A clarabóia do tempo
Muda o evento,
Muda o papel,
Muda o valor,
Muda-nos a nós
Que perdemos as carnes aos poucos,
Viramos espírito, assombro, assombração, susto...
Às vezes viramos espantalhos,
Patéticos espantalhos éticos,
Fiscais da novidade,
Censores até da terra que nos há de sepultar, assimilar, reintegrar.
O Tempo altera o branco da pele que amarela,
Resseca a tez,
Esvazia os ossos,
E a boca dos dentes,
Carcome as ilusões, os amores, as esperanças.
O Tempo corrompe os perfumes como azeda as almas
Que recendem a vinagre na velhice.
Às vezes, o tempo finge que pára também,
Mas não adianta dizer amém...
Não há reza que o dilate,
Não há força que o modere, apazigúe ou abrande,
Porque o tempo é grande como a imensidade
Com que se medem os pesares, as devoções e as coisas
Que nunca aconteceram jamais.
É. Nada pode com ele,
Nada o detém,
Nada o corrompe,
Salvo o espaço vazio,
Onde só cabe a poesia...
Tempo e poesia constrangem-se mutuamente
Como amantes que se desconheceram,
Amantes que o tempo apartou, estranhou,
Amantes que se olham de soslaio, embaraçados,
Quando dividem espaços,
Porque o tempo e o amor são feitos de quandos.
Mas tudo aquilo que o tempo leva,
A poesia devolve, eterniza, às vezes valoriza e esconde.
O Tempo torna lixo o que foi luxo.
Depois, o lixo vira poesia,
E vem parar na parede de uma exposição...
E aqui tu me vês.
Pensas que me espias,
Mas sou eu quem — por detrás do tempo — daqui me rio cínica,
De dentro dessa clarabóia mágica,
Olho embaçado, velho, vazado,
Olho sem luz,
Aquário de peixes mortos, boiando solenes em procissão,
Menina do olho da clarabóia do tempo,
Olho que te vê de dentro,
Bem no centro onde estão todas as coisas
Que se extraviaram de ti,
Coisas que encontras só
Quando já é tarde demais,
Coisas que agora já não te valem nada,
Coisas que agora já não te servem pra nada,
Coisas que se doem de saudade e de imensidade,
Coisas que ninguém mais quer,
Destino, sina, sorte, fatalidade.