm apenas tornar a leitura mais atraente e mais fácil.

O senhor Tarde acrescenta às suas idéias científicas algumas idéias de reformas que convocam a contradição. Ele persegue com seu ódio (aqui e em outras publicações) a instituição do júri: “o que existe de menos perfeito no mundo”, — escreve ele — “é o júri”. O direito à apelação não lhe parece menos contestável que contestado. Ele estima que “o processo ideal não implica necessariamente na existência de advogados e de meirinhos”. Ele não deposita maior confiança no dogma da dualidade das Câmaras, e encontra que não se deveria “poder fabricar leis, a não ser com a condição de apresentar, ao menos, as mesmas provas oficiais que se exigem dos juízes encarregados unicamente de aplicá-las”. Mesma independência de espírito à vista das teorias da ciência pura. No auge da corrente das idéias evolucionistas, e simpático, em suma, ao movimento geral que elas representam, T. guarda-se bem, no mínimo, de aceitá-las inteiramente feitas. Vimos mesmo que sua doutrina mestra faz antítese àquela de Spencer. Ele chega até a falar, em alguma parte, das “pretensas leis da evolução”, opondo-as às únicas verdadeiras leis, as “leis de causação”. E, todavia, à descoberta dessas leis de evolução, ele aporta o concurso mais eficaz, em destacando o critério que permite reconhecê-las. Para que a relação que une dois fenômenos sucessivos seja uma relação necessária, ou seja, uma lei, para que, em uma palavra, se possa afirmar que é nesse sentido que a evolução deveu se produzir, o que é preciso? É preciso — responde Tarde — que essa relação seja irreversível, critério que ele, mais de uma vez, aplicou com engenhosidade em seu livro. — Ei-nos aí bem adiantados, — responder-se-á; — a fórmula é evidente, e o que é evidente não nos ensina nada. — Mas as fórmulas da lógica aristotélica são evidentes, elas também, e é precisamente isso que faz sua força. Pode-se sustentar que elas não nos tenham ensinado nada? Quem sabe, — diremos nós, — se, no critério das leis de sucessão, não existe o gérmen de toda uma lógica nova, a lógica — não mais metafísica, à maneira de Hegel, — mas científica, da evolução?

Revue des livres. Tarde, Les Transformations du Droit, par René Worms. Extraído da Revue internationale de Sociologie, 1º. ano, n° 1, janeiro-fevereiro de 1893, p. 101-104. Disponível em Les Classiques des Sciences Sociales. Tradução: Maristela Bleggi Tomasini.
[1] Gabriel Tarde, Les Transformations du Droit. Paris, Félix Alcan (Bibliothèque de philosophie contemporaine), 1893 ; un vol. in-18, de 212 p.
[2] Chamavam-se comunas, na Idade Média, as cidades que haviam obtido por carta do Senhor um estatuto mais ou menos iberal, comportando uma certa autonomia, com jurisdição e finanças próprias. Larousse du XX Siècle, op. Cit. (N. da T.)