31 de dezembro de 2008
Meus Durant
Desconfiem sempre de uma biblioteca bem arrumada repleta de livros bem cuidados. Desconfie de quem não risca livros, não sublinha, não escreve nas suas margens nem os dobra e mesmo os mancha com um dedo engordurado de quem lê na cozinha, enquanto come alguma coisa pelas madrugadas. Meus livros, pelo menos os mais queridos e aqueles aos quais eu devoto um maior apego, estão todos marcados, usados e com partes destacadas. É evidente que uma biblioteca bem cuidada e cheia de livros novos pode ser bonita e até decorativa. Eu, porém, prefiro aquelas que têm ácaros, traças, riscos, livros surrados, marcados e que se amontoam ao meu redor, transmitindo a certeza de uma presença constante que forma pontes no tempo e no espaço, sem que seja preciso mais que o gesto de folhear uma página.
29 de dezembro de 2008
Will Durant (1885-1981)
Conquista da minha bibliteca poder contar com todos os volumes da monumental A História da Civilização, obra escrita em co-autoria com Ariel Durant, sua mulher. Durant não é, todavia, muito bem visto junto aos acadêmicos, uma vez que ousou escrever com simplicidade sobre história e sobre filosofia, mas, diga-se, não sem profundidade. De seu texto, colhe-se o respeito e o entusiasmo que contagiam, conferindo ao leitor uma visão geral bastante sintética de todos os povos nas respectivas épocas.
Uma Descarada Admiração por Heróis
Dos muitos ideais que na juventude deram à vida um sentido e um brilho que faltam às perspectivas arrepiantes da meia-idade, pelo menos um permeneceu comigo tão luminoso e satisfatório como sempre fora -- a admiração descarada dos heróis. Numa era que a tudo nivelaria e a nada adoraria, eu me ponho ao lado do Carlyle vitoriano, e acendo minhas velas, como Mirandola diante da imagem de Platão, no santuário dos grandes homens.Eu digo "descarada", porque sei o quão fora de moda é, agora, reconhecer na vida ou na história qualquer gênio mais sublime que o nosso. Nosso dogma democrático pôs num mesmo patamar não somente todos os votantes, mas também todos os líderes; deliciamo-nos em mostrar que os gênios que vivem são apenas medíocres, e que os já mortos são mitos.Se pudermos acreditar em Mr. Wells, Cesar era um imbecil e Napoleão um idiota. E já que é contrário às boas maneiras exaltarmos a nós mesmos, chegamos ao mesmo resultado por meio da indicação maliciosa de o quão inferiores são os grandes homens da terra. Em alguns de nós, talvez, trata-se de um nobre e cruel ascetismo, que arrancaria de nossos corações o último vestígio de admiração e adoração, receando que os velhos deuses voltassem para nos aterrorizar mais uma vez.De minha parte, eu me agarro a esta religião final, e descubro nela um conteúdo e um estímulo mais duradouro do que aquele que vinha dos êxtases devocionais da juventude. Quão natural parecia cumprimentar Rabindranath Tagore por aquele título que por tanto tempo lhe foi dado por seus compatriotas, Gurudeva -- "Mestre Reverenciado". Pois por que razão deveríamos nos colocar em veneração diante de cachoeiras e topos de montanha, ou uma lua estival sobre um mar tranqüilo, e não diante do maior de todos os milagres -- um homem que é ao mesmo tempo grandioso e bom? Tantos de nós somos meros talentos, crianças espertas no jogo da vida, que quando um gênio se levanta em nossa presença, nós podemos apenas nos curvar à sua frente como a uma obra de Deus, um prosseguimento da criação. Tais homens são a própria vida e o sangue da história, para os quais a política e a indústria não passam de moldura e ossos.Causa parcial do academicismo árido do qual estávamos sofrendo quando James Harvey Robinson nos convocou a humanizar nosso conhecimento foi a concepção da história como um fluxo impessoal de figuras e "fatos", no qual o gênio exercia um papel tão pouco essencial que os historiadores se orgulhavam de ignorá-los. Deveu-se a Marx, acima de tudo, essa teoria da história; ela estava amarrada a uma visão da vida que desconfiava do homem excepcional, invejava o talento superior, e exaltava os humildes como os herdeiros da terra. No fim, os homens começaram a escrever a história como se ela jamais tivesse sido vivida, como se nenhum drama jamais tivesse passado por ela, nenhuma comédia ou tragédia de homens em luta ou frustrados. As vívidas narrativas de Gibbon e Taine deram lugar a montes de cinzas feitas com uma erudição irrelevante na qual todos os fatos estavam corretos, documentados e mortos.Não, a história verdadeira do homem não está em preços e salários, nem em eleições e batalhas, nem nas tendências rasas do homem comum; está nas contribuições duradouras feitas pelos gênios ao conjunto da civilização humana e da cultura. A história da França não é, se é possível dizer isso com toda a cortesia, a história do povo francês; a história daqueles homens e mulheres anônimos que cultivavam a terra, consertavam os sapatos, cortavam a roupa e vendiam as mercadorias (pois tais coiss tem sido feitas sempre e em todos os lugares) -- a história da França é o registro de seus homens e mulheres excepcionais, seus inventores, cientistas, estadistas, poetas, artistas, músicos, filósofos e santos, e os acréscimos que eles fizeram à tecnologia e à sabedoria, às artes e à decência, do seu povo e da espécie humana. E assim com todo país, assim com o mundo; sua história é propriamente a história de seus grandes homens. Que somos o resto de nós senão tijolos e argamassa dóceis em suas mãos, para que eles possam fazer uma raça um pouco melhor que nós mesmos? Portanto, eu vejo a história não como um cenário triste de político e carnificina, mas como o esforço do homem -- por meio do gênio -- contra a inércia obstinada da matéria e o mistério atordoante da mente; o esforço para compreender, controla e reconstruir a si próprio e ao mundo.Vejo homens de pé à beira do conhecimento, e segurando a luz uma pouco mais além; homens esculpindo o mármore em formas enobrecedoras; homens moldando povos em instrumentos melhores de grandeza; homens criando uma línguagem da música e uma música da linguagem; homens sonhando com vidas melhores, e vivendo-as. Eis um processo de criação mais vívido que em qualquer mito, uma divindade mais real que em qualquer credo.Contemplar tais homens, nos insinuarmos pelo estudo em algum modesto discipulado em relação a eles, observá-los em seu trabalho e nos aquecermos no fogo que os consome -- isto é recapturar um pouco da emoção que a juventude nos dava quando pensávamos, no altar ou no confessionário, que estávamos a tocar ou a ouvir Deus.Nessa juventude sonhadora nós acreditamos que a vida era má, e que somente a morte poderia nos conduzir ao paraíso. Estávamos errados; mesmo agora -- enquanto vivemos -- podemos entrar nele. Cada grande livro, cada trabalho de arte reveladora, cada registro de uma vida devotada é um chamado e um "Abre-te, sésamo" para os Campos Elísios.Extinguimos cedo demais a chama de nossa esperança e nossa reverência. Mudemos os ícones, e acendamos as velas mais uma vez.
Will Durant
Will Durant
28 de dezembro de 2008
AS CARTAS XIII
Carta de Francisco para Maria de algum dia de agosto de 1924.
Maria,
Penso que foi para a sensação de receber flores que eu adoeci, tanto elas me satisfizeram. E nem tenho já quase vontade de restabelecer-me!... As primeiras violetas, as outras... Elas tomam quase sempre a forma das tuas carícias, quando as toco e quando as olho, e sinto-as com pura volúpia... Mas é um gozo triste, um gozo com sabor amargo de lágrimas, porque as violetas são tristes, e são tristes os seus longos olhos de melancólicas pupilas. São tristes como a morte...
Talvez, infelizmente, elas me ofereçam um símbolo... No destino de cada criatura, para seu sofrer eterno ou para sua eterna alegria, existe uma lágrima, a última, a que não nos é dado conhecer, que já se abeira do túmulo, e dele nos traz a amável sensação de alívio. E são certas flores as portadoras da forma visível desse fim, provocando, assim, nas criaturas, determinadas emoções reveladoras da sua proximidade. E, eu creio, a violeta é uma dessas flores predestinadas.
Mas, não filosofemos. Sejamos mais sábios. Falemos um pouco de ti. Que tens feito? E a minha ausência? Pouco te faz sofrer, não é? Ainda bem. Eu, entretanto, longe de ti, não sinto a vida. Trago, a queimar-me o peito, uma grande saudade do meu amor. É que eu te amo mais que a mim próprio. Coloquei o universo dentro do teu ser, e só por ele vivo e palpito. Encontrei, no mundo, a minha “pedra luminosa”... Na extinção da sua luz está a extinção da minha vida. E és tu a guardadora dessa minha pedra... Está nas tuas mãos, pois, a minha vida, a vida do teu,
para o sempre,
Francisco
Maria,
Penso que foi para a sensação de receber flores que eu adoeci, tanto elas me satisfizeram. E nem tenho já quase vontade de restabelecer-me!... As primeiras violetas, as outras... Elas tomam quase sempre a forma das tuas carícias, quando as toco e quando as olho, e sinto-as com pura volúpia... Mas é um gozo triste, um gozo com sabor amargo de lágrimas, porque as violetas são tristes, e são tristes os seus longos olhos de melancólicas pupilas. São tristes como a morte...
Talvez, infelizmente, elas me ofereçam um símbolo... No destino de cada criatura, para seu sofrer eterno ou para sua eterna alegria, existe uma lágrima, a última, a que não nos é dado conhecer, que já se abeira do túmulo, e dele nos traz a amável sensação de alívio. E são certas flores as portadoras da forma visível desse fim, provocando, assim, nas criaturas, determinadas emoções reveladoras da sua proximidade. E, eu creio, a violeta é uma dessas flores predestinadas.
Mas, não filosofemos. Sejamos mais sábios. Falemos um pouco de ti. Que tens feito? E a minha ausência? Pouco te faz sofrer, não é? Ainda bem. Eu, entretanto, longe de ti, não sinto a vida. Trago, a queimar-me o peito, uma grande saudade do meu amor. É que eu te amo mais que a mim próprio. Coloquei o universo dentro do teu ser, e só por ele vivo e palpito. Encontrei, no mundo, a minha “pedra luminosa”... Na extinção da sua luz está a extinção da minha vida. E és tu a guardadora dessa minha pedra... Está nas tuas mãos, pois, a minha vida, a vida do teu,
para o sempre,
Francisco
25 de dezembro de 2008
AS CARTAS XII
Carta de Francisco para Maria de 1º de agosto de 1924.
Maria,
Perdoa-me os versos que hoje te mando. Eu vivi contigo dentro da tua velha casa. Tu partiste; eu fiquei. Ficaram comigo a tua imagem e a saudade, que acorda dentro de mim a imagem da vida que lá vivemos.
A nossa velha casa... Ela era grande, mas para mim se resumia, apenas, no aposento onde tu pensavas no teu amor, sozinha com ele, perfumando-o de carícias.
O teu aposento era pequenino e lindo. Tinha um ar estranho de mistério e sensualidade. Evocava-me, não sei por que, em originais e suaves mutações, cenas febris do Oriente e a vida límpida e pacífica dos santos.
A um canto, sobre um tapete persa, repousava um divã cor de trevo. Era esse o teu recanto predileto.
− É o templo da preguiça e dos sonhos, tu me dizias, sorrindo.
E o teu sorriso, de súbito, abria um reflexo de luz na sala toda e alumiava a minha alma.
O piano, ao longo da parede, punha uma nota solene na melancolia do aposento.
À noite, depois do chá, mal acabavam de soar, no relógio da Igreja, as badaladas das dez horas, tu te sentavas ao piano. E logo, os primeiros acordes da Cathedral Engloutie começavam espaçados, sonolentos, envoltos em sombra, a arrancar pedaços de alma...
Bem me lembro de tudo isso... Eras muito religiosa também. Junto a uma janela, colocaste um oratório, com a imagem de Santa Teresa do Menino Jesus, e uma chama de amor e de fé, a crepitar.
Tinhas uma devoção especial por essa Santa. Recordo que, uma vez, eu fui te encontrar de joelhos em frente dela, numa atitude de êxtase, e uma imploração no olhar. Sorriste, confusa, ao ver-me. E depois, cheia de pudor, a cabeça deitada no meu ombro, confessaste-me o teu pedido: a graça de não acontecer uma coisa que temias... Depois, choraste muito, e eu chorei também... Ficamos os dois, longo tempo, a chorar, ingenuamente, sem saber por que, quase sem querer...
Tudo isso na velha casa... Como eu me lembro!... E como é bom lembrar!... como é bom evocar o tempo que passou, o nosso tempo, aquele tempo... Recordar, ressentir o que ficou lá longe, perdido... Velhas sensações que nos despertam novas... Frangalhos de nós mesmos deixados ao longo do tempo... O passado... Bastante razão tem Henri Bataille: o passado é um segundo coração que bate em nós...
Um grande pensamento
do teu
Francisco
Maria,
Perdoa-me os versos que hoje te mando. Eu vivi contigo dentro da tua velha casa. Tu partiste; eu fiquei. Ficaram comigo a tua imagem e a saudade, que acorda dentro de mim a imagem da vida que lá vivemos.
A nossa velha casa... Ela era grande, mas para mim se resumia, apenas, no aposento onde tu pensavas no teu amor, sozinha com ele, perfumando-o de carícias.
O teu aposento era pequenino e lindo. Tinha um ar estranho de mistério e sensualidade. Evocava-me, não sei por que, em originais e suaves mutações, cenas febris do Oriente e a vida límpida e pacífica dos santos.
A um canto, sobre um tapete persa, repousava um divã cor de trevo. Era esse o teu recanto predileto.
− É o templo da preguiça e dos sonhos, tu me dizias, sorrindo.
E o teu sorriso, de súbito, abria um reflexo de luz na sala toda e alumiava a minha alma.
O piano, ao longo da parede, punha uma nota solene na melancolia do aposento.
À noite, depois do chá, mal acabavam de soar, no relógio da Igreja, as badaladas das dez horas, tu te sentavas ao piano. E logo, os primeiros acordes da Cathedral Engloutie começavam espaçados, sonolentos, envoltos em sombra, a arrancar pedaços de alma...
Bem me lembro de tudo isso... Eras muito religiosa também. Junto a uma janela, colocaste um oratório, com a imagem de Santa Teresa do Menino Jesus, e uma chama de amor e de fé, a crepitar.
Tinhas uma devoção especial por essa Santa. Recordo que, uma vez, eu fui te encontrar de joelhos em frente dela, numa atitude de êxtase, e uma imploração no olhar. Sorriste, confusa, ao ver-me. E depois, cheia de pudor, a cabeça deitada no meu ombro, confessaste-me o teu pedido: a graça de não acontecer uma coisa que temias... Depois, choraste muito, e eu chorei também... Ficamos os dois, longo tempo, a chorar, ingenuamente, sem saber por que, quase sem querer...
Tudo isso na velha casa... Como eu me lembro!... E como é bom lembrar!... como é bom evocar o tempo que passou, o nosso tempo, aquele tempo... Recordar, ressentir o que ficou lá longe, perdido... Velhas sensações que nos despertam novas... Frangalhos de nós mesmos deixados ao longo do tempo... O passado... Bastante razão tem Henri Bataille: o passado é um segundo coração que bate em nós...
Um grande pensamento
do teu
Francisco
Da condição das mulheres nos diversos governos
Nos estados despóticos, as mulheres não introduzem o luxo. Elas próprias são um objeto de luxo. Elas devem ser extremamente submissas.
(pg. 111)
(pg. 111)
21 de dezembro de 2008
Nós, Déspotas.
Despotismo é uma tendência e talvez mesmo um componente nosso. É humano, integra o homem sempre que ele se vê desfrutando de um poder qualquer. Poder também é um tipo de paixão exercida de múltiplas formas, de acordo com cada governante, desde o reizinho do asteróide do Pequeno Príncipe até as crianças diante dos insetos, e os Napoleões, e os Alexandres, e os Césares e os Sesóstris. Amorfos, porém, escapam disso. Amorfos nunca são despóticos, por exemplo. Mas a maioria de nós o é, numa ou noutra fase da vida, seja manejando exército de soldadinhos de chumbo, seja dirigindo uma empresa, seja fantasiando o cachorro de Papai Noel e conferindo-lhe humanidade, seja mesmo se colocando como guia, exemplo, guru ou proprietário de verdades reveladas.
Todos nós temos, enfim, nossos momentos de déspota, de roubar cenas e brilhar no cenário da vida. Alguns se viciam nisso, e sentem-se insultados quando não são reconhecidos como tais, ou quando o seu fascínio falha, e percebe-se então que o rei sempre esteve nu, porque a realeza passa, a beleza passa, o poder passa e mesmo as verdades mudam quando convém.
Felizmente, não somos sempre os mesmos ao longo do tempo. E até as paixões e mesmo o poder deixam de fascinar um dia, e se acabam, mudam de rumo ou sofrem desvios, viram rotina e acomodação, sofrem desgastes. E no final, — no tão esperado e temido THE END que já está escrito na história de todos nós, — seremos igualados mediante o império da mais democrática das revoluções que é a própria Morte. Essa sim, induvidosamente, nos vai igualar a todos, por mais ostensivo ou simplório que seja o túmulo: pirâmide, lápide ou vala comum.
Todos nós temos, enfim, nossos momentos de déspota, de roubar cenas e brilhar no cenário da vida. Alguns se viciam nisso, e sentem-se insultados quando não são reconhecidos como tais, ou quando o seu fascínio falha, e percebe-se então que o rei sempre esteve nu, porque a realeza passa, a beleza passa, o poder passa e mesmo as verdades mudam quando convém.
Felizmente, não somos sempre os mesmos ao longo do tempo. E até as paixões e mesmo o poder deixam de fascinar um dia, e se acabam, mudam de rumo ou sofrem desvios, viram rotina e acomodação, sofrem desgastes. E no final, — no tão esperado e temido THE END que já está escrito na história de todos nós, — seremos igualados mediante o império da mais democrática das revoluções que é a própria Morte. Essa sim, induvidosamente, nos vai igualar a todos, por mais ostensivo ou simplório que seja o túmulo: pirâmide, lápide ou vala comum.
Rotinas
O tédio e a mesmice são um culto que se pratica perpetuando hábitos, porque isso nos torna mais úteis e mais eficientes na linha de produção que é a vida social, corrente de repetições mecânicas que amarra o homem às tradições de seu grupo, incluindo-o nele, integrando-o, fazendo-o agir como seus ancestrais. Nisso entra até o que ele deve sentir, regramentos de amor e ódio, visões de mundo, uma vida prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-sentir.
Mas também uma vida repleta de premiações conferidas àqueles que fazem a sua parte no rebanho. A imensa maioria de nós só vê o que lhes foi ensinado ver, e nisso não vai nenhum demérito. Tampouco desistem de defender seus pontos de vista com todas as forças, sempre que uma ameaça de desmentido ou de revolução axiológica faz frente a essa herança viva a que se resume o tesouro do clã.
Desvincular-se é solitário, e a solidão, por si mesma, exclui, separa, desvincula, consagrando o trauma edênico inscrito no imaginário desde a expulsão do Paraíso e o Pecado Original. Os desobedientes viram réprobos ou Cains e revoltam-se, tornando-se visionários e às vezes místicos. E os distraídos e desligados refogem também a essa mecânica insidiosa. São freqüentemente artistas, meio deslocados, porque perdem o tal foco, — palavra da moda, — e olham o mundo por si, sentindo-o, e não para si, utilizando-o. Perdem-se de si e dos outros, mas terminam sempre por encontrar, ainda que nada procurem.
Pode-se olhar e não ver, porque para ver é preciso sentir, e nisso entram, mais que os olhos, ainda o instinto e a intuição, duas coisas um tanto quanto impopulares, porque requerem mais impulsividade que cálculo. Enfim, pensar e perceber, sentir e criar são exercícios solitários, tanto quanto viver.
Mas também uma vida repleta de premiações conferidas àqueles que fazem a sua parte no rebanho. A imensa maioria de nós só vê o que lhes foi ensinado ver, e nisso não vai nenhum demérito. Tampouco desistem de defender seus pontos de vista com todas as forças, sempre que uma ameaça de desmentido ou de revolução axiológica faz frente a essa herança viva a que se resume o tesouro do clã.
Desvincular-se é solitário, e a solidão, por si mesma, exclui, separa, desvincula, consagrando o trauma edênico inscrito no imaginário desde a expulsão do Paraíso e o Pecado Original. Os desobedientes viram réprobos ou Cains e revoltam-se, tornando-se visionários e às vezes místicos. E os distraídos e desligados refogem também a essa mecânica insidiosa. São freqüentemente artistas, meio deslocados, porque perdem o tal foco, — palavra da moda, — e olham o mundo por si, sentindo-o, e não para si, utilizando-o. Perdem-se de si e dos outros, mas terminam sempre por encontrar, ainda que nada procurem.
Pode-se olhar e não ver, porque para ver é preciso sentir, e nisso entram, mais que os olhos, ainda o instinto e a intuição, duas coisas um tanto quanto impopulares, porque requerem mais impulsividade que cálculo. Enfim, pensar e perceber, sentir e criar são exercícios solitários, tanto quanto viver.
19 de dezembro de 2008
Da Estupidez
Nos bons velhos tempos, um rei, com seu poder sem limites, tinha o direito de vida e de morte sobre milhões de súditos que lhe pertenciam desde o berço. E como estava cercado por uma tropa de servidores solidamente armados, robustos e sem escrúpulos, ele podia fazer enforcar e dar tratos de polé, segundo seu prazer. Podia mesmo forçar milhões de indivíduos a trabalhar para seu palácio ou para seu túmulo durante anos e anos. As pirâmides não são apenas um magnífico edifício. Elas são ainda um esplêndido testemunho da loucura humana, pois que todo um povo deslocou e empilhou enormes pedras durante trinta anos, com o único fim de construir, para o Rei Quéops, uma sepultura que desenhasse seu prodigioso perfil a alguns quilômetros de distância. Que dez milhões de escravos tenham assim, sem se revoltar, suado, penado, sofrido para a satisfação de um único personagem, por Quéops que ele fosse, eis uma inépcia que se ergue bem acima do vértice da alta pirâmide.
Mas Quéops não foi o único a escravizar um grande povo a tarefas absurdas. A história do mundo é, sobretudo, aquela dos diversos Quéops, obscuros ou famosos, que foram servidos por milhões de escravos. Houve Sesóstris, Xerxes, Dario, Nero, Julio César, Carlos Magno, Carlos V, Luís XIV, Napoleão, Guilherme II e ainda muitos outros potentados que esmagaram, sob suas fantasias, imensas populações dóceis e estúpidas.
Que certos semideuses, — Carlos Magno ou Luís XIV, Carlos V ou Napoleão, — tenham dado testemunho de uma inteligência superior àquela dos homens vulgares, é quase indiscutível. Ainda assim, que desproporção entre a enormidade de seu poder e o vigor de seu espírito! Assim como seus mais humildes súditos, eles eram homens. Seu sangue era da mesma cor e suas excreções da mesma espécie. Eles respiraram pela primeira vez e deram seu último suspiro à maneira dos mais humildes mamíferos.
Charles Richet
Mas Quéops não foi o único a escravizar um grande povo a tarefas absurdas. A história do mundo é, sobretudo, aquela dos diversos Quéops, obscuros ou famosos, que foram servidos por milhões de escravos. Houve Sesóstris, Xerxes, Dario, Nero, Julio César, Carlos Magno, Carlos V, Luís XIV, Napoleão, Guilherme II e ainda muitos outros potentados que esmagaram, sob suas fantasias, imensas populações dóceis e estúpidas.
Que certos semideuses, — Carlos Magno ou Luís XIV, Carlos V ou Napoleão, — tenham dado testemunho de uma inteligência superior àquela dos homens vulgares, é quase indiscutível. Ainda assim, que desproporção entre a enormidade de seu poder e o vigor de seu espírito! Assim como seus mais humildes súditos, eles eram homens. Seu sangue era da mesma cor e suas excreções da mesma espécie. Eles respiraram pela primeira vez e deram seu último suspiro à maneira dos mais humildes mamíferos.
Charles Richet
18 de dezembro de 2008
O Homem Estúpido
Prefácio
Lineu, tentando colocar em boa ordem as diversas formas vivas que povoam nosso planeta, chamou o homem, — o qual constitui, evidentemente, uma espécie animal distinta de todas as outras, — Homo sapiens, o homem sábio.
Mas tal elogio é manifestamente injustificado, porque o homem acumula em si abundantes exemplos de extraordinária estupidez, tantos, que deveria, — para conformar-se à realidade das coisas, — denominar-se de outro modo, e dizer: homo stultus, o homem estúpido.
Quando concordarmos em empregar uma classificação zoológica séria, será necessário adotar esse termo.
Nesse breve ensaio, estabelecemos — ou, ao menos, tentamos estabelecer — que o homem é inferior à maior parte das espécies animais, seja pelo bom senso, seja pela sabedoria. Parece-me mesmo que teríamos o direito de classificá-lo como homo stultissimus, o homem estupidíssimo.
Todavia, para ser moderado, contentar-nos-emos em dar-lhe — sem superlativo — o apelido que lhe convém: homo stultus, homem estúpido. E daremos as provas de sua imensa e irremediável estupidez.
O autor não faz qualquer alusão à sorte reservada a esse exame de consciência que machucará, que ofenderá os intelectuais, tanto quanto a populaça, e que deixará em todos uma dolorosa impressão.
Sim. Nós o sabemos!
Assim, ó leitor, quem quer que sejas, intelectual ou artista, este livro vai perturbar — ainda que por um instante — a boa opinião que tu tens de ti mesmo. Ele espantará essa convicção íntima de que tu és sábio, prudente, racional. É pouco agradável ouvir-se dizer que se é estúpido, e é muito mais desagradável ainda receber a demonstração.
Mas não se trata de apresentar, à maneira de Watteau ou de Florian, pastores de ópera. Os camponeses de La Bruyère não têm cajados enfeitados com fitas, e estimo, com o velho mestre, que toda verdade é boa de se dizer, por amarga e decepcionante que seja.
Charles Richet
Observações.: A obra está disponível nos Classiques des Sciences Sociales.
Mas tal elogio é manifestamente injustificado, porque o homem acumula em si abundantes exemplos de extraordinária estupidez, tantos, que deveria, — para conformar-se à realidade das coisas, — denominar-se de outro modo, e dizer: homo stultus, o homem estúpido.
Quando concordarmos em empregar uma classificação zoológica séria, será necessário adotar esse termo.
Nesse breve ensaio, estabelecemos — ou, ao menos, tentamos estabelecer — que o homem é inferior à maior parte das espécies animais, seja pelo bom senso, seja pela sabedoria. Parece-me mesmo que teríamos o direito de classificá-lo como homo stultissimus, o homem estupidíssimo.
Todavia, para ser moderado, contentar-nos-emos em dar-lhe — sem superlativo — o apelido que lhe convém: homo stultus, homem estúpido. E daremos as provas de sua imensa e irremediável estupidez.
O autor não faz qualquer alusão à sorte reservada a esse exame de consciência que machucará, que ofenderá os intelectuais, tanto quanto a populaça, e que deixará em todos uma dolorosa impressão.
Sim. Nós o sabemos!
Assim, ó leitor, quem quer que sejas, intelectual ou artista, este livro vai perturbar — ainda que por um instante — a boa opinião que tu tens de ti mesmo. Ele espantará essa convicção íntima de que tu és sábio, prudente, racional. É pouco agradável ouvir-se dizer que se é estúpido, e é muito mais desagradável ainda receber a demonstração.
Mas não se trata de apresentar, à maneira de Watteau ou de Florian, pastores de ópera. Os camponeses de La Bruyère não têm cajados enfeitados com fitas, e estimo, com o velho mestre, que toda verdade é boa de se dizer, por amarga e decepcionante que seja.
Charles Richet
Observações.: A obra está disponível nos Classiques des Sciences Sociales.
Charles Richet (1850-1935)
Vou postar alguns textos de Richet que selecionei traduzi da obra intitulada O Homem Estúpido. Assim, não custa expor aqui alguns dados biográficos.
Charles Robert Richet era filho de um cirurgião. Ele nasceu em Paris, em 26 de agosto de 1850 e ali morreu em 04 de dezembro de 1935, sem assistir integralmente ao espetáculo da II Grande Guerra, detalhe providencial talvez. Ainda enquanto estudante, assistiu aos cirurgiões Léon Clément le Fort (1829-1893) e Aristide Auguste Stanislas Verneuil (1823–1895). Porém, servindo como interno em hospitais em 1872, iniciou experimentos relacionados ao hipnotismo. Durante os dois anos seguintes, produziu numerosos transes em pacientes. Foi ele quem cunhou o termo metapsíquica para a pesquisa parapsicológica. Esta experiência provavelmente o influenciou a abandonar a cirurgia e devotar-se à fisiologia.
Foi no campo desta estranha metapsíquica e do estudo dos fenômenos paranormais que Richet tornou-se mais conhecido entre nós como entre seus contemporâneos. Sua obra veio a coroar as investigações mais ou menos convergentes recolhidas ao longo de setenta anos. Seu Traité de Métapsychique, editado em Paris, 1923 por Felix Alcan, obra esta que infelizmente eu ainda não tenho, embora já a tenha manueseado, resume o conhecimento da época nesse campo. Richet, ao longo de toda sua vida, interessou-se vivamente pelos fenômenos ditos paranormais, tornando-se presidente do Instituto Metapsíquico Internacional de Paris e mantendo estreitas relações com metapsiquistas de todo o mundo. Firme adversário da hipótese espiritista, aportou a estas investigações — de caráter tão especial — toda a sua lealdade, vigor, clareza mental, tudo quanto distinguiu sempre, de modo marcante, o seu trabalho. Sua obra comprometeu indiretamente a própria metapsíquica, desferindo-lhe um golpe do qual não se recuperou jamais.
Chamado muitas vezes a investigar fenômenos curiosos, como o aparecimento de fantasmas, nada escapava ao sábio. Pode-se imaginar sua atuação frente ao famoso caso da Villa Carmen, de Argel, onde a médium, uma tal Marthe Béraud, jovem de excelente sociedade, produzia, no ano de 1904, a aparição de um fantasma chamado Bien Boa, fantasma de bigodes que circulava em torno dos assistentes envolto num manto branco e que se desmaterializava sobre o piso. O caso provocou a edição de mais um livro do Dr. Richet: Les Phénomènes Dits de Matèrisation de la Villa Carmen (Os Fenômenos Ditos de Materialização da Villa Carmen), Bureau dos Anais de Ciências Psíquicas, Paris, 1906, onde teceu sérias objeções a respeito do fenômeno.
Em 1878 Richet foi nomeado professor agregado da Faculdade de Medicina. Foi professor da Universidade de Paris, Sorbonne, de 1887 a 1927.
Foi um homem de muitos talentos e interesses. Pesquisador da fisiologia, escritor, atraído pela aviação. Participou, inclusive do desenho e da construção de um dos primeiros aviões. Dedicado pacifista, procurou demonstrar os malévolos efeitos da guerra, publicando trabalhos sob o pseudônimo de Charles Epheyer. Escreveu também sobre filosofia, poesia e drama. Durante a I Guerra, no fronte, investigou problemas relacionados à transfusão de plasma sangüíneo. Em 1926, recebeu a Cruz da Legião de Honra.
Charles Robert Richet era filho de um cirurgião. Ele nasceu em Paris, em 26 de agosto de 1850 e ali morreu em 04 de dezembro de 1935, sem assistir integralmente ao espetáculo da II Grande Guerra, detalhe providencial talvez. Ainda enquanto estudante, assistiu aos cirurgiões Léon Clément le Fort (1829-1893) e Aristide Auguste Stanislas Verneuil (1823–1895). Porém, servindo como interno em hospitais em 1872, iniciou experimentos relacionados ao hipnotismo. Durante os dois anos seguintes, produziu numerosos transes em pacientes. Foi ele quem cunhou o termo metapsíquica para a pesquisa parapsicológica. Esta experiência provavelmente o influenciou a abandonar a cirurgia e devotar-se à fisiologia.
Foi no campo desta estranha metapsíquica e do estudo dos fenômenos paranormais que Richet tornou-se mais conhecido entre nós como entre seus contemporâneos. Sua obra veio a coroar as investigações mais ou menos convergentes recolhidas ao longo de setenta anos. Seu Traité de Métapsychique, editado em Paris, 1923 por Felix Alcan, obra esta que infelizmente eu ainda não tenho, embora já a tenha manueseado, resume o conhecimento da época nesse campo. Richet, ao longo de toda sua vida, interessou-se vivamente pelos fenômenos ditos paranormais, tornando-se presidente do Instituto Metapsíquico Internacional de Paris e mantendo estreitas relações com metapsiquistas de todo o mundo. Firme adversário da hipótese espiritista, aportou a estas investigações — de caráter tão especial — toda a sua lealdade, vigor, clareza mental, tudo quanto distinguiu sempre, de modo marcante, o seu trabalho. Sua obra comprometeu indiretamente a própria metapsíquica, desferindo-lhe um golpe do qual não se recuperou jamais.
Chamado muitas vezes a investigar fenômenos curiosos, como o aparecimento de fantasmas, nada escapava ao sábio. Pode-se imaginar sua atuação frente ao famoso caso da Villa Carmen, de Argel, onde a médium, uma tal Marthe Béraud, jovem de excelente sociedade, produzia, no ano de 1904, a aparição de um fantasma chamado Bien Boa, fantasma de bigodes que circulava em torno dos assistentes envolto num manto branco e que se desmaterializava sobre o piso. O caso provocou a edição de mais um livro do Dr. Richet: Les Phénomènes Dits de Matèrisation de la Villa Carmen (Os Fenômenos Ditos de Materialização da Villa Carmen), Bureau dos Anais de Ciências Psíquicas, Paris, 1906, onde teceu sérias objeções a respeito do fenômeno.
Em 1878 Richet foi nomeado professor agregado da Faculdade de Medicina. Foi professor da Universidade de Paris, Sorbonne, de 1887 a 1927.
Foi um homem de muitos talentos e interesses. Pesquisador da fisiologia, escritor, atraído pela aviação. Participou, inclusive do desenho e da construção de um dos primeiros aviões. Dedicado pacifista, procurou demonstrar os malévolos efeitos da guerra, publicando trabalhos sob o pseudônimo de Charles Epheyer. Escreveu também sobre filosofia, poesia e drama. Durante a I Guerra, no fronte, investigou problemas relacionados à transfusão de plasma sangüíneo. Em 1926, recebeu a Cruz da Legião de Honra.
17 de dezembro de 2008
16 de dezembro de 2008
15 de dezembro de 2008
Intuição
Há uma realidade ao menos que nós percebemos por dentro, por intuição, e não por simples análise. É nossa própria pessoa em seu escoar através do tempo. É nosso eu que dura. Nós podemos não simpatizar intelectualmente ou, antes, espiritualmente, com qualquer outra coisa. Mas nós simpatizamos, seguramente, com nós mesmos.
H. Bergson
H. Bergson
Tardianas
Mas eu acrescento que seria um erro profundo fazer honrar as coletividades, mesmo sob sua forma a mais espiritual do progresso humano. Toda iniciativa fecunda, definitivamente, emana de um pensamento individual, independente e forte; e, para pensar, é necessário isolar-se, não apenas da multidão, – como diz Lamartine, – mas do público. É isto que esquecem os grandes aduladores do povo tomado em massa, e eles não se dão conta da espécie de contradição que está implicada em suas apologias. Porque eles não testemunham, em geral, tanta admiração pelas grandes obras soi-disant anônimas e coletivas, senão para exprimir seu desprezo pelos gênios individuais diferentes do seu. Também é de notar que esses célebres admiradores das unânimes multidões, depreciadores, ao mesmo tempo, de todos os homens em particular, têm sido prodígios de orgulho. Ninguém, mais que Wagner, exceto Victor Hugo, após Chateaubriand talvez e Rousseau, professou a teoria segundo a qual “o povo é a força eficiente da obra de arte” e “o indivíduo isolado nada saberia inventar, mas poderia apenas apropriar-se de uma invenção comum”. Essas admirações coletivas, que não custam nada ao amor próprio de ninguém, são como sátiras impessoais que não ofendem ninguém, porque se endereçam a todo mundo indistintamente.
G. Tarde
G. Tarde
Papel
Papel. Nada mais inspirador. Seja ele alimento de traças, seja ele virtual como estas páginas, a impressão que se tem é de que ainda é o mesmo papel.
Florbela Espanca
SEM REMÉDIO
Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.
E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!
Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!
E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!...
14 de dezembro de 2008
Reflexões Tardianas
O perigo das novas democracias é a dificuldade crescente, para os homens de pensamento, de escaparem à obsessão da agitação fascinadora. É penoso descer em sino de mergulho num mar muito agitado. As individualidades dirigentes que nossas sociedades contemporâneas põem em relevo são, cada vez mais, os escritores que vivem com elas em contínuo contato; e a ação poderosa que eles exercem, preferível, seguramente, à cegueira das multidões acéfalas, é já um desmentido infligido à teoria das massas criadoras. Mas isso não é bastante, e, como não é suficiente difundir, em toda parte, uma cultura média, e é necessário, antes de tudo, elevar sempre mais alto a alta cultura, podemos, com Sumner Maine, preocuparmo-nos já com a sorte que terão, amanhã, os últimos intelectuais, dos quais os serviços, com longos vencimentos, não surpreendem os olhos. O que preserva as montanhas de serem arrasadas e transformadas em terras cultiváveis, em vinhas ou em alfafa pelas populações montanhesas não é, de modo algum, o sentimento pelos serviços prestados por esses castelos naturais; é, simplesmente, pela solidez de seus picos, pela dureza de sua substância, muito difícil de dinamitar. O que preservará da destruição e do nivelamento democrático as sumidades intelectuais e artísticas da humanidade não será, eu temo, o reconhecimento pelo bem que o mundo lhes deve, a justa estima do preço de suas descobertas. Que será, pois?... Eu quereria acreditar que será sua força de resistência. Cuidado, se vierem a se desagregar!
G. Tarde.
G. Tarde.
Os Reclames de Antigamente
A Conquista do Corpo Ideal
Revista Leoplán
Uma revista literária, magazine argentino. Tenho algumas perdidas por ai. Esta tarde encontrei duas, uma de junho de 1944 e outra de dezembro de 1941.
Por acaso...
Por acaso esse papel de alguns centímetros quadrados estava justamente dentro do livro que trata do acaso e de suas leis, esse aí da postagem abaixo. Se vocês quiserem, podem ampliar a imagem com um clic e deliciar-se com o que presumo seja um vale presente pela eternidade afora.
O Acaso
Foi um achado de algumas semanas atrás. No Beco dos Livros, fuçando no recinto dos franceses de uma das lojas da Riachuelo, deparei-me com esse estranho título:
O ACASO
SUA LEI E SUAS CONSEQÜÊNCIAS
NAS CIÊNCIAS E NA FILOSOFIA
Mas se é acaso, como falar de suas leis? O fascínio do acaso não está justamente em sua imprevisibilidade, no imponderável que ele abriga dentro de si? Bem, não resisti e aqui estão novos ácaros que, em breve, completarão cem anos junto comigo, que já estou a meio caminho disso. Ao contrário do que eu pensava, o livro não é sem interesse. No mínimo, tem seu valor pelo que testemunha de uma época. A ediçao é de 1909. Mais curioso, porém, foi constatar que o volume traz ainda um ensaio sobre:
O ACASO
SUA LEI E SUAS CONSEQÜÊNCIAS
NAS CIÊNCIAS E NA FILOSOFIA
Mas se é acaso, como falar de suas leis? O fascínio do acaso não está justamente em sua imprevisibilidade, no imponderável que ele abriga dentro de si? Bem, não resisti e aqui estão novos ácaros que, em breve, completarão cem anos junto comigo, que já estou a meio caminho disso. Ao contrário do que eu pensava, o livro não é sem interesse. No mínimo, tem seu valor pelo que testemunha de uma época. A ediçao é de 1909. Mais curioso, porém, foi constatar que o volume traz ainda um ensaio sobre:
A METEMPSICOSE
BASEADA SOBRE OS PRINCÍPIOS DA BIOLOGIA
E DO MAGNETISMO FISIOLÓGICO
Naturalmente que vou ler. Embora descrente, me encanta constatar o fascínio que certas crenças e teorias, até bem articuladas às vezes, despertam nas pessoas que se entregam a elas sem formular nenhuma objeção. Ora, os ácaros se encontram, e, para isso, devem ter razões que própria razão desconhece.
AS CARTAS XI
Carta de Francisco para Maria escrita em agosto de 1924.
Maria,
Ontem, fui até a casa que abandonaste. Fui em visita de recordação, sofrer a volúpia do abandono.
Pobre casa que te guardou!... Quando cheguei, à procura de qualquer coisa que lá houvesses deixado: um perfume, uma expressão... ela me sorriu um sorriso de tristeza, em que vislumbrei uma queixa, um desconsolo doloroso de velharia abandonada.
Estive, horas e horas, a conversar com ela, a exumar, a reviver... Falou-me, em seguida, de uns olhos, de uma boca, de uns cabelos... Recordou-me um gesto que me enternecera, um dia... Um pedido que me cobrira de emoção... uma promessa que enchera de esperança a minha vida... Contou-me a história de uma separação, que o amor desfizera, para tornar mais nova, mais cheia de encantos, a união... Lembrou-me certas perversidades, certas contrariedades propositais, certos gestos dúbios, que são a tortura e a delícia do amor...
Avivou-me n’alma trechos de dor, trechos de alegria, e tanta coisa, tanta coisa mais... Confidências, frangalhos de alma, pedaços de vida, coisas passadas, coisas vividas que já estão na memória, mas que ainda alegram ou doem...
Disse-me então, que é viva de segredos, de mistérios, de palavras que nunca tocaram ouvido algum, de confissões que morreram no silêncio...
Pôs-se a recordar, depois, a vida que vivera antes. Os dias de festa, os dias de esplendor, quando o seu interior era sacudido pela sonoridade das risadas felizes. A graça feminina que lhe povoara de leve o ambiente... Toda a sua vida anterior, luminosa, e, agora, aquele vazio, aquele silêncio...
— É o fim de todas as coisas, minha pobre amiga.
A casa sorriu tristemente e acabou:
— Vivo, agora, da saudade do que fui antes, da lembrança do que, talvez, não serei mais...
E desandou a chorar. Chorei com ela. Nesse momento, ameia-a mais que nunca. Éramos irmãos na mesma dor...
Deixei-a chorando ainda. E quando me separava, os meus passos acordaram os teus passos adormecidos na calçada.
E eu senti, então, a ilusão da tua chegada.
Mas, não chegaste. Chegou a Tristeza, que me levou, carinhosa e boa, abraçada comigo, até ao meu quarto. Foi a minha companhia de vigília nessa noite. Depois ficou morando comigo. Santa Tristeza!
Santa Tristeza!
Meu amor!
Do teu
Francisco
Observações:
Maria,
Ontem, fui até a casa que abandonaste. Fui em visita de recordação, sofrer a volúpia do abandono.
Pobre casa que te guardou!... Quando cheguei, à procura de qualquer coisa que lá houvesses deixado: um perfume, uma expressão... ela me sorriu um sorriso de tristeza, em que vislumbrei uma queixa, um desconsolo doloroso de velharia abandonada.
Estive, horas e horas, a conversar com ela, a exumar, a reviver... Falou-me, em seguida, de uns olhos, de uma boca, de uns cabelos... Recordou-me um gesto que me enternecera, um dia... Um pedido que me cobrira de emoção... uma promessa que enchera de esperança a minha vida... Contou-me a história de uma separação, que o amor desfizera, para tornar mais nova, mais cheia de encantos, a união... Lembrou-me certas perversidades, certas contrariedades propositais, certos gestos dúbios, que são a tortura e a delícia do amor...
Avivou-me n’alma trechos de dor, trechos de alegria, e tanta coisa, tanta coisa mais... Confidências, frangalhos de alma, pedaços de vida, coisas passadas, coisas vividas que já estão na memória, mas que ainda alegram ou doem...
Disse-me então, que é viva de segredos, de mistérios, de palavras que nunca tocaram ouvido algum, de confissões que morreram no silêncio...
Pôs-se a recordar, depois, a vida que vivera antes. Os dias de festa, os dias de esplendor, quando o seu interior era sacudido pela sonoridade das risadas felizes. A graça feminina que lhe povoara de leve o ambiente... Toda a sua vida anterior, luminosa, e, agora, aquele vazio, aquele silêncio...
— É o fim de todas as coisas, minha pobre amiga.
A casa sorriu tristemente e acabou:
— Vivo, agora, da saudade do que fui antes, da lembrança do que, talvez, não serei mais...
E desandou a chorar. Chorei com ela. Nesse momento, ameia-a mais que nunca. Éramos irmãos na mesma dor...
Deixei-a chorando ainda. E quando me separava, os meus passos acordaram os teus passos adormecidos na calçada.
E eu senti, então, a ilusão da tua chegada.
Mas, não chegaste. Chegou a Tristeza, que me levou, carinhosa e boa, abraçada comigo, até ao meu quarto. Foi a minha companhia de vigília nessa noite. Depois ficou morando comigo. Santa Tristeza!
Santa Tristeza!
Meu amor!
Do teu
Francisco
Observações:
É notável como Francisco encontra, no fato de sofrer, um consolo para a ausência de sua amada. Como se ir até a casa de onde sua Maria se mudara fosse trazê-la para mais perto dele. Recordar-se de coisas alegres ou tristes, cuidar de reviver na memória os menores gestos e detalhes, fosse um perfume, fosse o som de passos na calçada. Ao menos sua ausência, sentida com intensidade, parece-lhe servir de consolo. Estas cartas de 1924 são especialmente poéticas e apresentam passagens notáveis, como aquela da união desfeita pelo próprio amor, para torná-la mais forte. Francisco foi um romântico incorrigível e suas cartas dão inegável testemunho disso. No entanto, ele também encarna um jovem porto-alegrense dos anos vinte, estudante, culto e, penso eu, elegante e refinado, seja pela letra, seja pela correção e estilo. Maria, por sua vez, nos é revelada através do amor de Francisco que, embora não a descreva fisicamente nas cartas, nos fornece dados não pouco precisos sobre a jovem que encantou e o manteve cativo por décadas e décadas, deixando-nos suas cartas como testemunho de sua história.
Especulações Tardianas
Gabriel Tarde é um dos muitos autores que mais me fascinam. Tenho por ele um carinho especial, e é difícil que se passe uma semana sem que eu folheie uma de suas obras e assinale alguma passagem. Muitas vezes anoto, traduzo e esqueço a referência. Viram folhas soltas, avulsas, anotações como esta, cuja referência não anotei, e que me serviu para assinalar a faceta surpreendentemente mística deste autor, coisa que lhe valeu críticas de Enrico Ferri. São suas especulações metafísicas, pela quais ele se desculpa, inclusive:
Não digamos nem a outra vida nem o nada; digamos a não-vida, sem nada prejulgar. A não-vida, não mais que o não-eu, não é, necessariamente o não-ser; e os argumentos de certos filósofos contra a possibilidade da existência após a morte não funcionam, não mais que aqueles dos cépticos idealistas contra a realidade do mundo exterior. — Que a vida seja preferível à não-vida, nada de menos demonstrado. — Talvez a vida seja somente um tempo de provas, de exercícios escolares e dolorosos impostos às mônadas que, ao saírem desta dura e mística escola, encontrem-se purgadas de sua anterior necessidade de dominação universal. Persuado-me de que poucas dentre elas, uma vez depostas de seu trono cerebral, aspirem para aí retornar. Retornadas à sua originalidade própria, à sua independência absoluta, elas renunciam sem trabalho e para sempre ao poder corporal, e, durante a eternidade, vão saborear o estado divino, onde o ultimo segundo da vida as mergulhou, isentas de todas os males e de todos os desejos, — eu não digo de todos os amores — e na certeza de terem um bem escondido, eternamente durável. Assim se explicaria a morte: assim se justificaria a vida, pela purgação do desejo... Mas chega de formular hipóteses! Você perdoa-me esta brincadeira metafísica, amiga leitora?
Observação: Melhor esclarecer este ponto para alguns de nossos leitores. Mônada, segundo Leibniz, seria cada uma das substâncias simples e de número infinito, de natureza psíquica. Elas não teriam qualquer relação umas com as outras, e se agregariam harmoniosamente por predeterminação da divindade, constituindo as coisas de que a natureza se compõe.
Não digamos nem a outra vida nem o nada; digamos a não-vida, sem nada prejulgar. A não-vida, não mais que o não-eu, não é, necessariamente o não-ser; e os argumentos de certos filósofos contra a possibilidade da existência após a morte não funcionam, não mais que aqueles dos cépticos idealistas contra a realidade do mundo exterior. — Que a vida seja preferível à não-vida, nada de menos demonstrado. — Talvez a vida seja somente um tempo de provas, de exercícios escolares e dolorosos impostos às mônadas que, ao saírem desta dura e mística escola, encontrem-se purgadas de sua anterior necessidade de dominação universal. Persuado-me de que poucas dentre elas, uma vez depostas de seu trono cerebral, aspirem para aí retornar. Retornadas à sua originalidade própria, à sua independência absoluta, elas renunciam sem trabalho e para sempre ao poder corporal, e, durante a eternidade, vão saborear o estado divino, onde o ultimo segundo da vida as mergulhou, isentas de todas os males e de todos os desejos, — eu não digo de todos os amores — e na certeza de terem um bem escondido, eternamente durável. Assim se explicaria a morte: assim se justificaria a vida, pela purgação do desejo... Mas chega de formular hipóteses! Você perdoa-me esta brincadeira metafísica, amiga leitora?
Observação: Melhor esclarecer este ponto para alguns de nossos leitores. Mônada, segundo Leibniz, seria cada uma das substâncias simples e de número infinito, de natureza psíquica. Elas não teriam qualquer relação umas com as outras, e se agregariam harmoniosamente por predeterminação da divindade, constituindo as coisas de que a natureza se compõe.
7 de dezembro de 2008
AS CARTAS X
Carta de Francisco para Maria escrita em agosto de 1924.
Maria,
Longos dias a te procurar em vão, andei pelas ruas da cidade. Meu vulto doloroso, meio esbatido entre a névoa destes últimos dias, era todo o anseio de uma busca e o desânimo de uma desilusão. Tu não me aparecias...
Da primeira claridade do dia, no meio do bulício, entre o torvelinho humano, à meia-tinta do crepúsculo, sempre em vão, rodei pelos caminhos, em procura da minha vida, em procura de mim mesmo.
E a tua figura, vezes e vezes, vivia, efemeramente, aos olhos da minha ilusão, na figura das outras mulheres que passavam, vagas, indistintas, tecendo o meu engano.
Rodavam comigo a Saudade, a soluçar a canção das lágrimas, e o meu cigarro.
E depois, na solidão da noite, todo o impossível de te ver doía-me n’alma... Era uma dor absconsa, enorme, a apertar-me o coração e a umedecer-me os olhos... E eu desesperava...
De repente ela veio... Veio vindo, vagarosa, tímida... Começou tomando-me as mãos entre as suas mãos longas e frias... Depois enlaçou-me o busto, recolheu-me as lágrimas dos olhos com os seus lábios de morta, e pôs-se a murmurar, num sopro, ao meu ouvido, palavras de conforto.
Um pouco anestesiado da grande dor, olheia-a com simpatia de infeliz...
Era a chuva, a minha irmã... A minha doce e melancólica irmã... Trazia nos olhos de violeta toda a doçura e nos gestos de sombra toda a ternura do amor.
Cessaram as minhas lágrimas. Já não era tão só. Envolvi-me, então, longamente, tristemente, nas suas carícias frias, a sonhar, de pálpedras caídas, com as carícias mornas do teu corpo de pássaro...
E quando a chuva se foi, tu vieste
para o teu
Francisco
Maria,
Longos dias a te procurar em vão, andei pelas ruas da cidade. Meu vulto doloroso, meio esbatido entre a névoa destes últimos dias, era todo o anseio de uma busca e o desânimo de uma desilusão. Tu não me aparecias...
Da primeira claridade do dia, no meio do bulício, entre o torvelinho humano, à meia-tinta do crepúsculo, sempre em vão, rodei pelos caminhos, em procura da minha vida, em procura de mim mesmo.
E a tua figura, vezes e vezes, vivia, efemeramente, aos olhos da minha ilusão, na figura das outras mulheres que passavam, vagas, indistintas, tecendo o meu engano.
Rodavam comigo a Saudade, a soluçar a canção das lágrimas, e o meu cigarro.
E depois, na solidão da noite, todo o impossível de te ver doía-me n’alma... Era uma dor absconsa, enorme, a apertar-me o coração e a umedecer-me os olhos... E eu desesperava...
De repente ela veio... Veio vindo, vagarosa, tímida... Começou tomando-me as mãos entre as suas mãos longas e frias... Depois enlaçou-me o busto, recolheu-me as lágrimas dos olhos com os seus lábios de morta, e pôs-se a murmurar, num sopro, ao meu ouvido, palavras de conforto.
Um pouco anestesiado da grande dor, olheia-a com simpatia de infeliz...
Era a chuva, a minha irmã... A minha doce e melancólica irmã... Trazia nos olhos de violeta toda a doçura e nos gestos de sombra toda a ternura do amor.
Cessaram as minhas lágrimas. Já não era tão só. Envolvi-me, então, longamente, tristemente, nas suas carícias frias, a sonhar, de pálpedras caídas, com as carícias mornas do teu corpo de pássaro...
E quando a chuva se foi, tu vieste
para o teu
Francisco
Guy de Maupassant (1850-1893)
Adoro Maupassant. Tenho sua obra em 17 volumes colocada em lugar de honra numa estante. Este fascinante escritor, insuperável mestre do conto, viveu pouco mais de quarenta anos, e morreu atormentado pela loucura. Seu O HORLA, na versão escrita em forma de diário, descreve em primeira pessoa os transtornos sofridos por alguém que narra os acontecimentos sobrenaturais com que se depara no dia-a-dia. Horla, — título do conto, — é nome próprio, palavra com que o autor batizou a criatura misteriosa que assombra o personagem que escreve o diário. Essa palavra, contudo, tem a mesma pronúncia da expressão hors là, que significa o que está fora daqui, o que se situa além. Uma de minhas passagens favoritas é esta:
12 de maio — Tenho um pouco de febre desde alguns dias; sinto-me sofrer ou, antes, sinto-me triste.
De onde vêm essas influências misteriosas que transformam em desencorajamento nossa felicidade e nossa confiança em desespero? Dir-se-ia que o ar, o ar invisível está cheio de Forças desconhecidas, das quais nós sofremos a vizinhança misteriosa. Desperto cheio de alegria, com vontade de cantar na garganta. — Por quê? — Será um arrepio de frio que, roçando minha pele, abalou meus nervos e escureceu minha alma? Será a forma das nuvens, ou a cor do dia, a cor das coisas, tão variável, que, passando por meus olhos, perturbou meu pensamento? Sabe-se? Tudo aquilo que nos cerca, tudo aquilo que nós vemos sem enxergar, tudo aquilo em que roçamos sem conhecer, tudo aquilo em que tocamos sem palpar, tudo aquilo que encontramos sem distinguir têm sobre nós, sobre nossos órgãos e, através deles, sobre nossas idéias, sobre nosso coração ele mesmo, efeitos rápidos, surpreendentes e inexplicáveis.
Como é profundo esse mistério do Invisível! Nós não o podemos sondar com nossos sentidos miseráveis, com nossos olhos que não sabem perceber nem o muito pequeno, nem o muito grande, nem o muito perto, nem o muito longe, nem os habitantes de uma estrela, nem os habitantes de uma gota d’água... Com nossos ouvidos que nos enganam, porque eles nos transmitem as vibrações do ar em notas sonoras. Eles são fadas que realizam esse milagre de transformar em ruído esse movimento e, através dessa metamorfose, dão nascimento à música que torna cantante a agitação muda da natureza... Com nosso olfato, mais fraco que aquele de um cão... Com nosso paladar que mal pode distinguir a idade de um vinho!
Ah! Se nós tivéssemos outros órgãos que realizassem em nosso favor outros milagres, quantas coisas poderíamos descobrir ainda em torno de nós!
De onde vêm essas influências misteriosas que transformam em desencorajamento nossa felicidade e nossa confiança em desespero? Dir-se-ia que o ar, o ar invisível está cheio de Forças desconhecidas, das quais nós sofremos a vizinhança misteriosa. Desperto cheio de alegria, com vontade de cantar na garganta. — Por quê? — Será um arrepio de frio que, roçando minha pele, abalou meus nervos e escureceu minha alma? Será a forma das nuvens, ou a cor do dia, a cor das coisas, tão variável, que, passando por meus olhos, perturbou meu pensamento? Sabe-se? Tudo aquilo que nos cerca, tudo aquilo que nós vemos sem enxergar, tudo aquilo em que roçamos sem conhecer, tudo aquilo em que tocamos sem palpar, tudo aquilo que encontramos sem distinguir têm sobre nós, sobre nossos órgãos e, através deles, sobre nossas idéias, sobre nosso coração ele mesmo, efeitos rápidos, surpreendentes e inexplicáveis.
Como é profundo esse mistério do Invisível! Nós não o podemos sondar com nossos sentidos miseráveis, com nossos olhos que não sabem perceber nem o muito pequeno, nem o muito grande, nem o muito perto, nem o muito longe, nem os habitantes de uma estrela, nem os habitantes de uma gota d’água... Com nossos ouvidos que nos enganam, porque eles nos transmitem as vibrações do ar em notas sonoras. Eles são fadas que realizam esse milagre de transformar em ruído esse movimento e, através dessa metamorfose, dão nascimento à música que torna cantante a agitação muda da natureza... Com nosso olfato, mais fraco que aquele de um cão... Com nosso paladar que mal pode distinguir a idade de um vinho!
Ah! Se nós tivéssemos outros órgãos que realizassem em nosso favor outros milagres, quantas coisas poderíamos descobrir ainda em torno de nós!
A propósito, é sobre uma passagem desse famoso conto de Maupassant, — O HORLA, — que estudiosos de psicologia coletiva se debruçaram, indicando-a, inclusive. Maupassant é citado por Rossi, por Sighele e por Ferri, entre outros. Vale a pena conhecer esta passagem do diário que, na obra, aparece com a data da Queda da Bastilha, passagem que chamou a atenção de muitos estudiosos das multidões:
14 de julho — Festa da República. Passeio pelas ruas. Os petardos e as bandeiras divertem-me como a uma criança. É, todavia, muito estúpido ser feliz em data fixa, por decreto do governo. O povo é uma tropa imbecil, ora estupidamente paciente e ora ferozmente revoltado. Diz-se-lhe: “Alegra-te.” Ele se alegra. Diz-se-lhe: “Vai bater-te com teu vizinho.” Ele vai bater-se. Diz-se-lhe: “Vota pelo Imperador.” Ele vota pelo Imperador. Depois, diz-se-lhe: “Vota pela República.” E ele vota pela República.
Aqueles que o dirigem são também estúpidos; mas, em lugar de obedecer a homens, eles obedecem a princípios, os quais não podem ser senão nadas, estéreis e falsos, por isso mesmo que são princípios, quer dizer, idéias reputadas certas e imutáveis nesse mundo onde não se está seguro de nada, pois a luz é uma ilusão, pois o ruído é uma ilusão.
Aqueles que o dirigem são também estúpidos; mas, em lugar de obedecer a homens, eles obedecem a princípios, os quais não podem ser senão nadas, estéreis e falsos, por isso mesmo que são princípios, quer dizer, idéias reputadas certas e imutáveis nesse mundo onde não se está seguro de nada, pois a luz é uma ilusão, pois o ruído é uma ilusão.
6 de dezembro de 2008
AS CARTAS IX
Carta de Francisco para Maria escrita em 17 de março de 1924
Maria,
Em tua carta de hoje, supuseste muita coisa para explicar o não recebimento da minha carta de dez e, entanto, não supuseste tudo. Deixaste até de fazer suposições mais aceitáveis, pelo menos para mim, que aquelas que fizeste. Pensaste, antes de tudo (era natural...) numa exageração de castigo; depois numa viagem imprevista; e, afinal, num outro qualquer motivo grandemente dominador. Erraste em todas as tuas conjecturas, em todas as tuas hipóteses. Motivo grandemente dominador, viagem, exageração de castigo, nada disso houve. Nem pouca vontade de escrever, nem preguiça, nem falta de prazer, nem desejo de dizer-te qualquer coisa, iluminado pela ânsia de receber de ti alguma coisa. Ao contrário: foi até radiante de felicidade que senti chegar o dia oito, que te escrevi, e tão ansiosamente esperava já a tua resposta que nem pus, nessa carta, o dia em que devias esperar outra... Em vez de te castigar, eu é que estava sendo castigado... Por isso foi com surpresa que soube do não recebimento da minha carta. Esta, como já disse, foi escrita e deitada na caixa postal dia oito. Agora, para mim, as presunções possíveis, admissíveis, verdadeiras, são estas: ou houve extravio ou receptação. Tanto a primeira quanto a segunda hipóteses são aceitáveis. Mas quem poderá saber qual foi a realizada? Em todo caso, a segunda é a menos difícil de ser verificada.
Essa complicação veio trazer-me o antigo temor na fragilidade de nosso plano. Eu tenho bem consciência de sua inconsistência. Receio que sejamos descobertos. Não que eu tema por mim. Eu temo por ti unicamente, que estás tão perto das criaturas que se preocupam tanto contigo e com as nossas coisas.
Por isso, dou-te uma sugestão prudente: cessarmos a nossa correspondência. Eu irei sofrer muito. Irei sentir mais desolada a minha solidão. Mas, é necessário. A vida, continuamente, exige do homem, para sua felicidade, um novo sacrifício. Eu estou pronto a fazer todos os que me pedir. Irei fazer mais um.
Responde-me logo.
Francisco
Maria,
Em tua carta de hoje, supuseste muita coisa para explicar o não recebimento da minha carta de dez e, entanto, não supuseste tudo. Deixaste até de fazer suposições mais aceitáveis, pelo menos para mim, que aquelas que fizeste. Pensaste, antes de tudo (era natural...) numa exageração de castigo; depois numa viagem imprevista; e, afinal, num outro qualquer motivo grandemente dominador. Erraste em todas as tuas conjecturas, em todas as tuas hipóteses. Motivo grandemente dominador, viagem, exageração de castigo, nada disso houve. Nem pouca vontade de escrever, nem preguiça, nem falta de prazer, nem desejo de dizer-te qualquer coisa, iluminado pela ânsia de receber de ti alguma coisa. Ao contrário: foi até radiante de felicidade que senti chegar o dia oito, que te escrevi, e tão ansiosamente esperava já a tua resposta que nem pus, nessa carta, o dia em que devias esperar outra... Em vez de te castigar, eu é que estava sendo castigado... Por isso foi com surpresa que soube do não recebimento da minha carta. Esta, como já disse, foi escrita e deitada na caixa postal dia oito. Agora, para mim, as presunções possíveis, admissíveis, verdadeiras, são estas: ou houve extravio ou receptação. Tanto a primeira quanto a segunda hipóteses são aceitáveis. Mas quem poderá saber qual foi a realizada? Em todo caso, a segunda é a menos difícil de ser verificada.
Essa complicação veio trazer-me o antigo temor na fragilidade de nosso plano. Eu tenho bem consciência de sua inconsistência. Receio que sejamos descobertos. Não que eu tema por mim. Eu temo por ti unicamente, que estás tão perto das criaturas que se preocupam tanto contigo e com as nossas coisas.
Por isso, dou-te uma sugestão prudente: cessarmos a nossa correspondência. Eu irei sofrer muito. Irei sentir mais desolada a minha solidão. Mas, é necessário. A vida, continuamente, exige do homem, para sua felicidade, um novo sacrifício. Eu estou pronto a fazer todos os que me pedir. Irei fazer mais um.
Responde-me logo.
Francisco
4 de dezembro de 2008
Um Pequeno Cão de Nada
Do Memorial de Aires, o comovente parágrafo 444, escrito ao melhor estilo de Machado de Assis, fala-nos da devoção de um casal a um cão:
Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho levou-lho um dia, com poucos meses de existência, e ambos entraram a gostar dele. Não lhe conto o que a madrinha fazia por ele, desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia crédito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze anos da raça; a doença achou enfermeira, e a morte teve lágrimas. Quando entrar no jardim à esquerda, ao pé do muro, olhe, foi aí que o enterraram; e já não lembrava, a madrinha é que mo apontou ontem.
Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho levou-lho um dia, com poucos meses de existência, e ambos entraram a gostar dele. Não lhe conto o que a madrinha fazia por ele, desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia crédito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze anos da raça; a doença achou enfermeira, e a morte teve lágrimas. Quando entrar no jardim à esquerda, ao pé do muro, olhe, foi aí que o enterraram; e já não lembrava, a madrinha é que mo apontou ontem.
Calar-se
... o próprio silêncio se define em relação às palavras, assim como a pausa, em música, ganha o seu sentido a partir dos grupos de notas que a circundam. Calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar ― logo, ainda é falar.
Sartre. Que é a literatura? Ed. Ática, SP, 1989. Pg. 22.
Sartre. Que é a literatura? Ed. Ática, SP, 1989. Pg. 22.
3 de dezembro de 2008
Assinar:
Postagens (Atom)