8 de fevereiro de 2009

Os Animais

A ingratidão do homem para com os animais é ainda mais cruel do que para com as árvores. Mesmo o termo ingratidão não é de todo exato. Eu deveria dizer imprevidência, crueldade e sempre estupidez.
Para dizer a verdade, a palavra que melhor convém aqui é uma palavra alemã que responde, sem dúvida, − pois que reina na língua alemã, − ao espírito alemão. A Schadenfreude, quer dizer, a alegria de fazer o mal. Felizmente este substantivo não tem equivalente na nossa língua francesa.
Ainda que Schadenfreude seja uma palavra alemã, eu não cuidaria de acreditá-la reservada a tal ou qual povo. Entre todos os homens, mesmo aqueles que não são alemães, em graus diversos encontra-se o amor pelo mal, o prazer da destruição, o ardor brutal contra seres inocentes e inofensivos.
Na Espanha, a grande paixão, que é devoradora, que absorve tudo, que faz calar todas as querelas, políticas, sociais, religiosas, familiares, são as touradas. Um touro adquirido a alto preço para este dia de festa é levado à arena. Então, cercado de inimigos covardes, cujas armas são irresistíveis, ele vai propiciar o longo espetáculo de seu sofrimento e de sua morte, morte dramática que rejubila e inflama todo um povo. Primeiro ele se recusa, magnânimo, ao combate, mas o homem não lhe permite ser magnânimo. Ele é provocado por espetadas que fazem correr seu sangue e o estimulam a uma cólera justa. Contra ele, são conduzidos cavalos que ele fere a chifradas. A luta desigual prossegue até que, sangrento, esgotado, ele cai, lançando um olhar de angústia contra seus carrascos.
Enfim, o sacrificador chega, bem protegido por um cortejo imponente de banderilleros e, quando o pobre animal não tem mais que um resto de vida, o toureiro a liquida. Então o delírio da multidão não se contém mais. Ela urra, sapateia... Esta agonia de um nobre animal é o mais glorioso prazer que ela inventou.
Em outros países, lança-se contra um cervo, − esse corredor gracioso, que foi outrora o ornamento de nossas florestas, − uma tropa de cães ávidos. Senhoras bem arrumadas, senhores vestidos de vermelho, conduzem a caça. Que alegria quando, esgotado pela corrida desenfreada, tremendo de angústia, de fadiga, de terror, o infeliz ser é apanhado por uma matilha feroz que o devora ainda vivo!... E é uma honra insigne poder dar-lhe então, sem perigo, o golpe mortal!
Adiante ainda, são os pombos, esses seres de instintos misteriosos e profundos, tão alegres, tão ternos… Se lhes fazem cair sob os golpes dos caçadores, − caçadores ou assassinos, − e os pobres pássaros vão às dúzias, − a cem metros do campo de tiro, desplumados, aviltados, sangrando, − expiar, por uma agonia cruel, a glória de haverem sido feitos de alvo pelo homem.
É verdade que o homem poderia adotar outros alvos, igualmente aptos a provar sua destreza: bolas de vidro projetadas por um aparelho automático! Mas essas bolas de vidro não têm vida! Um pombo vive! Um ser a matar! É bem mais divertido!
Em todas as aldeias, indígenas, mulheres, velhos e crianças, obstinam-se contra pequenos pássaros.
Para capturá-los, não há esforços que eles não empreguem.
Armadilhas, alçapões, ciladas, iscas, fogo. Ora, esses pequenos pássaros são uma minúscula porção de carne. Seriam necessárias três dezenas desses animaizinhos para satisfazer a gula de um comedor medíocre. Do ponto de vista alimentar, é menos que nada. E por esta parcela de alimento todos os aldeões de todos os países sacrificam milhares de seres, os mais encantadores da natureza, toutinegras, papa-figos, tentilhões, pastorinhas, hortulanas, verdelhões, reizinhos, rouxinóis, cujos cantos alados nos poderiam extasiar, se não fôssemos selvagens. Que inexplicável estupidez torcer o pescoço de um desses pequenos seres, pouco ferozes, que nos seguem com um olhar espiritual e amigo, quando passeamos pela floresta; que saltam de galho em galho, brincando diante de nós; que destroem o verme e os animais nocivos, que lançam suas cores e suas canções em nossas vidas fastigiosas.
As crianças atiram pedras nos ninhos e sobem nas árvores para destruí-los. O mais pobre camponês tem um fuzil para matá-los; cada habitante do vilarejo os põem na gaiola. Em certos países, leva-se a crueldade a ponto de perfurar os olhos de uma avezinha cativa, para que ela cante com toda força e atraia, com seu canto, suas irmãs em direção à pérfida armadilha. Que alegria ter, numa bela manhã de outono, presas num saco, dezenas dessas adoráveis pequenas vítimas! Não para que se produza uma insuficiente refeição, mas para que se dê pleno curso ao amor à destruição. A Schadenfreude continua.
Tentou-se erradicar essas matanças inúteis.
Para quê? Que pode valer um decreto municipal contra a Schadenfreude?
Havia, outrora, na América do Norte, magníficos rebanhos de bisões. A caça fez-se aí apaixonante, porque ela dava a aparência do perigo, o que é delicioso. E então, contra esses infelizes bisões, o homem, provido de armas muito poderosas, organizou batidas tão mortais que os bisões desapareceram.
Do mesmo modo, aniquilaram-se, nos mares gelados dos Pólos, as baleias. Assim, nas margens do Pacífico, inocentes legiões de focas em cuja carnificina o governo acreditou, − tarde demais, porém, − ser necessário intervir. O mal estava feito. As focas vão desaparecer.
E eis como, graças ao furor destrutivo do homem, perecem belas espécies animais!
Uma espécie animal que se extingue! Que sacrilégio!
Nenhuma força, nem humana nem divina, poderá mais fazê-la reaparecer. Terminou, terminou para sempre!
Da mesma forma podemos nós prever que logo o homem terá conseguido aniquilar a maior parte das admiráveis formas vivas que enfeitam a terra. Cupidez e estupidez juntas! Porque, assim como o avaro mata a galinha dos ovos de ouro, o homem será, por sua imprevidência, arruinado sem esperança.
O futuro que o homem prepara para si é tão pouco recreativo, tão pouco elegante. Em face de animais vivos, − à parte os insetos malfazejos que continuarão a pulular, − nós não conheceremos mais que as espécies domésticas: gatos, cachorros, cavalos, asnos, vacas, ovelhas, cabras, porcos, galinhas, cisnes, galinhas-do-mato, patos, gansas, perus. A visão e o olfato poderão satisfazer-se amplamente nessas pocilgas, nessas estrebarias, nesses currais, nesses imensos estábulos. Talvez, para o prazer da caça, deixar-se-ão sobreviver algumas perdizes, alguns coelhos, alguns cabritos, algumas lebres. Mas isso será ainda criação doméstica, porque os faisões e as perdizes se tornarão animais de galinheiro.
Então, os tratados de zoologia serão apenas tratados de paleontologia. Se, como é possível, os bombardeios não destruírem todas os nossos museus de História Natural e todos os nossos zoológicos, conheceremos ainda, mas apenas por espécimes arruinados por vermes, ou pelos esqueletos, os macacos, os elefantes, as girafas, os ursos, ao antílopes, as zebras, as focas, as avestruzes, os cangurus, os castores, os papagaios... Nós os teremos, e vamos persegui-los, ainda que só reste deles um único com vida.
A toda parte o homem traz a morte. Ele chega ao pólo, às regiões menos hospitaleiras do globo, e ele encontra colônias de pinguins, estranhos animais que resistem a esses climas terríveis. Mas, se o homem continuar a querer visitar os pólos, as colônias de pinguins não existirão mais amanhã, a não ser em fotografias para os cinemas.
Em qualquer ponto do planeta onde ele coloque os pés, o homem se põe a destruir, com obstinado afinco, tudo aquilo que está vivo. Ele mata sem motivo e sem escusa. Todo o atavismo do bruto que está nele se revela. E ele mata. Ele mata sempre. Que o animal seja belo, elegante, doce, pouco lhe importa! Está vivo! Matemos primeiro. E ele mata!
Joseph de Maistre achou admirável esse instinto do homem.
E como a espécie humana é mais forte e mais numerosa, a resistência das espécies animais é impossível. Elas fogem diante do homem, mas o homem as persegue em seus mais seguros refúgios. Pelo ferro e pelo fogo, assim como pela astúcia e pelo veneno, ele destrói tudo. Cada indivíduo humano parece se entregar a um dever, um dever inepto e cruel, de aniquilar alguns animais a mais. Não é ele o Rei na criação? E a característica da realeza não é a de dar prova de força, impor sua dominação e sua paz, pax humana?
Ubi solitudinem facit, pacem appellat. Fazem um deserto, e chamam de paz.
Seguramente eu não levo o respeito às formas animais até lamentar o fim dos animais nocivos. O lobo desapareceu da Europa, e é bom. Na África, como a águia, como o abutre, o leão se faz cada vez mais raro. O crocodilo, o caimão, o hipopótamo, o rinoceronte, recuam diante de nossas carabinas, e logo serão representados apenas por alguns espécimes que os jardins zoológicos disputarão a preço de ouro. Seja! Eu não me entristecerei com a partida desses seres malfazejos. Mas não me impedirão de lamentar o urso, este animal sagaz, astuto, curioso, inteligente, raramente carnívoro. Eu lamentarei mesmo os macacos, especialmente os macacos antropóides, o doce e melancólico orangotango, o chimpanzé, ágil e espirituoso (tão próximo da espécie humana), até mesmo o gorila feroz, tornado tão raro hoje em dia que não resta dele mais que uma dezena de exemplares. Eu lamentarei, sobretudo, o elefante, cuja maravilhosa inteligência ultrapassa − e ainda não se está bem seguro disso − àquela do homem estúpido.
Se realmente o homem quisesse justificar sua realeza, ele deveria atacar somente os seres que lhe causam dano. Ele exerceria sua ciência de caçador e de esfolador contra os tigres que devastam a Índia, contra as serpentes venenosas que ele não fez desaparecer ainda, mesmo numa pequena ilha como a Martinica. Ele se empenharia, sobretudo, contra os insetos pérfidos, tais como moscas e mosquitos propagadores de doenças, contra os parasitas microbianos que infectam a vida de animais e vegetais. Mas fale de micróbios a um caçador. Ele rirá diante do seu nariz. Existe glória e proveito em matar uma baleia, um elefante, uma avestruz, até mesmo uma perdiz ou uma cotovia. É bem melhor que impedir a multiplicação de mil milhões de micróbios infecciosos.
Aliás, eu já disse e repito ainda, eu não sou de modo algum um apóstolo. Eu não me atenho a fazer prosélitos. Minha cegueira não chega até acreditar que a indignação sirva para alguma coisa. Ao contrário, estou solidamente convencido de que não se desviará o curso da fúria humana desencadeada.
Feroz e estúpida, irresistivelmente estúpida e feroz, dominada pela sede de destruição, a espécie humana realizará o vazio em torno dela. Certamente ela acabará por reinar, mas será sem prestígio, sobre um globo nu, do qual os campos de beterrabas, canteiros de couves, pocilgas e galinheiros serão os únicos enfeites.

Da obra O Homem Estúpido
Charles Richet
Tradução : Maristela Bleggi Tomasini