18 de janeiro de 2009

A Morte

O acontecimento mais banal da vida é a morte. O homem deveria resignar-se a isso, porque nada é mais comum, mais universal, mais necessário. É coisa estúpida revoltar-se contra o inelutável e, todavia, o homem não se resigna. Indigna-se e lamenta-se. A morte é, para ele, uma fonte de terrores ridículos e de práticas desonrosas.
Se o bom senso regrasse os movimentos de nossa pobre máquina pensante, a morte só poderia nos inspirar sentimentos de afetuosa simpatia. Deveríamos tratá-la, ao menos aquela que nos concerne, como uma grande amiga, muito poderosa e muito serena, porque apenas ela pode nos livrar de nossas angústias renascentes. Ela faz suceder à nossa perpétua trepidação uma paz que ninguém mais pode perturbar.
Eu não sei que soberano de vida brilhante, mas agitada, passando diante de um cemitério semeado de túmulos, murmurou, suspirando: Invideo quia quiescunt! Eu lhes tenho inveja, porque eles repousam! Ele foi sincero talvez!
Hei! Tu que me lês, e que és, talvez, um pouco menos estúpido que todos os teus irmãos, reflete um momento, se puderes. Para lamentar a vida, é preciso estar vivo. Muito bem! Quando estiveres morto, tu não estarás mais em estado de lamentar qualquer coisa, nem as flores, nem as mulheres, nem os vinhos, nem as coroas, nem este ouro pelo qual fizeste tão frívolos sacrifícios. Que importa se a fome, a peste e a guerra desencadeiam contra os vivos seus furores? Tu, deitado em um bom túmulo, devorado pelos bravos vermes, tu dormirás profundamente, sem sonhar e sem roncar. E de tuas carnes restarão apenas sobras sem nome, e a consciência de toda dor terá, há muito tempo, desaparecido. Nenhum lamento ecoará em tua sepultura, para misturar-se às larvas que pastarão teus átomos. Inutilmente, todos os ódios do homem e todos os raios do céu troarão em volta de teu túmulo: eles não poderão arrancar-te uma só sensação, e tu continuarás a gozar de um sono espesso, mesmo se um obus, degradando teu sepulcro, pulverizar os teus ossos e colocar a nu a tua podridão.
Por que, então, ter medo da morte? Será que, por uma exceção inverossímil, tua existência efêmera era a esse ponto deliciosa e sem nuvem, que apenas a idéia de seres dela privado te faz desfalecer?
O que me apavora, dizes, não é tanto a morte quanto o morrer. Passar da vida à morte, dar o grande salto! Imagina-se que é terrível!... Mas não! Mas não! Não é tão terrível! É muito simples. Prova disso é ter sido feito milhões de vezes. Dorme-se. Eis tudo!
Um excelente sono ao qual não se seguirá nenhum desagradável despertar; isso não é tão mal imaginado, depois de tudo, e acho que a mãe Natureza tem feito bem as coisas.
Entretanto, em todos os tempos e em todos os países, o homem esforça-se para contar a si mesmo histórias fantasiosas sobre os dias seguintes à morte. Ele inventou caldeirões ferventes onde papões atrozes e terríveis feiticeiras nos farão cozinhar em fogo alto e por muito tempo (uma eternidade, muito simplesmente). Mas são contos infantis que fazem sorrir a própria Agnes.
Nosso temor comum da morte é, pois, de uma extrema estupidez. Todavia, seria completamente inútil combatê-la, porque ela é muito menos um raciocínio que um instinto. E este instinto justifica-se, pois que todo ser vivo, para conduzir-se na vida, deve ser possuído pelo horror à morte.
Tanto mais que não é apenas nossa própria morte que deve nos deixar muito indiferentes, mas a morte daqueles que nós amamos... Ah! Certamente esta é cruel, e eu conheço toda a intensidade desta dor. Não mais ver o sorriso, não mais ouvir a voz, não mais tocar a mão daquele que era adorado, daquela que era querida, é a maior das misérias humanas... Do mesmo modo, o homem poderia ser bastante sábio para temer a morte daqueles que ama, sem temer sua própria morte... Mas eu não insisto, porque seria estimar muito alto a inteligência de meus contemporâneos acreditá-los capazes de compreender que, para lamentar a vida, é preciso haver conservado uma parcela de vida.
Não tendo conseguido jamais − eu não sei por que, − resignar-se à morte, o homem sempre tentou, por mil subterfúgios ridículos, persuadir-se a si mesmo de que não vai morrer. Ao lado da múmia bem fechada em elegantes bandagens, perfumada e dessecada, os velhos egípcios enfiavam pães, licores suaves, imagens voluptuosas, a fim de que, em seu hipogeu, o defunto, acordando-se subitamente, encontrasse ao alcance de suas mãos algumas delícias das quais ele poderia facilmente dispor.
Entre os gregos, a ausência de sepultura era a mais cruel das afrontas, e uma ofensa pior que a própria morte.
Príamo pouco chorou quando seu filho Heitor pereceu sob os golpes de Aquiles. O glorioso Priamides, como um valente, sucumbiu na luta. Eis aí jogos de guerra. Seja! Mas que esse nobre corpo permaneça sem sepultura, eis aquilo que é terrível, infame, intolerável.
Em todas as tradições, em todas as religiões, encontra-se esse inexplicável e infantil sentimento: o respeito pelo cadáver. Profanar um túmulo, violar uma sepultura, mutilar um morto, eis crimes abomináveis dos quais toda a humanidade sempre teve horror.
Mas esse horror está ligado a um materialismo desenfreado e irrefletido. Porque, na imaginação de todos os homens, uma ingênua confusão se estabelece entre esta carne inerte, pronta a putrefazer-se, e a alma que, animando-a, dá-lhe o pensamento, o movimento, o olhar.
Por mim, com o risco de ser tratado por meus contemporâneos como personagem abjeto, eu confesso que os corpos dos seres que me foram caros me são completamente indiferentes. Eu guardo de meu pai, de minha mãe, piedosamente, os menores retratos, as menores cartas, eu conservo, rememorando-os sem cessar, a lembrança de suas palavras, de seus gestos, de seus carinhos. Mas com aquilo que foram seus corpos, − porque seus corpos desapareceram, − não tenho cuidado algum, pois, uma vez que a vida se esvai, só resta de nós um amálgama de tecidos anatômicos, músculos, vísceras e ossos que, em algumas horas, serão invadidos por uma terrível decomposição.
Logo, quanto ao meu próprio corpo, eu declaro muito formalmente que se o lance à fogueira, que se o incinere, que se o disseque, que se o enterre, isso me é prodigiosamente igual. E eu suplico aos meus não se preocuparem com isso.
O culto aos cadáveres é uma loucura humana universal. Ergam-se estátuas a Lavoisier, a Victor Hugo, a Lesseps, a Pasteur. Isso é justo. Mas não cuidem de suas cinzas. Elas nada têm de respeitável. Ao cabo de uns cinqüenta anos, não serão mais que fosfato de cálcio e de magnésio. E os ossos de Agamenon não diferem dos ossos de Térsito. A veneração com a qual se cerca o farrapo terrestre não é mais decente que aquela de um célebre doente do qual se deveu cortar a perna. Após a amputação, ele preciosamente conservou seu pé disforme e supurado para fazê-lo embalsamar e expor num estojo de veludo em lugar de honra em seu salão.
Será que, por acaso, pensar-se-ia conjurar a dor de não ser mais nada, fazendo-se encerrar num triplo caixão luxuoso de chumbo, de acaju e de carvalho! Que loucura! Que desconhecimento das coisas! Que baixeza sob esta concepção do ser humano!
Seria, todavia, muito simples, em lugar de dar este pasto aos vermes e aos micróbios, acender a grande chama de uma fogueira e transformar em líquido e ácido carbônico − sem todas as podridões do sepultamento, − as matérias orgânicas que constituíram uma pessoa humana, quando elas estavam animadas pela pequena chama da vida. Agora que elas não vivem mais, não são mais que uma peça anatômica. Mas um vago temor, denotando uma infantil estupidez, nos prende a idéia de que o calor do fogo vai fazer crepitar nossas carnes mortas. E então, recuamos diante da incineração, como se ela fosse uma dor, como se o fogo, lambendo os tecidos, devesse ultrajar a majestade do morto. Pobre majestade, junto da qual, se ela fosse deixada ao ar livre, não se passaria sem prender o nariz.
Todas as vezes que o homem toca nas coisas da morte, o medo lhe faz perder a razão.
Quando um infeliz agoniza, − sem que, aliás, nem os médicos, nem os herdeiros tenham guardado um clarão de esperança, − pouco se tenta aliviar seus sofrimentos, mas se o faz parecer crer que se vai salvá-lo. Ele é fatigado com poções, ventosas, operações supérfluas. Por que não alegrar seus últimos momentos com uma resignação emocionada e pacífica? Dar-lhe a morfina, para que ele reencontre alguma aparência de vigor, para que ele se extinga num vago delírio meio inconsciente e talvez para que ele seja capaz, como Sócrates, de conversar com seus amigos, sem os tormentos da dor física, sem os lamentos dos assistentes aí chegados curiosamente como quem vem a um espetáculo.
O homem não poderá falar dignamente de sua inteligência a não ser que ele saiba conduzir-se a uma morte serena. Eu gostaria que o moribundo, sentado em seu leito, aliviado em sua dor por poderosos narcóticos, falasse sem amargura, sorrindo, de sua morte próxima, e que ele pudesse,com doçura, ver a emoção daqueles que o cercam. Mas nós cultivamos o contrário da eutanásia. Nós conhecemos apenas a distanásia. Tanto pior para nossa felicidade. Tanto pior para nossa razão!
O começo da sabedoria humana, dessa sabedoria que nos permitirá chamar o homem Homo sapiens e não Homo stultus, será poder olhar a morte de frente, sem terror e sem cólera.
E é talvez porque eles amplamente desprezaram a morte, que nós admiramos os inumeráveis soldados que, como heróis, nesta guerra cruel, caíram sobre os campos de batalha. Eles anteciparam os tempos futuros, esses tempos de sabedoria, quando o homem, liberto de inúteis terrores, não temerá mais ver extinguir-se a fraca chama de sua vida.

Traduzido por mim da obra O HOMEM ESTÚPIDO,
de Charles Richet.