Uma carta comovente. Tanto que, não obstante seja desaconselhável postar textos longos em bloggers, assim mesmo vou reproduzi-la integralmente, não sem antes explicar algumas coisas. É que há dois textos de Bergson concernentes a Gabriel Tarde. O primeiro a ser publicado até hoje é o texto do Prefácio dado por Bergson à obra dos filhos de G. Tarde intitulada Tarde (Michaud, 1909). Pode-se encontrá-lo na coletânea constituída pela Sra. Mossé-Bastide, Henri Bergson, écrits et paroles, P.U.F., vol. II, pp. 332 à 334. O segundo, ― que traduzo a seguir, ― permaneceu ignorado. Foi publicado numa coletânea de fraca tiragem editada aos cuidados do Comitê de Inauguração do Monumento de Tarde em Sarlat (1909). Eis a referência exata: Gabriel Tarde. Discursos pronunciados a 12 de setembro de 1909 em Sarlat, quando da inauguração de seu monumento. Sarlat. Michelet, Imprimeur, rue de la Charité. 1909. A referência ao lado, da Biblioteca Nacional, é: 8° Ln27.58174. Eu encontrei este material no anexo à edição virtual de As Transformações do Direito, disponível no site Les Classiques des Sciences Sociales. A carta de Bergson, ― que não pudera estar presente e que havia remetido o texto desta carta para fosse lida quando da inauguração do monumento, ― figura nas páginas 94 e seguintes da citada coletânea de discursos.
Carta de Bergson, do Instituto, Professor de Filosofia no Collège de France.
A história da filosofia ensina-nos a distinguir dois gêneros de pensadores. Existem aí aqueles que escolhem sua direção e que caminham metodicamente rumo ao seu objetivo, elevando-se de grau em grau até uma síntese querida e premeditada. Existem outros que vão, sem método aparente, aonde sua fantasia os conduz, mas cujo espírito é tão bem afinado ao uníssono das coisas que todas as suas idéias se harmonizam naturalmente entre elas. Sua reflexão, partindo de não importa onde e engajando-se em não importa que caminho, arranja-se para conduzi-las sempre ao mesmo ponto. Suas intuições, que nada têm de sistemático, organizam-se delas mesmas em síntese. Eles são filósofos sem haver procurado sê-lo, sem haver pensado nisso.
À raça desses últimos pertence Gabriel Tarde. Aquilo que primeiro surpreende nele é o imprevisto de uma fantasia que multiplica os apanhados rápidos, as visões originais e brilhantes. Mas, logo, a unidade e a profundidade de doutrina revelam-se. Um grande pensamento sustenta a obra e imprime-lhe sua direção.
Ele nos conduz, por mil caminhos diferentes, a ver, nas iniciativas individuais e na irradiação dessas iniciativas em torno delas, a verdadeira causa daquilo que se faz em uma sociedade e, mesmo, daquilo que se passa no mundo. Seduzidos pelos belos sucessos das ciências físicas, nós somos muito levados a construir as ciências sociais sobre o mesmo modelo, a colocar como princípio que a evolução das sociedades deve obedecer a leis inelutáveis, a representar-nos os eventos históricos como os resultados necessários de forças cegas, impessoais, que se comporiam entre si mecanicamente. Contra esta tendência tornada natural ao nosso espírito, toda a filosofia de Tarde protesta. Sem dúvida, as sociedades humanas são atravessadas por correntes; mas, na origem de cada corrente, existe um impulso, e o impulso vem de um homem. Sem dúvida, a evolução das sociedades é regrada por leis; mas essas leis são da mesma natureza daquelas que presidem a formação e o desenvolvimento de nosso caráter individual. Como a história de cada um de nós se explica pelas iniciativas e pelos hábitos contraídos, assim a vida das sociedades é feita de invenções que surgem aqui e ali e de modificações duráveis a que essas invenções conduzem em se fazendo adotar. Como cada um de nós — uma vez o hábito adotado — se repete e se copia a si mesmo, assim, em uma sociedade, todos os homens se imitam indefinidamente uns aos outros. A imitação é, pois, a verdadeira lei, tão universal no mundo dos espíritos quanto a gravitação o é no mundo dos corpos. Mas, diferentemente da lei da gravitação, é uma lei suave e flexível, como tudo aquilo que é humano.
Grande e importante idéia! Tarde deduziu-a de certas visões metafísicas profundas sobre a natureza do universo, elementos que o compõem e ações que esses elementos exercem uns sobre os outros. E ele aí relacionava mil considerações engenhosas sobre a estrutura de nosso espírito e sobre o funcionamento das sociedades. Mas, desta obra, onde o sociólogo, o psicólogo, o moralista, o economista e o jurista encontrarão tanto a aprender, uma lição se destaca, que se endereça a todo mundo. Mostrando-nos como a menor de nossas iniciativas pode abrir-se em conseqüências incalculáveis, como um simples gesto individual, caindo no meio social como uma pedra na água de um lago, movimenta-o inteiramente por ondas imitativas que se vão ampliando sempre, ela nos dá um sentimento agudo de nossa responsabilidade. Revelando-nos tudo aquilo que devemos a outrem, inventores em certos momentos, mas imitadores durante nossa vida inteira, ela esclarece, ela fortifica em nós o sentimento da solidariedade. Relacionando ao costume muitas coisas que se põem comumente na conta da natureza; fazendo remontar aos pensamentos individuais, às vontades individuais, a origem das transformações profundas da sociedade e da humanidade, ela nos desabitua de crer nas fatalidades históricas; ela nos convida a agir, a ter confiança em nós, a jamais desesperar do presente, a considerar tranqüilamente o amanhã. Do outro lado da inteligência à qual ela fala, está a vontade que ela atinge, estimula e fortalece.
Saudemos em Tarde o filósofo de pensamento penetrante, imaginação ousada que nos abre tantos horizontes; mas saibamo-lo contente, sobretudo, por haver realizado a mais alta ambição da filosofia, que é a de nos tornar melhores e mais fortes.
Henri Bergson