Os livros se encontram, parece que chamam uns pelos outros. Uma biblioteca qualquer, por simples que seja, coleciona histórias e sincronicidades, coincidências e acasos. Assim foi que, numa manhã para mim marcante, o editor para o qual eu trabalhava mandou me entregar aqui na 407 a edição argentina de El Alma de la Mujer, Emecé, Buenos Aires, 1945, 3ª edição, tradução de Eduardo Blanco Amor. É uma obra escrita com muito sentimento, critério e, estou certa, com toda honestidade intelectual de sua autora, que aborda a condição feminina. Gina, vale lembrar, destacou-se por seus dotes intelectuais, e também nos deixou a biografia de seu pai. Há muitas passagens interessantes que marquei para mim mesma quando li. Agora mostro a vocês algumas delas:
A capacidade da mulher para influir sobre as emoções dos outros faz com que o homem a considere, conforme o caso, com horror ou com admiração, como algo que está acima do natural (pág. 27).
Em quase todos os "diários" e "memórias" que nos ficaram das aristocratas francesas emigradas por causa da Revolução existe alusão à surpreendente satisfação que encontraram, após tantos anos de vida ociosa, nos mais humildes misteres da vida; satisfação que, na maioria das vezes, não haviam encontrado em suas antigas ocupações mundanas (pág. 111).
Um pensamento pode-se ruminar sozinha. Uma intuição precisa ser compartilhada (pág. 112).
Quando uma mulher visita uma exposição, freqüenta um curso ou lê um livro, vai achá-los magníficos ou detestáveis; sentir-se-á levada ao sétimo céu da admiração ou ao quinto dos infernos do desagrado; achará que a idéia desenvolvida ou representada lhe recorda isso ou aquilo; que o livro revela delicadeza de seu autor, grosseria ou malícia; que o quadro revela um certo romantismo; que a mulher do profesor deve sentir-se orgulhosa de ter um marido tão inteligente... Afirmações ou suposições que, em seu caráter de meras hipóteses, podem aproximar-se do real, mas que, sem dúvida alguma, nada tem a ver com a objetividade do quadro, do livro, do curso (pág. 117).
Gina tenta nos revelar o que pensa ser a essência do feminino, em especial, no que existe aí de diferente do masculino. É um livro para mulheres, mas também dirigido aos homens, com passagens que certamente envelheceram, mas que nem assim perdem em interesse. Li faz tempo, e ainda hoje tenho certo carinho pela Gina, talvez piedade, pois ela me inspira algo relacionado ao sacrifício que a condição feminina impunha às mulheres no tempo em que ela viveu e no tempo em que muitas ainda vivem hoje.
Certo é que a natureza não deu a mulher mais que dois meios para reter ao seu lado o homem que ama: ou ser-lhe útil, ou seja, dedicar-lhe toda sua atividade, ou embriagá-lo pelos sentidos. O primeiro deles corresponde à mulher normal; o segundo, à mulher anormal, ou, mais exatamente, à mulher perdida (pág. 146).
Parece que sempre seremos ou santas ou prostitutas. Destino de Maria Imaculada ou de Lilith amaldiçoada e lançada ao abismo, seja marginalizadas pela religião ou, no caso, pela própria ciência que normaliza a condição feminina também, limitando-a. Dá pra entender por que tantas histéricas refugiaram-se na religião e encontraram conforto até na penitência, no sacrifício, na busca desesperada pela salvação, no famoso padecer no paraíso. Pior: dá para entender como se sente um homem colocado assim diante de um ser que pode apenas negar-se ou entregar-se docilmente, sem qualquer opção intermediária, a não ser as já previamente assinadas por uma natureza tida então por atávica. Normal ou perversa. E, se lembrarmos que homens foram e são educados por mães assim, torna-se claro que a humanidade cria para si mesma culpas e delitos tão originais quanto o pecado de Adão e Eva.
A gratuidade de alguns sofrimentos chega a ser prosaica.