9 de fevereiro de 2009

AS CARTAS XVI



Carta de Francisco para Maria de 25 de setembro de 1924.

Maria,
A tua carta, fosse ela “medicinal”, e eu estaria curado do meu mal orgânico, como por ela estou de um mal sentimental... Interrogas... Direi: “Não é nada...” Dirás: “São os nervos...” Que sejam... O que importa é que eu o esqueça. E isto é fácil, na fuga vertiginosa do tempo, que sepulta depressa as nossas emoções as mais vivas. Tudo passa na vida... E isso é um bem, que, não raro, esconde uma tristeza: a tristeza do fim... Falas na minha enfermidade. Culpas-te, injustamente, da minha recaída. Nada mais falso. Se há culpado, o único sou eu. E nem sei se eu ou a moléstia mesma, por sua rebeldia. Entretanto, estou resignado. Demais, quase já tenho como natural esta posição, na cama, nada natural. É um estado anormal que se normaliza. Mas que Deus não permita que ela se efetive! E que ele não ouça também tanta doidice. Tenho que, no tempo de quinze dias, estarei restabelecido, usando, como usarei, com um rigor religioso, os teus conselhos. “Tudo pela minha dama!” A vida, ou a morte! E, em amor, querida, o morrer é viver eternamente por ele.
E me advertes, com filosofia, que “a saúde é a maior riqueza”. Por isso mesmo que a desprezo e maltrato. Eu sou liberal... Ah!... Perdoa-me, meu amor. Perdoa-me a ironia. Ela me atraiçoou, e fugiu pela pena. Não foi por querer.
Quando cheguei ao fim da tua carta, não fiz “cara feia”, mas sorri. E do meu sorriso caiu um beijo que envolveu o teu nome, e vai vestida de amor a mão que o escreveu, a mão que tem o meu sonho,
o sonho do teu
Francisco

8 de fevereiro de 2009

Os Animais

A ingratidão do homem para com os animais é ainda mais cruel do que para com as árvores. Mesmo o termo ingratidão não é de todo exato. Eu deveria dizer imprevidência, crueldade e sempre estupidez.
Para dizer a verdade, a palavra que melhor convém aqui é uma palavra alemã que responde, sem dúvida, − pois que reina na língua alemã, − ao espírito alemão. A Schadenfreude, quer dizer, a alegria de fazer o mal. Felizmente este substantivo não tem equivalente na nossa língua francesa.
Ainda que Schadenfreude seja uma palavra alemã, eu não cuidaria de acreditá-la reservada a tal ou qual povo. Entre todos os homens, mesmo aqueles que não são alemães, em graus diversos encontra-se o amor pelo mal, o prazer da destruição, o ardor brutal contra seres inocentes e inofensivos.
Na Espanha, a grande paixão, que é devoradora, que absorve tudo, que faz calar todas as querelas, políticas, sociais, religiosas, familiares, são as touradas. Um touro adquirido a alto preço para este dia de festa é levado à arena. Então, cercado de inimigos covardes, cujas armas são irresistíveis, ele vai propiciar o longo espetáculo de seu sofrimento e de sua morte, morte dramática que rejubila e inflama todo um povo. Primeiro ele se recusa, magnânimo, ao combate, mas o homem não lhe permite ser magnânimo. Ele é provocado por espetadas que fazem correr seu sangue e o estimulam a uma cólera justa. Contra ele, são conduzidos cavalos que ele fere a chifradas. A luta desigual prossegue até que, sangrento, esgotado, ele cai, lançando um olhar de angústia contra seus carrascos.
Enfim, o sacrificador chega, bem protegido por um cortejo imponente de banderilleros e, quando o pobre animal não tem mais que um resto de vida, o toureiro a liquida. Então o delírio da multidão não se contém mais. Ela urra, sapateia... Esta agonia de um nobre animal é o mais glorioso prazer que ela inventou.
Em outros países, lança-se contra um cervo, − esse corredor gracioso, que foi outrora o ornamento de nossas florestas, − uma tropa de cães ávidos. Senhoras bem arrumadas, senhores vestidos de vermelho, conduzem a caça. Que alegria quando, esgotado pela corrida desenfreada, tremendo de angústia, de fadiga, de terror, o infeliz ser é apanhado por uma matilha feroz que o devora ainda vivo!... E é uma honra insigne poder dar-lhe então, sem perigo, o golpe mortal!
Adiante ainda, são os pombos, esses seres de instintos misteriosos e profundos, tão alegres, tão ternos… Se lhes fazem cair sob os golpes dos caçadores, − caçadores ou assassinos, − e os pobres pássaros vão às dúzias, − a cem metros do campo de tiro, desplumados, aviltados, sangrando, − expiar, por uma agonia cruel, a glória de haverem sido feitos de alvo pelo homem.
É verdade que o homem poderia adotar outros alvos, igualmente aptos a provar sua destreza: bolas de vidro projetadas por um aparelho automático! Mas essas bolas de vidro não têm vida! Um pombo vive! Um ser a matar! É bem mais divertido!
Em todas as aldeias, indígenas, mulheres, velhos e crianças, obstinam-se contra pequenos pássaros.
Para capturá-los, não há esforços que eles não empreguem.
Armadilhas, alçapões, ciladas, iscas, fogo. Ora, esses pequenos pássaros são uma minúscula porção de carne. Seriam necessárias três dezenas desses animaizinhos para satisfazer a gula de um comedor medíocre. Do ponto de vista alimentar, é menos que nada. E por esta parcela de alimento todos os aldeões de todos os países sacrificam milhares de seres, os mais encantadores da natureza, toutinegras, papa-figos, tentilhões, pastorinhas, hortulanas, verdelhões, reizinhos, rouxinóis, cujos cantos alados nos poderiam extasiar, se não fôssemos selvagens. Que inexplicável estupidez torcer o pescoço de um desses pequenos seres, pouco ferozes, que nos seguem com um olhar espiritual e amigo, quando passeamos pela floresta; que saltam de galho em galho, brincando diante de nós; que destroem o verme e os animais nocivos, que lançam suas cores e suas canções em nossas vidas fastigiosas.
As crianças atiram pedras nos ninhos e sobem nas árvores para destruí-los. O mais pobre camponês tem um fuzil para matá-los; cada habitante do vilarejo os põem na gaiola. Em certos países, leva-se a crueldade a ponto de perfurar os olhos de uma avezinha cativa, para que ela cante com toda força e atraia, com seu canto, suas irmãs em direção à pérfida armadilha. Que alegria ter, numa bela manhã de outono, presas num saco, dezenas dessas adoráveis pequenas vítimas! Não para que se produza uma insuficiente refeição, mas para que se dê pleno curso ao amor à destruição. A Schadenfreude continua.
Tentou-se erradicar essas matanças inúteis.
Para quê? Que pode valer um decreto municipal contra a Schadenfreude?
Havia, outrora, na América do Norte, magníficos rebanhos de bisões. A caça fez-se aí apaixonante, porque ela dava a aparência do perigo, o que é delicioso. E então, contra esses infelizes bisões, o homem, provido de armas muito poderosas, organizou batidas tão mortais que os bisões desapareceram.
Do mesmo modo, aniquilaram-se, nos mares gelados dos Pólos, as baleias. Assim, nas margens do Pacífico, inocentes legiões de focas em cuja carnificina o governo acreditou, − tarde demais, porém, − ser necessário intervir. O mal estava feito. As focas vão desaparecer.
E eis como, graças ao furor destrutivo do homem, perecem belas espécies animais!
Uma espécie animal que se extingue! Que sacrilégio!
Nenhuma força, nem humana nem divina, poderá mais fazê-la reaparecer. Terminou, terminou para sempre!
Da mesma forma podemos nós prever que logo o homem terá conseguido aniquilar a maior parte das admiráveis formas vivas que enfeitam a terra. Cupidez e estupidez juntas! Porque, assim como o avaro mata a galinha dos ovos de ouro, o homem será, por sua imprevidência, arruinado sem esperança.
O futuro que o homem prepara para si é tão pouco recreativo, tão pouco elegante. Em face de animais vivos, − à parte os insetos malfazejos que continuarão a pulular, − nós não conheceremos mais que as espécies domésticas: gatos, cachorros, cavalos, asnos, vacas, ovelhas, cabras, porcos, galinhas, cisnes, galinhas-do-mato, patos, gansas, perus. A visão e o olfato poderão satisfazer-se amplamente nessas pocilgas, nessas estrebarias, nesses currais, nesses imensos estábulos. Talvez, para o prazer da caça, deixar-se-ão sobreviver algumas perdizes, alguns coelhos, alguns cabritos, algumas lebres. Mas isso será ainda criação doméstica, porque os faisões e as perdizes se tornarão animais de galinheiro.
Então, os tratados de zoologia serão apenas tratados de paleontologia. Se, como é possível, os bombardeios não destruírem todas os nossos museus de História Natural e todos os nossos zoológicos, conheceremos ainda, mas apenas por espécimes arruinados por vermes, ou pelos esqueletos, os macacos, os elefantes, as girafas, os ursos, ao antílopes, as zebras, as focas, as avestruzes, os cangurus, os castores, os papagaios... Nós os teremos, e vamos persegui-los, ainda que só reste deles um único com vida.
A toda parte o homem traz a morte. Ele chega ao pólo, às regiões menos hospitaleiras do globo, e ele encontra colônias de pinguins, estranhos animais que resistem a esses climas terríveis. Mas, se o homem continuar a querer visitar os pólos, as colônias de pinguins não existirão mais amanhã, a não ser em fotografias para os cinemas.
Em qualquer ponto do planeta onde ele coloque os pés, o homem se põe a destruir, com obstinado afinco, tudo aquilo que está vivo. Ele mata sem motivo e sem escusa. Todo o atavismo do bruto que está nele se revela. E ele mata. Ele mata sempre. Que o animal seja belo, elegante, doce, pouco lhe importa! Está vivo! Matemos primeiro. E ele mata!
Joseph de Maistre achou admirável esse instinto do homem.
E como a espécie humana é mais forte e mais numerosa, a resistência das espécies animais é impossível. Elas fogem diante do homem, mas o homem as persegue em seus mais seguros refúgios. Pelo ferro e pelo fogo, assim como pela astúcia e pelo veneno, ele destrói tudo. Cada indivíduo humano parece se entregar a um dever, um dever inepto e cruel, de aniquilar alguns animais a mais. Não é ele o Rei na criação? E a característica da realeza não é a de dar prova de força, impor sua dominação e sua paz, pax humana?
Ubi solitudinem facit, pacem appellat. Fazem um deserto, e chamam de paz.
Seguramente eu não levo o respeito às formas animais até lamentar o fim dos animais nocivos. O lobo desapareceu da Europa, e é bom. Na África, como a águia, como o abutre, o leão se faz cada vez mais raro. O crocodilo, o caimão, o hipopótamo, o rinoceronte, recuam diante de nossas carabinas, e logo serão representados apenas por alguns espécimes que os jardins zoológicos disputarão a preço de ouro. Seja! Eu não me entristecerei com a partida desses seres malfazejos. Mas não me impedirão de lamentar o urso, este animal sagaz, astuto, curioso, inteligente, raramente carnívoro. Eu lamentarei mesmo os macacos, especialmente os macacos antropóides, o doce e melancólico orangotango, o chimpanzé, ágil e espirituoso (tão próximo da espécie humana), até mesmo o gorila feroz, tornado tão raro hoje em dia que não resta dele mais que uma dezena de exemplares. Eu lamentarei, sobretudo, o elefante, cuja maravilhosa inteligência ultrapassa − e ainda não se está bem seguro disso − àquela do homem estúpido.
Se realmente o homem quisesse justificar sua realeza, ele deveria atacar somente os seres que lhe causam dano. Ele exerceria sua ciência de caçador e de esfolador contra os tigres que devastam a Índia, contra as serpentes venenosas que ele não fez desaparecer ainda, mesmo numa pequena ilha como a Martinica. Ele se empenharia, sobretudo, contra os insetos pérfidos, tais como moscas e mosquitos propagadores de doenças, contra os parasitas microbianos que infectam a vida de animais e vegetais. Mas fale de micróbios a um caçador. Ele rirá diante do seu nariz. Existe glória e proveito em matar uma baleia, um elefante, uma avestruz, até mesmo uma perdiz ou uma cotovia. É bem melhor que impedir a multiplicação de mil milhões de micróbios infecciosos.
Aliás, eu já disse e repito ainda, eu não sou de modo algum um apóstolo. Eu não me atenho a fazer prosélitos. Minha cegueira não chega até acreditar que a indignação sirva para alguma coisa. Ao contrário, estou solidamente convencido de que não se desviará o curso da fúria humana desencadeada.
Feroz e estúpida, irresistivelmente estúpida e feroz, dominada pela sede de destruição, a espécie humana realizará o vazio em torno dela. Certamente ela acabará por reinar, mas será sem prestígio, sobre um globo nu, do qual os campos de beterrabas, canteiros de couves, pocilgas e galinheiros serão os únicos enfeites.

Da obra O Homem Estúpido
Charles Richet
Tradução : Maristela Bleggi Tomasini

5 de fevereiro de 2009

La Bruyère (1645-1696)


É a profunda ignorância que inspira o tom dogmático: aquele que não sabe nada acredita ensinar aos outros aquilo que acaba de aprender ele mesmo; aquele que sabe muito pensa apenas que aquilo que ele diz pode ser ignorado, e fala mais indiferentemente.
É preciso rir antes de ser feliz, de medo de morrer sem haver rido.
Os homens começam pelo amor, terminam pela ambição, e muitas vezes não estão em numa posição mais tranqüila senão quando eles morrem.
Um sábio nem se deixa governar nem procura governas os outros: ele quer que a razão governe sozinha e sempre...
Um caráter bem insípido é aquele de não ter nenhum.
O deboche é, frequentemente, indigência de espírito.
Rir das pessoas de espírito é o privilégio dos tolos; eles são no mundo aquilo que os bobos são na Corte, eu quero dizer, sem conseqüência.
Parece-me que se dizem as coisas ainda mais finamente do que se pode escrevê-las.

2 de fevereiro de 2009

Ribot e os Estados Mórbidos da Atenção

Para retraçar essa marcha do espírito em direção à unidade absoluta da consciência, da qual a própria atenção mais concentrada é apenas um pálido esboço, nós não temos necessidade de recorrer a hipóteses prováveis, nem de proceder teoricamente e a priori. Eu encontro, no Castillo interior de Santa Teresa, a descrição etapa por etapa desta concentração progressiva da consciência que, partindo do estado ordinário de difusão, reveste a forma da atenção, ultrapassa-se e, pouco a pouco, em alguns casos raros, alcança a perfeita unidade da intuição. Na verdade, este documento é único, mas uma boa observação vale mais que cem medíocres. Ela pode, aliás, inspirar-nos plena confiança. É uma confissão feita por ordem do poder espiritual, é obra de um espírito muito delicado, muito hábil em observar, sabendo manejar sua língua para exprimir as mais finas nuanças.
Eu peço ao leitor que não se deixe derrotar pela fraseologia mística desta observação, de não esquecer que é uma espanhola do século XVI que se analisa em sua língua e com ideias de seu tempo; mas pode-se traduzi-la na linguagem da psicologia contemporânea. Eu vou tentar esta tradução, aplicando-me em mostrar esta concentração sempre crescente, esse estreitamento incessante do campo da consciência, descrito de acordo com uma experiência pessoal.
, diz ela, um castelo construído de um só diamante de uma beleza e de uma pureza incomparáveis; entrar aí, habitá-lo, é o objetivo do místico. Este castelo é interior, é em nossa alma; não temos de sair de nós para nele penetrar; mas o caminho é longo e difícil. Para atingi-lo há sete moradas a percorrer; ultrapassa-se os sete degraus da oração. No estado preparatório, está-se mergulhado na multiplicidade das impressões e das imagens, na vida do mundo. Traduzimos: a consciência segue seu curso ordinário, normal.
A primeira morada se atinge pela oração vocal. Eu interpreto: a prece em voz alta, a palavra articulada produz um primeiro grau de concentração, conduz a uma via única a consciência dispersa.
A segunda morada é aquela da oração mental, ou seja, a interioridade do pensamento aumenta; a linguagem interior substitui-se à linguagem exterior. O trabalho de concentração torna-se mais fácil; a consciência não tem mais necessidade do apoio material das palavras articuladas ou ouvidas para não se desviar; são-lhe suficientes imagens vagas de sinais se desenrolando em série.
A oração de recolhimento marca o terceiro degrau. Aqui, eu confesso, a interpretação me embaraça. Posso ver aí apenas uma forma superior do segundo momento, separada dele por uma nuança sutil e apreciável apenas pela consciência do místico.
Até aqui, houve atividade, movimento, esforço; todas as nossas faculdades estão ainda em jogo: agora é preciso não pensar mais, mas amar muito. Em outros termos, a consciência vai passar da forma discursiva à forma intuitiva, da pluralidade à unidade; ela tende a ser, não mais uma irradiação em torno de um ponto fixo, mas um único estado de uma intensidade enorme. E esta passagem não é o efeito de uma vontade caprichosa, arbitrária, nem do único movimento do pensamento entregue a si mesmo; é preciso entregar-se a um poderoso amor, o golpe de graça, ou seja, a conspiração inconsciente do ser por inteiro.
A oração da quietude introduz a quinta morada, e então a alma não produz mais, ela recebe; é um estado de alta contemplação que os míticos religiosos não são os únicos a conhecer. É a verdade aparecendo bruscamente em bloco, impondo-se como tal, sem os processos lentos e longos de uma demonstração lógica.
A quinta morada, ou oração da união é o começo do êxtase; mas ela é instável. É a entrevista com o divino noivo, mas sem possessão durável. As flores apenas entreabrem seus cálices, difundem apenas os primeiros perfumes. A fixação da consciência não está completa, ela tem oscilações e fugas; ela não pode ainda manter-se neste estado extraordinário e contra a natureza.
Enfim, ala atinge o êxtase na sexta morada pela oração de arrebatamento. O corpo de torna frio, a palavra e a respiração são suspensas, os olhos se fecham, o mais leve movimento causaria os maiores esforços. Os sentidos e as faculdades permanecem fora... Ainda que de ordinário não se perca o sentimento [a consciência] aconteceu-me de ficar inteiramente privada disso. Isso tem sido raro e dura muito pouco tempo. Muito frequentemente o sentimento se conserva, mas experimenta-se eu não sei que perturbação e, ainda que não se possa atuar no exterior, não se deixa de escutá-lo. É como um som confuso que viria de longe. Entretanto, mesmo essa maneira de ouvir cessa quando o arrebatamento está em seu mais alto grau.Que é, pois, a sétima e última morada que se atinge pelo vôo do espírito? Que há além do êxtase? A unificação com Deus. Ela se faz de uma maneira súbita e violenta... com uma tal força que se tentaria em vão resistir a esse impulso impetuoso. Quando Deus desce à substância da alma que se torna uma com ele. Não é, na minha opinião, uma distinção inútil esta dos dois graus do êxtase. Em seu mais alto grau a própria abolição da consciência é atingida por seu excesso de unidade. Esta interpretação parece legítima, se a relacionarmos às duas passagens mais acima: aconteceu-me de ser inteiramente privada do sentimento. E essa maneira de ouvir cessa quando o arrebatamento está em seu mais alto grau. Poder-se ia tomar outros empréstimos à mesma autora. É notável que, num desses grandes arrebatamentos, a Divindade lhe apareça sem formas, como uma abstração perfeitamente vazia. Eis ao menos como ela se exprime: Eu direi, pois, que a Divindade é como um diamante de transparência soberanamente límpida e muito maior que o mundo. É-me impossível não ver aí senão que uma comparação literária e uma metáfora. É a expressão da perfeita unidade na intuição.

Ribot, Th. Psychologie de l'Attention. Alcan, Paris, 1913. pg. 142-148.

Théodule Ribot (1839-1916)

Este psicólogo francês é considerado o fundador da psicologia científica francesa. Ribot também era formado em Filosofia, e foi o responsável pela introdução da psicologia experimental na França. Trabalhou em psicologia clínica em conjunto com psiquiatras, com o intuito de relacionar as doenças mentais a bases orgânicas. É dele um conhecido enunciado sobre a memória: as recordações mais recentes, mais complexas e sem significado afetivo desaparecem mais depressa do que as recordações antigas, simples e carregadas de emoções.
Difícil a gente encontrar livros dele por aí. Mas eu encontrei sua Psychologie de L'Attention, Alcan, Paris, 1913. Pois bem, dando uma olhada na obra de menos de 200 páginas, me deparei com um trecho interessantíssimo, porque Ribot − indiscutivelmente um homem de ciência, − debruça-se sobre uma passagem de ninguém menos que Teresa de Ávila, a santa espanhola mística, uma mulher culta que deixou uma obra notável onde narra sua experiência.
Fiquei tão encantada com o que li que não resisti ao impulso de traduzir e compartilhar essa impressionante e delicada análise. Começa na página 142, na parte onde ele analisa o que chama de estados mórbidos da atenção. Traduzi. Está aí em cima, pra quem quiser ler.

25 de janeiro de 2009

Meu Canto

Humor de 1927

Outro achado de alguns anos atrás. Um humor refinado e muito, mas muito especial.

Um Achado

Breve em cartaz. Uma grata surpresa percorrer as páginas desse pequeno grande livro.

AS CARTAS XV

Carta de Francisco para Maria de 31 de agosto de 1924.

Maria,
As violetas... As lindas e melancólicas violetas... Muito devo-te por elas. As flores fazem tanto bem a um doente! Eu sou feliz... Dessa felicidade que nunca teve Leopardi, o grande e mísero doente que não encontrou, na vida, o amor de uma mulher. Elas estão sobre a minha mesa de cabeceira ao lado de minha cama. Olho-as quase sempre. E delas, assim unidas em ramalhete, parece que sempre começa um crepúsculo longo, longo, como meu sonho...
Pelas violetas, mando-te um beijo.
.....
E o livro, muito t'o agradeço. Como que adivinhaste a minha profunda simpatia intelectual e de alma por este patriota e bom Sílvio martire della prigionia borbonica, che, appena ricuperata la libertà sua, si ricaccia nella lotta per la libertà della patria.Como merece, ele vai para a minha coleção de encadernações de luxo, já se vê, de obras notáveis.
Pelo livro, mando-te um abraço.
.....
E o teu retrato, minha pluma. Não te zangues: sinto não poder tê-lo sobre a minha mesa de estudo e mostrá-lo, orgulhoso, a toda gente... E também aquela imagem, a tua imagem evoca a imagem de um tempo tão doloroso para mim... Lembra-te?
Era carnaval... Eu sofria a tortura de não te ver e a tortura, ainda maior, da minha imaginação, cujos olhos viam-te sempre embriagada ao perfume dos galanteios... E o teu olhar, para os outros... O teu sorrido, para os outros... Os gestos do teu corpo, para os outros... E para mim, apenas a dor... E essa dor eu quase esquecia à sombra do teu amor... Mas foste perversa, talvez sem o querer, e me mandaste o teu retrato, aquele retrato que é, para mim, a memória despiedosa da minha dor daquele tempo...
Pelo retrato, mando-te uma lágrima
Do teu
Francisco

22 de janeiro de 2009

Os Deuses

Malgrado suas pretensões a uma sagaz desconfiança, os homens são formidavelmente crédulos, e crédulos até a loucura furiosa. Eles aceitam sem controle todas as asneiras que se lhes atiram. A história das religiões, e de todas as religiões, prova isso claramente.
Que um personagem vestido de suntuosos ornamentos apresente à multidão um grande boi pacífico, olhando, com todo espanto do qual esse quadrúpede é capaz, a imensa multidão que o cerca, e que o homem engalanado exclame: “Eis vosso Deus!” Logo, toda a tropa humana, presa de um invencível terror, joga-se com a face contra a terra. Que, se por acaso, o boi Apis se ponha a mugir, ou que ele produza, à maneira dos bois vulgares, seus excrementos, eis o terror em seu cúmulo!
Um Deus, quer dizer, a Força invisível, imutável, eterna, suprema, que, além dos espaços e dos tempos, rege as evoluções dos mundos, tão misteriosos que nenhuma inteligência humana é capaz de compreender a mais ínfima parte daquilo que esta palavra significa. Quê! Esse humilde ruminante seria um Deus! Inteiramente Deus, dissimulado sob esta forma grotesca!
Mas a estupidez humana iguala a grandeza de Deus!... E, muito simplesmente, um povo de trinta milhões de homens, durante dez séculos, foi convencido de que o boi Ápis era um Deus.
Observemos que prova alguma é apresentada pelo personagem suntuosamente vestido em apoio ao que acaba de dizer.
Nenhuma demonstração, nenhum raciocínio. Ele diz: “É assim. É preciso crer, sob pena de ser um canalha.” E a multidão ingênua não se tortura em procurar vãs demonstrações.
“Nossos pais acreditaram. Não podemos pensar diferentemente de nossos pais. Não sejamos ímpios. Logo, o boi Ápis é um Deus!”
As inverossimilhanças não contam. Pois que a dúvida é um crime, apenas os maus poderiam se revoltar contra as santas tradições. Para que temos nós necessidade de provas? Elas só fariam acentuar nosso ceticismo. É melhor acreditar sem provas que concordar com frágeis demonstrações. Quanto mais nossa crença é absurda, mais ela testemunha nossa virtude moral.
E então lendas, fábulas, mitos se misturam. A distinção entre o verdadeiro e o falso, entre o verossímil e o absurdo, entre a razão e a loucura, não existem mais. Não há mais inverossimilhanças, absurdos nem loucuras. Tudo é sagrado.
Minerva surgiu inteiramente armada da fronte de Júpiter que Vulcano, o ferreiro, abriu com um golpe de machado. Júpiter transformou-se em chuva de ouro para seduzir Danae; em touro, para raptar Europa. Todas as manhãs, Apolo atrela quatro cavalos a seu carro para arrastar o sol atrás dele. Noé reuniu, numa imensa arca, todos os animais da criação. Eva conversou muito intimamente com uma serpente que a fez comer uma maçã. Balaão manteve uma conversação de alta filosofia com um asno. A mulher de Lot transformou-se numa estátua de sal, como a ninfa Dafne, num loureiro rosa (o que é, aliás, mais poético). Jonas, engolido por uma baleia, aí permaneceu três dias e três noites. Sansão, apenas com um maxilar de asno, demoliu trinta mil filisteus. Contra Vishnu, mil vezes mil anjos se revoltaram, e o perdão não lhes é concedido senão quando, para purificar-se, passam mil vezes pelos corpos de mil animais. Cérbero é o cão de três cabeças que guarda dos infernos. Felizmente pode-se apaziguá-lo atirando-lhe grandes pães de farinha. De acordo com os gregos, Atlas sustenta o mundo sobre os ombros; mas, de acordo com os indianos, a terra repousa sobre o casco de uma tartaruga, a menos que não seja sobre o dorso de um elefante (porque os exegetas da Índia não estão de acordo sobre esse ponto). Daniel conversou com leões famintos que deveriam despedaçá-lo e o fogo não tinha poder sobre ele; mais feliz que Hércules, devorado, − ainda que Deus, − pela túnica de Nessus e pelo fogo da fogueira. Milhares de lótus brotam do umbigo de Vichnou. Brahma saiu de um ovo que o Senhor havia chocado durante três mil milhões de anos. Buda nasceu de uma virgem, antes do Cristo e como o Cristo. Maomé foi carregado para o céu por um tufo de seus cabelos e, sobre a terra, o anjo Gabriel aportava-lhe, lá de cima, folha por folha, as provas manuscritas do Corão (com boa tiragem, sem dúvida). Jeová fez recuar o Mar Vermelho, e Josué deteve o Sol. Cinco pequenos pães aumentaram para cinco mil pequenos pães e a água de Canaã foi transformada em vinho. Lázaro, ainda que morto e enterrado, ressuscitou no terceiro dia. Jesus expulsou os demônios de um punhado de porcos que foram imediatamente afogar-se num rio. E sempre existiu um Anjo do mal, Satan, Ariman, Belzebu ou Plutão que, muito corajosamente lutaram, seja pugilato, seja boxe, seja com armas de cavalaria, contra o próprio Deus. Mas, por felicidade, o Anjo mau tem constantemente, após duros combates, terminado por ser vencido.
E eu falo aqui apenas de coisas acontecidas com as personalidades divinas, porque os servidores da divindade, levitas, santos, faquires, profetas, bonzos têm realizado muitas outras proezas mais singulares que aquelas de seus patrões. Talvez hoje fossem eles ainda capazes de perpetrar novas, caso o ceticismo perverso de nosso tempo não tornasse cada dia mais difícil a divulgação de um milagre.
As crenças infantis engendram práticas de mesma natureza. Os romanos e os gregos consultavam as entranhas das vítimas ou o vôo dos pássaros. A cor, o volume e a forma do fígado forneciam sinais fatídicos que revelavam o amanhã, e o povo acreditava nisso firmemente, ainda que os augúrios não pudessem sem apreciados sem risos. A água do batismo basta para lavar todos os pecados. Uma hóstia consagrada, quer dizer, um pequeno pedaço de massa sobre a qual palavras fatídicas são pronunciadas por um tonsurado, é o Deus do céu e da terra... sim, verdadeiramente, Deus todo inteiro: corpo, espírito e sangue; porque Deus, neste caso, tem sangue. Os mortos, depois da morte, manter-se-ão em paraísos variados. Ora eles beberão copos de hidromel, ora gozarão de copiosas dançarinas orientais; ora formarão cortejo com legiões de anjos diáfanos, Tronos, Dominações, Glórias, munidos de harpas sonoras. Da mesma forma, todos os mortos se erguerão no Vale de Josafá ao som retumbante de um imenso clarim, a menos que eles não migrem, passando, de animal em animal, por uma série de transformações sucessivas, lagartas, crocodilos, gaviões, asnos e macacos. Quanto a Alá, ele reserva toda sua benevolência àqueles que passarem por uma frágil ponte suspensa acima de um abismo.
O conjunto dessas religiões nas quais os homens acreditaram e acreditam ainda é de tal modo lamentável, que qualquer indivíduo dotado de razão só pode sorrir disso. Mas ele deve contentar-se em sorrir, e seria muito louco se tentasse combater esses erros. De que serviria? Todos os crentes, quer dizer, aqueles cegados por uma inacreditável credulidade, têm sua opinião feita, e tão bem feita, que demonstração alguma abalaria sua fé tenaz. Não tentem lhes provar que o número 1 não é o número 3, que lótus não nascem de um umbigo, que um asno não fala hebraico com seu dono e que Cócito não passou sete vezes ao redor da porta dos infernos! Não se dêem a esse trabalho! Não desperdicem seu tempo nem suas palavras! Calem-se!
Mas, ao menos, imolando a razão deles mesmos, que os crentes não nos falem de sua razão. Que eles não inventem teologias tediosas! Que eles não nos fabriquem grossos livros indigestos para apoiar sua fé. O cameleiro de Meca, que crê em Alá e em Maomé, seu profeta, não se embaraça nessas argúcias escolásticas. Ele diz muito simplesmente “Alá é Deus, e Maomé é seu profeta.” Eis toda a sua ciência. E ele fere com seu chicote ou sua faca o ímpio que não crê nem em Alá nem em Maomé!...
O cameleiro de Meca é muito mais sábio, ele sozinho, que todos os teólogos do Ocidente.
Não entrarei, pois, em nenhuma discussão religiosa, de sorte que pessoa alguma me poderá reprovar haver abalado a fé tradicional de minhas avós. Contentar-me-ei em sinalar uma estatística estarrecedora, muito dolorosa para nossa pobre intelectualidade humana.
Desde que mundo existe, nele viveram perto de seiscentos milhões de seres humanos. Pode-se admitir que houve, em números redondos, cem milhões de hindus, cem milhões de pagãos diversos, cem milhões de budistas, cem milhões de muçulmanos, cem milhões de católicos, cem milhões de protestantes. Ora, feito isso, se eu não me engano, seis religiões bem distintas, e não é possível que todas essas religiões sejam verdadeiras. Existem ao menos cinco falsas entre as seis.
Se, pois, colocando melhor as coisas, existir uma entre as seis que seja verdadeira e autêntica − tudo é possível − não permanece menos seguro, evidente, incontestável, que as cinco outras são falsas e, consequentemente, que cinco sextos da humanidade levaram, e ainda hoje levam, uma existência falseada em sua base por um terrível e ridículo erro. Os cinco sextos da humanidade foram e têm sido absolutamente estúpidos.
Eis uma demonstração cujo rigor matemático é impecável.

Charles Richet
Traduzido de O Homem Estúpido

Livros, livros & livros

21 de janeiro de 2009

A 407

O lar das minhas Traças, Ácaros e Cia tem esse ar sombrio, e tudo a ver com as minhas paixões. Sufocante, pequena e opressiva para muita gente, pelo excesso de tralhas e pela poeira entranhada nos cantos, ela permanece sendo o meu refúgio.

18 de janeiro de 2009

A Morte

O acontecimento mais banal da vida é a morte. O homem deveria resignar-se a isso, porque nada é mais comum, mais universal, mais necessário. É coisa estúpida revoltar-se contra o inelutável e, todavia, o homem não se resigna. Indigna-se e lamenta-se. A morte é, para ele, uma fonte de terrores ridículos e de práticas desonrosas.
Se o bom senso regrasse os movimentos de nossa pobre máquina pensante, a morte só poderia nos inspirar sentimentos de afetuosa simpatia. Deveríamos tratá-la, ao menos aquela que nos concerne, como uma grande amiga, muito poderosa e muito serena, porque apenas ela pode nos livrar de nossas angústias renascentes. Ela faz suceder à nossa perpétua trepidação uma paz que ninguém mais pode perturbar.
Eu não sei que soberano de vida brilhante, mas agitada, passando diante de um cemitério semeado de túmulos, murmurou, suspirando: Invideo quia quiescunt! Eu lhes tenho inveja, porque eles repousam! Ele foi sincero talvez!
Hei! Tu que me lês, e que és, talvez, um pouco menos estúpido que todos os teus irmãos, reflete um momento, se puderes. Para lamentar a vida, é preciso estar vivo. Muito bem! Quando estiveres morto, tu não estarás mais em estado de lamentar qualquer coisa, nem as flores, nem as mulheres, nem os vinhos, nem as coroas, nem este ouro pelo qual fizeste tão frívolos sacrifícios. Que importa se a fome, a peste e a guerra desencadeiam contra os vivos seus furores? Tu, deitado em um bom túmulo, devorado pelos bravos vermes, tu dormirás profundamente, sem sonhar e sem roncar. E de tuas carnes restarão apenas sobras sem nome, e a consciência de toda dor terá, há muito tempo, desaparecido. Nenhum lamento ecoará em tua sepultura, para misturar-se às larvas que pastarão teus átomos. Inutilmente, todos os ódios do homem e todos os raios do céu troarão em volta de teu túmulo: eles não poderão arrancar-te uma só sensação, e tu continuarás a gozar de um sono espesso, mesmo se um obus, degradando teu sepulcro, pulverizar os teus ossos e colocar a nu a tua podridão.
Por que, então, ter medo da morte? Será que, por uma exceção inverossímil, tua existência efêmera era a esse ponto deliciosa e sem nuvem, que apenas a idéia de seres dela privado te faz desfalecer?
O que me apavora, dizes, não é tanto a morte quanto o morrer. Passar da vida à morte, dar o grande salto! Imagina-se que é terrível!... Mas não! Mas não! Não é tão terrível! É muito simples. Prova disso é ter sido feito milhões de vezes. Dorme-se. Eis tudo!
Um excelente sono ao qual não se seguirá nenhum desagradável despertar; isso não é tão mal imaginado, depois de tudo, e acho que a mãe Natureza tem feito bem as coisas.
Entretanto, em todos os tempos e em todos os países, o homem esforça-se para contar a si mesmo histórias fantasiosas sobre os dias seguintes à morte. Ele inventou caldeirões ferventes onde papões atrozes e terríveis feiticeiras nos farão cozinhar em fogo alto e por muito tempo (uma eternidade, muito simplesmente). Mas são contos infantis que fazem sorrir a própria Agnes.
Nosso temor comum da morte é, pois, de uma extrema estupidez. Todavia, seria completamente inútil combatê-la, porque ela é muito menos um raciocínio que um instinto. E este instinto justifica-se, pois que todo ser vivo, para conduzir-se na vida, deve ser possuído pelo horror à morte.
Tanto mais que não é apenas nossa própria morte que deve nos deixar muito indiferentes, mas a morte daqueles que nós amamos... Ah! Certamente esta é cruel, e eu conheço toda a intensidade desta dor. Não mais ver o sorriso, não mais ouvir a voz, não mais tocar a mão daquele que era adorado, daquela que era querida, é a maior das misérias humanas... Do mesmo modo, o homem poderia ser bastante sábio para temer a morte daqueles que ama, sem temer sua própria morte... Mas eu não insisto, porque seria estimar muito alto a inteligência de meus contemporâneos acreditá-los capazes de compreender que, para lamentar a vida, é preciso haver conservado uma parcela de vida.
Não tendo conseguido jamais − eu não sei por que, − resignar-se à morte, o homem sempre tentou, por mil subterfúgios ridículos, persuadir-se a si mesmo de que não vai morrer. Ao lado da múmia bem fechada em elegantes bandagens, perfumada e dessecada, os velhos egípcios enfiavam pães, licores suaves, imagens voluptuosas, a fim de que, em seu hipogeu, o defunto, acordando-se subitamente, encontrasse ao alcance de suas mãos algumas delícias das quais ele poderia facilmente dispor.
Entre os gregos, a ausência de sepultura era a mais cruel das afrontas, e uma ofensa pior que a própria morte.
Príamo pouco chorou quando seu filho Heitor pereceu sob os golpes de Aquiles. O glorioso Priamides, como um valente, sucumbiu na luta. Eis aí jogos de guerra. Seja! Mas que esse nobre corpo permaneça sem sepultura, eis aquilo que é terrível, infame, intolerável.
Em todas as tradições, em todas as religiões, encontra-se esse inexplicável e infantil sentimento: o respeito pelo cadáver. Profanar um túmulo, violar uma sepultura, mutilar um morto, eis crimes abomináveis dos quais toda a humanidade sempre teve horror.
Mas esse horror está ligado a um materialismo desenfreado e irrefletido. Porque, na imaginação de todos os homens, uma ingênua confusão se estabelece entre esta carne inerte, pronta a putrefazer-se, e a alma que, animando-a, dá-lhe o pensamento, o movimento, o olhar.
Por mim, com o risco de ser tratado por meus contemporâneos como personagem abjeto, eu confesso que os corpos dos seres que me foram caros me são completamente indiferentes. Eu guardo de meu pai, de minha mãe, piedosamente, os menores retratos, as menores cartas, eu conservo, rememorando-os sem cessar, a lembrança de suas palavras, de seus gestos, de seus carinhos. Mas com aquilo que foram seus corpos, − porque seus corpos desapareceram, − não tenho cuidado algum, pois, uma vez que a vida se esvai, só resta de nós um amálgama de tecidos anatômicos, músculos, vísceras e ossos que, em algumas horas, serão invadidos por uma terrível decomposição.
Logo, quanto ao meu próprio corpo, eu declaro muito formalmente que se o lance à fogueira, que se o incinere, que se o disseque, que se o enterre, isso me é prodigiosamente igual. E eu suplico aos meus não se preocuparem com isso.
O culto aos cadáveres é uma loucura humana universal. Ergam-se estátuas a Lavoisier, a Victor Hugo, a Lesseps, a Pasteur. Isso é justo. Mas não cuidem de suas cinzas. Elas nada têm de respeitável. Ao cabo de uns cinqüenta anos, não serão mais que fosfato de cálcio e de magnésio. E os ossos de Agamenon não diferem dos ossos de Térsito. A veneração com a qual se cerca o farrapo terrestre não é mais decente que aquela de um célebre doente do qual se deveu cortar a perna. Após a amputação, ele preciosamente conservou seu pé disforme e supurado para fazê-lo embalsamar e expor num estojo de veludo em lugar de honra em seu salão.
Será que, por acaso, pensar-se-ia conjurar a dor de não ser mais nada, fazendo-se encerrar num triplo caixão luxuoso de chumbo, de acaju e de carvalho! Que loucura! Que desconhecimento das coisas! Que baixeza sob esta concepção do ser humano!
Seria, todavia, muito simples, em lugar de dar este pasto aos vermes e aos micróbios, acender a grande chama de uma fogueira e transformar em líquido e ácido carbônico − sem todas as podridões do sepultamento, − as matérias orgânicas que constituíram uma pessoa humana, quando elas estavam animadas pela pequena chama da vida. Agora que elas não vivem mais, não são mais que uma peça anatômica. Mas um vago temor, denotando uma infantil estupidez, nos prende a idéia de que o calor do fogo vai fazer crepitar nossas carnes mortas. E então, recuamos diante da incineração, como se ela fosse uma dor, como se o fogo, lambendo os tecidos, devesse ultrajar a majestade do morto. Pobre majestade, junto da qual, se ela fosse deixada ao ar livre, não se passaria sem prender o nariz.
Todas as vezes que o homem toca nas coisas da morte, o medo lhe faz perder a razão.
Quando um infeliz agoniza, − sem que, aliás, nem os médicos, nem os herdeiros tenham guardado um clarão de esperança, − pouco se tenta aliviar seus sofrimentos, mas se o faz parecer crer que se vai salvá-lo. Ele é fatigado com poções, ventosas, operações supérfluas. Por que não alegrar seus últimos momentos com uma resignação emocionada e pacífica? Dar-lhe a morfina, para que ele reencontre alguma aparência de vigor, para que ele se extinga num vago delírio meio inconsciente e talvez para que ele seja capaz, como Sócrates, de conversar com seus amigos, sem os tormentos da dor física, sem os lamentos dos assistentes aí chegados curiosamente como quem vem a um espetáculo.
O homem não poderá falar dignamente de sua inteligência a não ser que ele saiba conduzir-se a uma morte serena. Eu gostaria que o moribundo, sentado em seu leito, aliviado em sua dor por poderosos narcóticos, falasse sem amargura, sorrindo, de sua morte próxima, e que ele pudesse,com doçura, ver a emoção daqueles que o cercam. Mas nós cultivamos o contrário da eutanásia. Nós conhecemos apenas a distanásia. Tanto pior para nossa felicidade. Tanto pior para nossa razão!
O começo da sabedoria humana, dessa sabedoria que nos permitirá chamar o homem Homo sapiens e não Homo stultus, será poder olhar a morte de frente, sem terror e sem cólera.
E é talvez porque eles amplamente desprezaram a morte, que nós admiramos os inumeráveis soldados que, como heróis, nesta guerra cruel, caíram sobre os campos de batalha. Eles anteciparam os tempos futuros, esses tempos de sabedoria, quando o homem, liberto de inúteis terrores, não temerá mais ver extinguir-se a fraca chama de sua vida.

Traduzido por mim da obra O HOMEM ESTÚPIDO,
de Charles Richet.

11 de janeiro de 2009

Erínias

Esta é uma gravura de Doré. Das famosas ilustrações feitas por este artista à obra de Dante, A Divina Comédia. As Erínias puniam os mortais. Representavam a vingança. Seus nomes eram Tisífone, o castigo, a que gerava a culpa e o remorso nos traidores e nos assassinos. Havia também Megera, inspiradora do rancor, ela punia a inveja, a cobiça e o ciúme. Alecto, a implacável, punia a cólera, a ira e a soberba. Elas tinham sua morada no inferno e era sua tarefa torturar os pecadores. Nasceram do sangue que resultou da castração de Cronos. Também chamadas filhas da noite e conhecidas como as Fúrias. Representam forças primitivas vingadoras dos crimes, convocadas pelas maldiçoes lançadas por quem clama por vingança. Nesse sentido, são implacáveis, ainda que não deixem de representar uma espécie de justiça. Nada pode abrandá-las. E, sobretudo, testemunham o poder criativo da imaginação dos homens, infinitamente mais fértil que a razão.

AS CARTAS XIV

Carta de Francisco para Maria de 17 de agosto de 1924.
Maria,
Vim de ti há pouco... E trouxe comigo a tua voz, única em harmonia, a ecoar, em ondas de doçura, aos meus ouvidos. Ela será a música das minhas últimas horas deste dia, até o sono, que me será divino, caindo, como cairá do céu, a tua voz.
E veio o teu perfume, também, como um longo veu, envolveu-me o corpo todo. Encerrei-me, com langor, dentro dele. Será o meu cofre imaterial, onde o meu corpo repousará esta noite, desmaiado à embriaguez do seu seio.
De vez em vez, correm-me pela superfície da epiderme arrepios de volúpia, ao ferir de toques invisíveis. São reflexos de teu contato. Ele desperta a minha sensibilidade pela amorosa pressão que foi, que já não é, e que acorda, momento que outro, ao reviver de meu insopitável desejo.
Som, perfume, contato... Na conjunção desses três termos, trouxe-te inteira, toda carícias, de forma espiritual.
E trouxe um mundo também, porque te trouxe. E trouxe tudo o que é meu, tudo o que faz a minha vida, dizendo-te, a ti, que és a minha vida, o meu único bem, que me dá tanto mal, às vezes... mas, na vida, tudo é assim... Ao lado da melhor felicidade caminha, sempre, a amargura... Esta é o seu preço. Não se pode gozar de um bem, sem punição. Nem aquele teria valor como tal, sem a existência desta. É lei da vida. E a melhor felicidade consiste, sem dúvida, em se pensar que se é feliz. Ou, com mais sabedoria, em não se pensar nela, nem desejá-la. Ela foge, sorrindo, com piedosa ironia, da mão que a quer apanhar...
Mas, eu te amo... E não sei donde nasceu este amor, não sei donde ele veio... Sei apenas que te amo, e muito. Será por seres mulher, e por ser eu homem? Mas, se fosses homem, não serias meu amigo? Eu, por certo, se fosse mulher, seria tua amiga, tua amiga exclusivista, que te não permitiria a graça de um namorado... Viveria contigo e contigo morreria... Que loucura, Santo Deus! Que ninguém saiba dessas coisas! Apaga, por favor, os últimos períodos. Mulher, eu? Que blasfêmia! Perdoa-me, meu amor!
Perdoa
ao teu
Francisco

4 de janeiro de 2009

Os Grandes Homens

Nessa multidão servil, cega, ignorante, que foi a humanidade do passado e que é a humanidade do presente, às vezes, algumas inteligências têm aparecido, serenas e audaciosas, antecipando o amanhã, descobrindo verdades novas, amando a justiça, vagos clarões esparsos que lançam alguma luz nas trevas de uma noite profunda.
Esses benfeitores, grandes pela audácia e pelo gênio, têm sido, sem dúvida, recompensados pelos seus irmãos humanos?
Vejamos o que nos diz a história.
Sócrates, o sábio dos sábios, ousou, em pleno paganismo, sustentar que as superstições mitológicas eram tradições ridículas; que se devia conhecer a si mesmo e não ter outra regra de conduta que a consciência e, como regra de crença, a razão. Mas ele foi vaiado pelas multidões. Aristófano ridicularizou-o ultrajosamente no teatro. Pretensos juízes acusaram-no de corromper a juventude, e ele foi condenado à morte. A cicuta propiciou-lhe uma morte bastante suave, mas era a morte, de qualquer forma.
Jesus Cristo, alma terna e mística, inacessível ao ódio, pregou o perdão das injúrias, a piedade para com os infelizes e os pobres, a igualdade dos míseros humanos diante do Pai Celeste. Doutrinas novas que teriam devido mudar a face do mundo. Muito bem! Jesus Cristo foi condenado a uma morte ignomiosa e dolorosa. Muito jovem ainda, esse ser quase divino foi crucificado, metade como rebelde, metade como demente, sob os aplausos de uma multidão bárbara.
Cristóvão Colombo, sozinho contra todos, concebeu uma grande coisa. Em torno dele, todo mundo acreditava que a Terra era chata como um prato de sopa. Mas ele, ele compreendeu... Provido de alguns miseráveis navios, ele ousou aventurar-se a mares desconhecidos. Sua equipagem revoltou-se, mas ele se manteve à frente dos motins e, ainda que parecesse ceder, obstinou-se em seu pensamento fecundo. Abordou, enfim, uma nova terra. Um Novo Mundo foi adquirido para a velha humanidade... E, como recompensa, ao seu retorno à Europa, ele foi acorrentado, colocado na prisão, ameaçado de morte. Por milagre, escapou aos suplícios. De qualquer sorte, morreu pobre, injuriado, exilado, vilipendiado, traído.
Galileu concebeu e executou coisas maravilhosas. Ele inventou o termômetro. Ele inventou o telescópio que lhe permitiu ver mundos imensos até então insuspeitos, e compreender que ínfimo lugar tem nosso planeta terrestre no vasto universo. Mas os homens têm um santo horror à verdade. Galileu foi obrigado a ajoelhar-se diante da estupidez triunfante, e ele arrastou, cego, os seus últimos dias numa prisão.
Gutemberg, que inventou a imprensa; Palissy, que criou a paleontologia e a cerâmica; Jenner, que descobriu a vacina; Harvey, o primeiro a realizar a verdadeira fisiologia experimental, tiveram todos as suas existências envenenadas pelas proscrições, as perseguições, os processos, as zombarias e a pobreza.
Michel Servet que, sem apoio, sem mestre, compreendeu que o sangue circula para ir do coração direito ao esquerdo, passando pelo pulmão, Michel Servet foi queimado.
Savonarola foi queimado. Queimado também o admirável Jean Huss. Ambos tiveram a audácia de pregar uma moral pura a corruptos.
Lavoisier que, sozinho, fez nascer as duas mais belas ciências abordáveis pelos mortais, toda a química e toda a fisiologia, Lavoisier, cujo nome deveria ser considerado como o maior nome da ciência, Lavoisier foi guilhotinado em praça pública em Paris.
Denis Papin viu sua embarcação incendiada e feita em pedaços pelos barqueiros do Reno.
Descartes que, como Sócrates, ousou falar dos direitos da razão humana, teve de fugir de sua pátria e morrer no estrangeiro. Espinosa, um genial e ousado pensador, foi vítima de perseguidores cruéis. O mais maravilhoso escritor francês, Victor Hugo, viveu vinte anos no exílio. O sublime escritor espanhol, Cervantes, passou a metade de sua vida no cárcere a nas prisões de forçados. O corpo de Molière foi jogado no lixo. Um dos mais encantadores poetas latinos, Ovídio, foi condenado a um longo exílio entre os bárbaros. Como Eurípides, André Chénier pereceu no cadafalso, Chatterton morreu de fome. Voltaire, Sílvio Pellico, Mickieviez conheceram, eles também, as prisões e o exílio. Sêneca foi obrigado a matar-se. Um soldado bêbado matou Arquimedes. Demóstenes e Cícero, ou seja, os maiores oradores de todos os tempos, foram assassinados pela soldadesca.
E está é apenas uma enumeração incompleta.
Tais são as recompensas que os homens reservam aos mais nobres representantes da espécie humana.
Quanto mais a multidão é medíocre e estúpida, mais ela persegue com seu ódio aqueles que, ingenuamente, procuram atenuar sua mediocridade e sua estupidez.
Charles Richet
Da obra O HOMEM ESTÚPIDO

3 de janeiro de 2009

Reclames de Antigamente


Bem que eu precisava de uma boa dose dessa coisa. Para ler o texto publicitário sem precisar de óculos, basta dar um clique em cima da imagem. Ela vai aumentar o bastante para tornar a leitura confortável.

Citação

É certo que o homem jamais saberá qualquer coisa com absoluta certeza antes que Deus seja visto face a face... pois ninguém é versado na natureza a ponto de saber tudo... a natureza e as propriedades de uma simples mosca... E já que, em comparação com o que o homem sabe, são infinitas e indubitavelmente maiores e mais belas as coisas que ele ignora, ele estará fora do juízo se vangloriar-se a respeito de seus próprios conhecimentos... Tanto mais sábio será o homem, quanto mais humildemente se mostrar disposto a receber os ensinamentos de outrem, não desdenhando a simplicidade do mestre, porém conduzindo-se de maneira humilde para com os aldeões, mulheres idosas e crianças, pois muitas coisas que os simples ignorantes conhecem escapam à observação dos sábios... Tenho aprendido importantes verdades com homens de posição humilde, mais do que com doutores célebres. Portanto, não deve ninguém se vangloriar de sua sabedoria.
Roger Bacon.
Citado em DURANT, Will. História da Civilização, tomo IV, 2ª ed., Companhia Editora Nacional, São Paulo.

1 de janeiro de 2009

Beleza Feminina

La Beauté chez l’Homme et la Femme – Les Moyens de L’Acquérir et de L’Augmenter. Ernest Kolb, Éditeur. Paris, 189... (?)
Um livrinho encantador e muito divertido, cujo título em português seria: A Beleza no Homem e na Mulher − meios de adquiri-la e de aumentá-la. Das páginas 6 e 7, destaco:

Para dar-se conta das diferenças que existem na idéia de beleza, não é necessário ir buscar exemplos na China ou entre os selvagens. Eis, por exemplo, os árabes, cujo amor ao belo e aos gostos artísticos não cedem em nada aos nossos, e que pretendem que uma mulher deve ter:
Quatro coisas negras: cabelos, sobrancelhas, cílios e pupilas.
Quatro coisas brancas: pele, globo ocular, dentes e pernas.
Quatro coisas arredondadas: cabeça, pescoço, antebraço e tornozelos.
Quatro coisas longas: dorso, dedos, pernas e braços.
Quatro coisas grandes: fronte, olhos, costas e ancas.
Quatro coisas finas: sobrancelhas, nariz, lábios e dedos.
Quatro coisas carnudas: bochechas, coxas, nádegas e barriga da perna.
Quatro coisas pequenas: orelhas, peito, mãos e pés.

Votos de Castidade

Alhures, em todos os tempos e em todos os países, as funções da geração têm sido sabiamente pervertidas por nefastas invenções.

Que absurda anomalia aqueles votos de virgindade, sejam do homem, sejam da mulher! Uma das funções mais nobres, — eu ousaria mesmo dizer das mais santas, — do ser humano é a de dar nascimento a outros seres humanos. Se existe qualquer objetivo em nossa existência, — o que é, a rigor, admissível, — é o de prolongar no tempo, por novas gerações, a nossa espécie. É, pois, violar a lei primordial imposta a todo ser vivente condená-lo a uma virgindade perpétua. E, todavia, não era isso que faziam as vestais? Não existem faquires? Não vemos, nas igrejas e mosteiros, religiosos e religiosas que acreditam conquistar a santidade pela virgindade? Santidade bem singular que consiste em não obedecer às leis divinas.

Se essas vestais, esses capuchinhos, essas carmelitas, esses dominicanos, esses jesuítas, esses faquires fossem acessíveis a um raciocínio, eu lhes diria que, por seus votos de virgindade, eles vão diretamente contra a manifesta vontade do deus no qual eles crêem. Em se revoltando contra seu destino, eles praticam ação de rebeldes. É ofender o Criador pretender fazer melhor que Ele, desobedecendo de modo impudente à lei suprema que Ele ordenou a todo ser vivente.

Não se pretenderá que se trata aqui, como para os eunucos, de uma raríssima exceção. De fato, os celibatos voluntários estendem-se, como a religião cristã, sobre toda a superfície terrestre. Mesmo o vulgo cerca de uma lastimosa veneração os infelizes e as infelizes que se colocam fora — ou mesmo acima — das leis humanas. Mas que importa a opinião do vulgo? Que me importa a cegueira de meus contemporâneos? Eu não tenho o direito de constatar que o homem, enganado pelos erros de sua reles inteligência, coloca-se em dissensão com a unanimidade dos seres? Único, na imensa Natureza, ele se impõe a virgindade. Ele é, pois, o único a ser absurdo!

Em dizendo que é preciso respeitar a obra de Deus, eu estou mais perto da religião que os próprios religiosos.

Como fisiologista, estudando as molas da máquina vivente, fui lenta e seguramente levado a uma conclusão geral, simples e formal, de que nosso corpo e nossa alma estão num estado normal tão excelente, que toda modificação, em lugar de melhorá-los, os torna piores; em lugar de aperfeiçoá-los, degrada-os. O ideal de uma vida feliz, sã e forte é a vida natural. Acreditar que se progride, suprimindo as funções geradoras, é tão insensato quanto acreditar chegar a uma moralidade superior por açoites e jejuns. O exercício regular e moderado de nossas funções normais: eis a verdadeira santidade. A sábia e fecunda Natureza nos tem indicado claramente sua vontade, quando ela nos mune de tais ou quais órgãos. Nós a insultamos acreditando fazer melhor que ela.

Não apenas nós a insultamos, o que a deixa bem indiferente; mas ainda, perante nós mesmos, somos estúpidos.

Parece, diz-se algumas vezes, que essas virgindades sacerdotais dirigidas por teorias de freiras e frades são protestos contra as perversões do século. Mas fala-se seriamente? Em que cinqüenta mulheres santas que se prosternam sobre uma laje vão extinguir as obscenidades de todo um mundo de cortesãs? As damas romanas da decadência levavam falos pendurados no pescoço. Essa grosseria era por acaso diminuída, porque no Templo de Vesta suspiravam as virgens que alimentavam o fogo sagrado? Eis duas aberrações em lugar de uma. Eles somam-se em lugar de se anularem.

O que faz a superioridade do animal sobre o homem é que jamais um animal procura modificar o curso normal de sua vida fisiológica. E assim ele encontra, de pronto, o nível ótimo do qual um ser vivo não pode senão afastar-se com suas invenções, sua imaginação, seus preconceitos.

A inteligência a acoplar-se com a estupidez: eis assim em que se pode resumir a evolução humana! Servir-se da razão para corrigir os instintos animais é muito irracional. Empregar sua inteligência em fazer desaparecer esses instintos é dar prova, não de inteligência, mas de inépcia. Se, aperfeiçoando todas as capacidades de dedução ou de indução que fermentam em nosso cérebro, nós as aplicássemos em complicar e aumentar nossos instintos, de maneira a nos conformarmos, cada vez mais, às leis naturais, nós nos tornaríamos talvez, superiores aos animais. Nada disso. Parece que todo nosso esforço tende a se opor às leis que a Natureza deu a nosso ser.

É-se bastante louco para acreditar que se vai imaginar melhor que o Amor para desenvolver nossa energia moral?

Charles Richet
da obra O HOMEM ESTÚPIDO