27 de fevereiro de 2009

Pele de Asno

Tarde de sexta-feira, deveres cumpridos, telefone sossegado e na paz da 407. Nada melhor que percorrer as minhas estantes e empoeirar as mãos. Vadiando pelos livros, abro Pele de Asno de Balzac e reencontro tantas passagens que sublinhei quando pela primeira vez li este estranho romance místico do incomparável gênio. Ah! Ali diz que um homem não é inteiramente miserável quando ele é supersticioso, porque uma superstição é freqüentemente uma esperança...
Como é bom marcar os livros tão amados, anotar as suas margens, grifar palavras, distribuir setas e exclamações. Eu me encontro comigo mesma quando revejo essas passagens destacadas, como se uma secreta sabedoria me fizesse ali postar recados para mim mesma. Tempos depois, encontrar os traços de uma inspiração, aviso ou promessa. Acho que hoje o ocaso me trouxe justamente a este livro, porque foi ele o que, não sem dificuldade, li durante um carnaval de repouso forçado há uns quatro anos. Nele há a descrição de um velho. E de um talismã. Procuro. Mas encontro outra coisa no capítulo dedicado à mulher sem coração, mulher que descubro descrita pelo personagem que escreve na primeira pessoa: Ela me recebe com esta fria polidez que dá aos gestos e às palavras a aparência de um insulto. Ah! Não era isso. Hoje as mulheres ficaram para Nietzsche aqui nos Ácaros. Queria encontrar era a descrição do velho antiquário onde a misteriosa pele de asno aparece no romance. Encontro.
Balzac criou-o seco e magro, vestiu-o com uma roupa de veludo negro fechada por cordão de seda preso em torno dos rins. Sobre a cabeça, uma boina também de veludo negro, da qual escapavam mechas de cabelo branco. Tinha ele uma fineza de inquisidor. Era impossível enganá-lo, pois parecia ter o dom de surpreender os pensamentos no fundo dos mais discretos corações. Assegura-nos Balzac que, ao olharmos para este eremita, encontraríamos nele a tranquilidade de um Deus que tudo vê, ou a força orgulhosa de um homem que viu tudo. O misterioso talismã impressiona. O velho explica que a indústria do levante tem segredos que lhe são particulares.
Na pele havia gravada, em caracteres de escrita oriental, esta estranha passagem, disposta com destaque em forma de um triângulo invertido: SE TU ME POSSUÍRES, POSSUIRÁS TUDO. MAS TUA VIDA ME PERTENCERÁ. DEUS O QUIS ASSIM. DESEJA, E TEUS DESEJOS SERÃO REALIZADOS. MAS REGRA TEUS SONHOS PELA TUA VIDA. ELA ESTÁ AÍ. A CADA QUERER, ENCURTAREI TEUS DIAS. TU ME QUERES? TOMA-ME. DEUS TE CONCEDERÁ. SEJA!
O romance prossegue, contando-nos uma das mais belas histórias sobre a realização mágica de nossos desejos, ― magia da qual todos somos capazes, ― sobre poder e realização que aparecem numa trama aparentemente comum que vem, todavia, permeada de mistérios, romance e estranhas coincidências. Pertenceremos a nós mesmos ou aos nossos desejos? Essa tocante história é uma das mais geniais análises do querer e da ousadia das realizações. Da sabedoria que daí resulta, aprendizado silencioso e profundo.
Quanto sou grata à generosidade de Balzac. Tenho a nítida sensação de que ele, eternamente presente em sua obra, me inspira e me concede ainda o dom de poder admirá-lo.