22 de janeiro de 2009

Os Deuses

Malgrado suas pretensões a uma sagaz desconfiança, os homens são formidavelmente crédulos, e crédulos até a loucura furiosa. Eles aceitam sem controle todas as asneiras que se lhes atiram. A história das religiões, e de todas as religiões, prova isso claramente.
Que um personagem vestido de suntuosos ornamentos apresente à multidão um grande boi pacífico, olhando, com todo espanto do qual esse quadrúpede é capaz, a imensa multidão que o cerca, e que o homem engalanado exclame: “Eis vosso Deus!” Logo, toda a tropa humana, presa de um invencível terror, joga-se com a face contra a terra. Que, se por acaso, o boi Apis se ponha a mugir, ou que ele produza, à maneira dos bois vulgares, seus excrementos, eis o terror em seu cúmulo!
Um Deus, quer dizer, a Força invisível, imutável, eterna, suprema, que, além dos espaços e dos tempos, rege as evoluções dos mundos, tão misteriosos que nenhuma inteligência humana é capaz de compreender a mais ínfima parte daquilo que esta palavra significa. Quê! Esse humilde ruminante seria um Deus! Inteiramente Deus, dissimulado sob esta forma grotesca!
Mas a estupidez humana iguala a grandeza de Deus!... E, muito simplesmente, um povo de trinta milhões de homens, durante dez séculos, foi convencido de que o boi Ápis era um Deus.
Observemos que prova alguma é apresentada pelo personagem suntuosamente vestido em apoio ao que acaba de dizer.
Nenhuma demonstração, nenhum raciocínio. Ele diz: “É assim. É preciso crer, sob pena de ser um canalha.” E a multidão ingênua não se tortura em procurar vãs demonstrações.
“Nossos pais acreditaram. Não podemos pensar diferentemente de nossos pais. Não sejamos ímpios. Logo, o boi Ápis é um Deus!”
As inverossimilhanças não contam. Pois que a dúvida é um crime, apenas os maus poderiam se revoltar contra as santas tradições. Para que temos nós necessidade de provas? Elas só fariam acentuar nosso ceticismo. É melhor acreditar sem provas que concordar com frágeis demonstrações. Quanto mais nossa crença é absurda, mais ela testemunha nossa virtude moral.
E então lendas, fábulas, mitos se misturam. A distinção entre o verdadeiro e o falso, entre o verossímil e o absurdo, entre a razão e a loucura, não existem mais. Não há mais inverossimilhanças, absurdos nem loucuras. Tudo é sagrado.
Minerva surgiu inteiramente armada da fronte de Júpiter que Vulcano, o ferreiro, abriu com um golpe de machado. Júpiter transformou-se em chuva de ouro para seduzir Danae; em touro, para raptar Europa. Todas as manhãs, Apolo atrela quatro cavalos a seu carro para arrastar o sol atrás dele. Noé reuniu, numa imensa arca, todos os animais da criação. Eva conversou muito intimamente com uma serpente que a fez comer uma maçã. Balaão manteve uma conversação de alta filosofia com um asno. A mulher de Lot transformou-se numa estátua de sal, como a ninfa Dafne, num loureiro rosa (o que é, aliás, mais poético). Jonas, engolido por uma baleia, aí permaneceu três dias e três noites. Sansão, apenas com um maxilar de asno, demoliu trinta mil filisteus. Contra Vishnu, mil vezes mil anjos se revoltaram, e o perdão não lhes é concedido senão quando, para purificar-se, passam mil vezes pelos corpos de mil animais. Cérbero é o cão de três cabeças que guarda dos infernos. Felizmente pode-se apaziguá-lo atirando-lhe grandes pães de farinha. De acordo com os gregos, Atlas sustenta o mundo sobre os ombros; mas, de acordo com os indianos, a terra repousa sobre o casco de uma tartaruga, a menos que não seja sobre o dorso de um elefante (porque os exegetas da Índia não estão de acordo sobre esse ponto). Daniel conversou com leões famintos que deveriam despedaçá-lo e o fogo não tinha poder sobre ele; mais feliz que Hércules, devorado, − ainda que Deus, − pela túnica de Nessus e pelo fogo da fogueira. Milhares de lótus brotam do umbigo de Vichnou. Brahma saiu de um ovo que o Senhor havia chocado durante três mil milhões de anos. Buda nasceu de uma virgem, antes do Cristo e como o Cristo. Maomé foi carregado para o céu por um tufo de seus cabelos e, sobre a terra, o anjo Gabriel aportava-lhe, lá de cima, folha por folha, as provas manuscritas do Corão (com boa tiragem, sem dúvida). Jeová fez recuar o Mar Vermelho, e Josué deteve o Sol. Cinco pequenos pães aumentaram para cinco mil pequenos pães e a água de Canaã foi transformada em vinho. Lázaro, ainda que morto e enterrado, ressuscitou no terceiro dia. Jesus expulsou os demônios de um punhado de porcos que foram imediatamente afogar-se num rio. E sempre existiu um Anjo do mal, Satan, Ariman, Belzebu ou Plutão que, muito corajosamente lutaram, seja pugilato, seja boxe, seja com armas de cavalaria, contra o próprio Deus. Mas, por felicidade, o Anjo mau tem constantemente, após duros combates, terminado por ser vencido.
E eu falo aqui apenas de coisas acontecidas com as personalidades divinas, porque os servidores da divindade, levitas, santos, faquires, profetas, bonzos têm realizado muitas outras proezas mais singulares que aquelas de seus patrões. Talvez hoje fossem eles ainda capazes de perpetrar novas, caso o ceticismo perverso de nosso tempo não tornasse cada dia mais difícil a divulgação de um milagre.
As crenças infantis engendram práticas de mesma natureza. Os romanos e os gregos consultavam as entranhas das vítimas ou o vôo dos pássaros. A cor, o volume e a forma do fígado forneciam sinais fatídicos que revelavam o amanhã, e o povo acreditava nisso firmemente, ainda que os augúrios não pudessem sem apreciados sem risos. A água do batismo basta para lavar todos os pecados. Uma hóstia consagrada, quer dizer, um pequeno pedaço de massa sobre a qual palavras fatídicas são pronunciadas por um tonsurado, é o Deus do céu e da terra... sim, verdadeiramente, Deus todo inteiro: corpo, espírito e sangue; porque Deus, neste caso, tem sangue. Os mortos, depois da morte, manter-se-ão em paraísos variados. Ora eles beberão copos de hidromel, ora gozarão de copiosas dançarinas orientais; ora formarão cortejo com legiões de anjos diáfanos, Tronos, Dominações, Glórias, munidos de harpas sonoras. Da mesma forma, todos os mortos se erguerão no Vale de Josafá ao som retumbante de um imenso clarim, a menos que eles não migrem, passando, de animal em animal, por uma série de transformações sucessivas, lagartas, crocodilos, gaviões, asnos e macacos. Quanto a Alá, ele reserva toda sua benevolência àqueles que passarem por uma frágil ponte suspensa acima de um abismo.
O conjunto dessas religiões nas quais os homens acreditaram e acreditam ainda é de tal modo lamentável, que qualquer indivíduo dotado de razão só pode sorrir disso. Mas ele deve contentar-se em sorrir, e seria muito louco se tentasse combater esses erros. De que serviria? Todos os crentes, quer dizer, aqueles cegados por uma inacreditável credulidade, têm sua opinião feita, e tão bem feita, que demonstração alguma abalaria sua fé tenaz. Não tentem lhes provar que o número 1 não é o número 3, que lótus não nascem de um umbigo, que um asno não fala hebraico com seu dono e que Cócito não passou sete vezes ao redor da porta dos infernos! Não se dêem a esse trabalho! Não desperdicem seu tempo nem suas palavras! Calem-se!
Mas, ao menos, imolando a razão deles mesmos, que os crentes não nos falem de sua razão. Que eles não inventem teologias tediosas! Que eles não nos fabriquem grossos livros indigestos para apoiar sua fé. O cameleiro de Meca, que crê em Alá e em Maomé, seu profeta, não se embaraça nessas argúcias escolásticas. Ele diz muito simplesmente “Alá é Deus, e Maomé é seu profeta.” Eis toda a sua ciência. E ele fere com seu chicote ou sua faca o ímpio que não crê nem em Alá nem em Maomé!...
O cameleiro de Meca é muito mais sábio, ele sozinho, que todos os teólogos do Ocidente.
Não entrarei, pois, em nenhuma discussão religiosa, de sorte que pessoa alguma me poderá reprovar haver abalado a fé tradicional de minhas avós. Contentar-me-ei em sinalar uma estatística estarrecedora, muito dolorosa para nossa pobre intelectualidade humana.
Desde que mundo existe, nele viveram perto de seiscentos milhões de seres humanos. Pode-se admitir que houve, em números redondos, cem milhões de hindus, cem milhões de pagãos diversos, cem milhões de budistas, cem milhões de muçulmanos, cem milhões de católicos, cem milhões de protestantes. Ora, feito isso, se eu não me engano, seis religiões bem distintas, e não é possível que todas essas religiões sejam verdadeiras. Existem ao menos cinco falsas entre as seis.
Se, pois, colocando melhor as coisas, existir uma entre as seis que seja verdadeira e autêntica − tudo é possível − não permanece menos seguro, evidente, incontestável, que as cinco outras são falsas e, consequentemente, que cinco sextos da humanidade levaram, e ainda hoje levam, uma existência falseada em sua base por um terrível e ridículo erro. Os cinco sextos da humanidade foram e têm sido absolutamente estúpidos.
Eis uma demonstração cujo rigor matemático é impecável.

Charles Richet
Traduzido de O Homem Estúpido