27 de dezembro de 2020

Questionável "evolução"

 Pela História afora criamos muitos deuses e heróis, para que administrassem nossos destinos. Notável, todavia, é que sua evolução ao longo do tempo seja tão decepcionante. O glorioso Zeus deu lugar a um cobrador de impostos: exige dízimos e habita templos cuja arquitetura sabe mais a bancos que a partenons. A evolução dos heróis não fica atrás. Derivou a espécimes diante dos quais o clássico Hércules empalideceria: homens aranhas, morcegos, dentre outras excentricidades.

24 de dezembro de 2020

Produção desobjetivada

Bem assim. Relendo o que me escreveste tempos atrás. É a nossa história, tua versão dela, que intitulaste "O Pêndulo". Ali, entre outras coisas, disseste de mim que, por ser como sou, minha produção artística e intelectual é desobjetivada.  — Pudera! Coisa mais desobjetivada que estas traças e estes ácaros, impossível! — Mas é verdade. Não sou objetiva. Não quero saber o que vou desenhar, nem o que vou pintar, nem o que vou escrever. Nunca sei o que vou postar aqui. Descubro o que fiz só depois de fazer. Pode ser até assustador, mas sou um mistério para mim mesma. Que difícil deve ter sido para ti conviver comigo por tanto tempo...

23 de dezembro de 2020

20 de dezembro de 2020

Então

Não entendi, mas... por que deveria?
 

16 de dezembro de 2020

Eu sei


 Sentar, descansar, iluminar-se na pracinha e esperar. Porque um dia tu vais me surgir assim do nada, do ar, num clarão, num reflexo, numa leve impressão

15 de dezembro de 2020

Eu entendi tudo


Ele recebe os clientes do restaurante de beira de estrada muito à vontade. No meu caso, limitou-se a erguer a cabeça e a dar uma olhada na câmera. Daí, depois que devorei o enorme pastel sem vento, recheado de muita carne suculenta, salsinha e ovo cozido picados, além do café preto passado na hora, tudo simplesmente divino, eu entendi tudo.

politique d'autruche


Então, o bicho tem assim um olhar de superioridade que vou te contar. Ainda mais que muito mais alto que eu!

12 de dezembro de 2020

Bobagens às traças

 

Organização do tempo. Sim, sei que há pessoas que conseguem isso. Se agendam e cumprem. Eu faço isso também, mas tenho absoluta certeza de que, quando funciona, é bem menos por minha capacidade de organização do que por uma espécie de sorte. Sorte? É, tipo assim aquela música "o acaso vai nos proteger", etc. Porque são tantos os imponderáveis. E o tempo não deixa de ser, ele mesmo, imponderável, ainda que se deixe medir. Mas, de certo mesmo, sobre o tempo, uma certeza eu tenho: ele é um luxo, e quando mais o despendemos em futilidades, mais luxuoso ele se torna. Como agora mesmo, por exemplo, com mil coisas importantes a fazer, e eis uma bela hora tomada à manhã deste sábado e desperdiçada numa aquarela e nestas bobagens que escrevo para atirar às traças.

10 de dezembro de 2020

Fidelidade

Quanto mais me estranho no espelho, mais me reconheço na minha escrita.

5 de dezembro de 2020

Só reflexo

 

As torres da igreja refletidas na fonte da praça em frente. É um recorte que, como tal, assume autonomia, independência, liberdade, eu diria. Porque, recortado do todo, não precisa mais ficar submisso à realidade, ao conjunto que integrava como mero reflexo. Agora é real também. Tanto quanto. E eu, justamente por conta de coisas como essa, amo tanto a fotografia: afinal, com ela, quando eu minto, minto de verdade.

4 de dezembro de 2020

Tua ausência

 

Ando por aí vendo tantas coisas. Reconheço belezas prontas em algumas e colho: como essa maravilhosa borboleta. Em outras, fabrico meus próprios belos. Tenho também tocado tantas páginas cujo papel é cheio de vida. Há música e há silêncio que, pacífico, invade a minha casa. Há sabores novos também. Não digo que todas essas coisas não me tragam alegrias, porque me trazem. E porque meus sentidos me entregam tudo com exagerada prodigalidade, como dizias. Entretanto, mal me dou conta de que não estás mais aqui, cores e sabores vão embora, livros emudecem, música e silêncio se igualam: tudo para dar lugar à tua ausência.

3 de dezembro de 2020

Beatriz, a de Dante, sim


 Eu e a Beatriz, que lia a Divina Comédia, ambas sob o olhar de Dante, lá em Caxias do Sul, na praça, durante uma feira do livro, a caminho do Foro, porque não custa parar e olhar. Impressionante é que Beatriz tenha se mudado, ela e Dante, para o Rio Grande do Sul. Quem diria? Mas como são vizinhos da Catedral, que fica ali perto, só posso imaginar que se sintam bem instalados. Diria mesmo que ela foi gentil comigo, posando para esta foto.

Aliás, foto Cestari.



2 de dezembro de 2020

24 de novembro de 2020

Natal tóxico

Ah, com certeza. Já está começando a época da intoxicação geral do Natal, seguida daquela tão avassaladora quanto, a do "Ano Novo". Interessante foi ver, no Shopping, um Papai Noel eletrônico em meio a toda aquela decoração. Chocante. Grande, barbudo, move-se devagar em meio a todo aquele pano vermelho margeado de brancos. Gremistas não vão reclamar? Não duvido. Polemizar, opinar, participar. Todos têm muito a dizer. Afinal, como in
sistem alguns, 
é tempo de paz e de boa vontade, não é mesmo? Daí eu me lembro daquela célebre expressão que diz: Çei...

23 de novembro de 2020

Quem sabe amarelo


 Porque hoje é segunda-feira outra vez.

22 de novembro de 2020

Então, Cecília

 De longe te hei-de amar

De longe te hei-de amar
– da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência. 

Cecília Meireles, em “Canções”. Editora Livros de Portugal, 1956. Fonte: Revista Prosa Verso e Arte

Desespero


"Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que 
alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o gole de um pensamento – estralo de ouro: pedrinha de ouro. E conheci o que é socorro."

GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 210
.

O Homem Virtual

"O homem virtual, imóvel diante de seu computador, faz amor pela tela e dá seus cursos por teleconferência. Torna-se um paralítico físico, mas, sem dúvida, também cerebral. Só assim consegue ser operacional. Da mesma maneira que se pode prever que os óculos ou as lentes de contato um dia se tornarão próteses integradas de uma espécie na qual o olhar terá desaparecido, também se pode temer que a inteligência artificial e seus suportes técnicos se tornem a prótese de uma espécie na qual o pensamento terá desaparecido."

BAUDRILLARD, Jean. La transparencia del mal. Ensayo sobre los fenómenos extremos. Tradução de Joaquín Jordá. Barcelona: Anagrama, 1991, p. 173-4. 


21 de novembro de 2020

Reclames de Antigamente

Fantasio, Paris, 15 de maio de 1918
 

Morte

"A morte também não se pega, e apesar disso todos morremos,"

Saramago, Ensaio sobre a cegueira.

Então


Sempre

17 de novembro de 2020

Sei lá

Nem eu me entendo. "Sei lá" são as palavras com que nomeei uma pasta que está no desktop deste computador. Tem várias fotos e coisas que não faço a menor ideia de por que guardei. De qualquer sorte, valeu. Nem me lembrava mais desta foto, ou melhor, deste ângulo do MASP, que me deu tanta saudade da Paulista, embora eu sempre vá preferir o Centrão, naturalmente. Só rindo mesmo, porque realmente o nome corresponde ao conteúdo. Pior é que "sei lá" é também uma categoria dentre os marcadores aqui dos ácaros. "Sei lá" por que guardei, mas guardei. Tantas fotos, rascunhos, coisas sobre as quais pensei em escrever mas não escrevi, histórias que fiquei de contar, e não contei. 

Discretamente

Então, pode simplesmente significar sorte & sucesso! Afinal, quando se trata de arte, do público teatral, principalmente, desejar muita merda a alguém não é nenhum desaforo. Muita gente já sabe, aliás, que ao tempo das carruagens, media-se o sucesso de uma peça teatral pela quantidade de cocô deixado pelos cavalos em frente ao teatro na hora do espetáculo. Quanto mais merda, mais público, quanto mais público, mais sucesso. 

15 de novembro de 2020

Então...


“J’ai besoin de reconstituer l’histoire de notre amour pour en saisir tout le sens. C’est elle qui nous a permis de devenir qui nous sommes, l’un par l’autre et l’un pour l’autre. Je t’écris pour comprendre ce que j’ai vécu, ce que nous avons vécu ensemble.”

GORZ, André. Lettre a D. Paris: Galilée, 2006.

________

A propósito da história de amor que marcou a vida (e a morte) de André Gorz e sua Dorine.


Despejo


Parece que os moradores dessa grande colmeia foram despejados. Pudera! Construir justamente em uma das janelas da fachada do Foro da Comarca de Montenegro! Pois é. Despejados. Liminarmente.

14 de novembro de 2020

Provisória & Improvisada


Provisoriamente encontro-me convicta de que alcançar esta década, quando se acumulam pelo menos seis, implica em perceber que o tempo cobra hoje muito mais caro pelo seu uso. As criações todas têm pressa de vir à tona. É preciso expressar-se não como quem está criando algo, mas como quem liberta o que acumulou por tantos anos ao pressentir que o que vive não é mais jogo: é prorrogação. E prorrogação não se joga: se improvisa.
https://provisoriaimprovisada.blogspot.com/

12 de novembro de 2020

Grande Sertão: Veredas

 

“Hoje, eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da gente volteia, mas em certos modos, rodando em si mas por regras. O prazer muito vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio vira esses desesperos? – desespero é bom que vire a maior tristeza, constante então para o um amor – quanta saudade... ; aí, outra esperança já vem... Mas, a brasinha de tudo, é só o mesmo carvão só. Invenção minha, que tiro por tino. Ah, o que eu prezava de ter era essa instrução do senhor, que dá rumo para se estudar dessas matérias...”

GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 323.

Mais um dia

 Um a um, como as contas do rosário

10 de novembro de 2020

Por Não Estarem Distraídos – Clarice Lispector

 "Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."

Clarice Lispector. A Descoberta do mundo: crônicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 508). Recuperado de: A Magia da Poesia

Quando vier a primavera


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro “Quando vier a Primavera” de “Poemas Inconjuntos”. in: Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). – 87. Recuperado de: Revista Prosa e Verso.

Pensando bem...

 Coerência na escrita... os sentidos de uma abordagem... Pensando sobre isso, acredito que falta bem pouco para eu me convencer de que a realidade depende apenas de mim. Hoje ao menos, agora, nesse instante, ela é o resultado de uma bricolagem de informações que me chegam pelos sentidos. É o gosto deste café cujo cheiro invade a casa,e a música que ouço agora, são as palavras que me ocorrem não sei de que canto do meu pensar e que me saem pelas pontas dos dedos, enquanto a caneta tinteiro me observa de soslaio, meio abandonada... Coerência na escrita. Que sentido conceder  a um real que é intuição só minha? Ainda mais agora, quando me dou conta da tua falta, para organizar as coisas, me dizer para onde olhar, o que fazer de tudo isso, deste hoje, desta manhã, deste instante de mim

8 de novembro de 2020

Memorial das Saudades


 Não creio que algum dia tenhas sentido falta de companhia. Quem convive com livros e com música até prefere a solidão. Além disso, nossa interioridade sempre foi habitada. Contudo, o menino tinha de estar mesmo contigo, para nunca te esqueceres da importância daquilo que, como as bolhas de sabão, não dura mais que breves instantes. O suficiente, no entanto, para superar a perenidade do mundo, mas nunca a gratuidade da morte.

6 de novembro de 2020

Mais Cecília

 Cântico II


Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabes que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És tu

Cecília Meireles

5 de novembro de 2020

Poesia

 Máquina breve

O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.

Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.

Cecília Meireles (1901-1964)


2 de novembro de 2020

Pinacoteca


Janelas abertas como quadros que emolduram quadros. A luz refletida nos brancos, e o estilo inconfundível do prédio onde mora a Saudade de Almeida Júnior, que visitávamos cerimoniosamente.

1 de novembro de 2020

Café

Café. Talvez não tão civilizado quanto o chá, mas definitivamente mais acolhedor. Só não pode ser ruim. Porque, se for, estraga tudo. Um café de baixa qualidade é decepcionante. Frustra o paladar e nos lança ao desamparo, ao menos momentaneamente. Café tem de ser bom. Tem de ser feito na hora. E passado na medida certa. Não vale requentar! Também não vale guardar o café nas tais térmicas. Os ocupados que me perdoem, mas café feito na hora é fundamental. E se não for o melhor, tem de ser, no mínimo, o melhor possível. Precisa ser perfumado, para comunicar ao redor que alguma coisa boa está acontecendo na cozinha, que a vida vai parar logo mais, que as coisas ficarão melhores, que o resto do mundo pode esperar, calmamente, lá fora, porque é hora de se tomar um bom café.

31 de outubro de 2020

Paranapiacaba


 Foi em Paranapiacaba, em meio ao nevoeiro mágico que criava, para a gente, todos aqueles efeitos especiais.

26 de outubro de 2020

E eu me lembro bem

Lembro bem, sim. Lembro até deste dia inclusive. Do medo de cair da pedra. Minha mãe me segurando por baixo do vestidinho, para não desmanchar a roda.

Lembro da pedra, a pedra grande que eu amava, imaginando que dentro dela havia ametistas roxas, pontudas, contundentes. Mas, dizia meu pai, que não era para a gente quebrar a pedra. Que ela ficaria ali no sítio até virar poeira, quando o vento a gastasse. E eu perguntava então para ele quando seria isso? Quando o vento gastaria a pedra até ela virar poeira. E ele disse que isso seria daí a muito, muito, muito, muito, muito tempo... 

Lembro também do penteado que minha mãe usava, cuja inspiração era Jackie Kennedy. Lembro dessa blusa decote "v", como ela dizia, ensinando-me o que era moda, garantindo que branco e azul marinho era uma combinação de bom gosto. Lembro da blusa, do cheiro do laquê que ela usava para o cabelo ficar no lugar e até do seu perfume. Tinha a saia lápis também. Mas... lápis? Levei mais tempo para entender por que a saia era chamada de lápis, algo que servia para a gente desenhar.

Olho a foto, o passado vira presente: o sol forte. Muito forte. Chato manter-se de frente para a luz, sem se mexer nem piscar, tentando não franzir os olhos, enquanto meu pai tirava a fotografia. Depois o filme ia para revelação. Ah! Mas antes disso, muito cuidado  na hora de tirar o rolo de filme de dentro da máquina! A luz queimava! Depois esperávamos ansiosamente o dia de buscar as fotografias que vinham acompanhadas dos respectivos negativos. Mistério. Magia. Um luxo que a virtualidade, de certo modo, banalizou. 

É que o cotidiano de décadas atrás hoje me parece bem mais complexo. Porque as coisas todas, a vida mesma era mais caprichada, entremeada de formalismos, tipo assim... a saia rodada, que tinha de ser passada a ferro com goma, o cabelo que não podia ficar solto nem esvoaçando, e mesmo cada fotografia, que pedia para ser ensaiada, porque os filmes tinham em média entre 12 a 24 poses. A máquina fotográfica também era algo muito especial, sempre guardada com cuidado, entendo-se por isso como algo com que eu não podia brincar. Só depois de grande, diziam. 

Não que eu tenha, afinal, me tornado muito maior do que era, mas felizmente fiquei grande o bastante para brincar, e muito, de tirar retrato, fotografar o mundo que me cerca, inclusive, e principalmente, as banalidades. Esses quase nada que são o colorido das coisas, a essência dos instantes que ficam assim eternizados, ancorando nossas memórias e avivando nossas vivências.

24 de outubro de 2020

A Rosa


 A ROSA

A rosa,
a imperecível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do jardim escuro na noite alta,
a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que ressurge da tênue
cinza pela arte da alquimia,
a rosa dos persas e de Ariosto,
a que sempre está só,
a que sempre é a rosa das rosas,
a jovem flor platônica,
a ardente e cega rosa que não canto, 
a rosa inalcançável.
_______

A propósito da rosa de Ariosto, provável relação com Orlando Furioso, canto I, 42-43: La verginella é simile alla rosa, ch'in bel giardin su la nativa spina mentre sola e sicura si riposa... Uma rosa com espinhos que a mantêm só e segura.

Insisto em dizer que me parece provável. 

 Porque Borges é complexo, e nos coloca quase sempre diante de um real que mostra relações intrínsecas e paradoxais: a rosa é uma e é todas, imperecível, porque ressurge alquimicamente das cinzas, e inacessível, porque o autor não a canta, ainda que seja dele o poema que a descreve. 

Memorial das Saudades


 A minha menina azul. Encontrei-a agora perdida em uma pasta de imagens de 2012. Embora eu jamais soubesse de verdade o que achavas dela, gostei quando escolheste levá-la embora, direto da 407 para São Paulo, acomodada numa moldura e envolvida em papelão.

Nunca te disse que, para mim, era confortador que ela se mantivesse contigo para sempre. Sim, para sempre e, a propósito, tipo aquela música que me deste: Until the last moment. E ela ficou.

E depois, na minha imaginação delirante, acreditava que era impossível fugir dela, de sua presença meio impertinente. Um feminino meio Amélie Poulain. Olhar que guarda um misto de receio e de curiosidade. Recatada, observadora, fria como os azuis, mas vaidosa de um pequeno e mal enjambrado lenço vermelho, que destoa das vestes vitorianas. Devia ser pequena. Mesmo o volume das mangas sugere braços finos e delicados. Pouco importa como ou quem ela era: importante era saber que ficava junto de ti, em algum lugar no qual, mesmo invisível, eu estaria sempre presente.

E pouco importa também que fim ela levou. Afinal, agora, sem o teu olhar, ela volta a ser apenas tinta colorida e óleo que secou sobre um pano esticado. Se fosse humana, seria como carne que retém sangue por cima de um esqueleto: bem como a gente, quando fica assim,  desabitada de si e sem sentido nenhum, olhando apenas para o tempo que, sem memória, desacontece com todas as coisas vividas e sentidas.

10 de outubro de 2020

Tempos

 Tempo passa, tempo para, tempo corre, temporal.

27 de setembro de 2020

Domingo

Preguiçoso domingo de chuva sem sol que me distraia ou chame.

22 de setembro de 2020

Primavera


Primavera, dizem. 
Mas o inverno de 2020 será um pouco para sempre ou nunca mais. Porque, na coluna das perdas que se contabilizaram, nem todas as primaveras do mundo vão compensar tua despedida. 

Livro

O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive, e, não tendo ação em si mesmo, move os ânimos e causa grandes efeitos.  

Padre Antonio Vieira, Sermão de Nossa Senhora da Penha, Lisboa, 1652.

20 de setembro de 2020

Então...


 Andar para frente, sim. Mas sem deixar de olhar para trás.

17 de setembro de 2020

15 de setembro de 2020

Memorial das Saudades

Então, escutando mais uma vez os teus áudios, tomados ao acaso, te ouço cantar, com a voz cansada, lentamente: "Giorni senza domani e il desiderio di te". E penso que a frase me soa hoje como uma sentença condenatória da qual não sei ainda como recorrer.

12 de setembro de 2020

Memorial das Saudades

Tantas foram as paisagens em que nos inserimos, tantas as belezas por nós descobertas, quando não por nós construídas. Nossos sentidos sempre em oitavas maiores nos deram a perceber um mundo tão intenso, sempre belo, às vezes, dramático. Repentinamente trágico também, mas nunca redundante nem óbvio. Vivíamos da inspiração. Daquilo que não é senão um sendo transformador, gerúndio alquímico do solve e coagula que nos ensinou quão simples é fazer ouro do chumbo pesado que permeia o que apenas existe. Talvez justamente por isso fizemos sentido apenas de passagem, de nós nada mais restando senão memórias e saudades.

26 de agosto de 2020

A Borboleta


A borboleta chegou bem hora em que eu enquadrava a foto deste São Francisco que mora naquela pousada maravilhosa que fica em Olinda. Pousou suavemente no quadro sob o meu olhar espantado e o olhar calmo do santo. Viajou em imagem até onde estavas. Revendo as fotos e conversas daquele passeio, morro mais um pouco de tanta saudade.

9 de agosto de 2020

Nostalgia

 Saudade de quando era normal ser normal.

8 de agosto de 2020

Confiança

 Li em algum lugar que confiança é a feliz combinação de esperança e fé. 

15 de julho de 2020

12 de julho de 2020

Então

Tantas são as importâncias decepcionantes que me cercam, que já faz algum tempo que me ocupo ora do silêncio, ora das irrelevâncias.
Importâncias decepcionantes? 
Sim. Por isso entendendo aqueles conteúdos com que somos bombardeados a toda hora. As novidades. As notícias. As últimas descobertas. Como explicar que não me interessa a opinião de A ou de B, menos ainda a de C? 
Daí meu silêncio. E minhas irrelevâncias. Silêncio porque faz tempo que não falo. E porque, caso falasse, não seria sequer minimante compreendida. Irrelevâncias porque as tenho como estratégias. É que, definitivamente, prefiro contemplar o chão da rua, com seu lixo e com seus restos de chuva a perder meu tempo com essas importâncias decepcionantes.

5 de julho de 2020

Louco de Pedra

Um clássico. Depois do louco de atar, e do inesquecível maluco beleza, o louco de pedra, que efetivamente atira pedras, era para mim uma figura literária, carinhosamente lembrada e referida, de maneira impagável, por Ariano Suassuna.
Só que ontem, inacreditavelmente, um louco de pedra saiu da literatura para a mais literal das literalidades.
Justamente. Porque a criatura me olhou, juntou uma pedra do chão e atirou com toda força na minha direção.
Por sorte, ou pela péssima pontaria do sujeito que estava a menos de cinco metros de mim, só pegou de leve no casaco de inverno...
Depois o doido sossegou.
Seguiu seu rumo, falando sozinho, com raiva do mundo.
Pois é.
Louco de Pedra.
Eu, hein?

24 de junho de 2020

História do Medo

Defender-se do invisível... Não é esta uma atitude comum à humanidade? Defender-se daquilo que não se vê senão através dos olhos da imaginação. Estranhamente, os invisíveis que antes não passavam de entes imaginários ganham foros de realidade: coisificam-se. Saem do mundo imaginário para se apresentarem, como ameaças reais.
É preciso então que nos purifiquemos, tendo sempre presente que não basta a higiene da alma. É preciso depurar-se no corpo, isolar-se, enluvar-se, porque o invisível nos ameaça.
E por aí se vai escrevendo mais um capítulo da história de nossos medos.

11 de junho de 2020

Balzac, absolutamente


"As mulheres possuem um instinto que lhes permite adivinharem os homens que as amam pelo simples fato de usarem saias, que se sentem felizes junto delas e que nunca pensam em lhes pedir tolamente os juros de suas amabilidades. Têm, a esse repeito, o faro de um cão que, num grupo, vai diretamente ao homem para quem os animais são sagrados."
BALZAC, Honoré. A Solteirona. Trad. de Lia Correa Dutra, A Comédia Humana, v. VI. Porto Alegre: Editora Globo, 1951. [p. 448]

20 de maio de 2020

Estranhamente calma...

...ainda que o advérbio seja por demais impreciso.