21 de novembro de 2008

Bertrand e seus Ensaios Impopulares


Desde que a evolução ficou na moda, a glorificação do Homem adquiriu nova forma. Dizem-nos que a evolução foi guiada por um grande Propósito: durante os milhões de anos em que éramos limo, ou trilobites, durante as idades dos dinossauros, dos fetos gigantes, das abelhas e das flores silvestres, Deus se achava preparando o Grande Clímax. Por fim, na plenitude do tempo, Ele produziu o homem, incluindo tais espécimes como Nero, Calígula, Hitler e Mussolini, cuja glória transcendente justificava o longo e penoso processo. De minha parte, acho mesmo a condenação eterna menos incrível e ridícula, do que esta precária e impotente conclusão que nos convidam a admirar como o esforço supremo da Onipotência. E se Deus é de fato onipotente, por que razão não teria ele produzido esse glorioso resultado sem esse longo e tedioso prólogo? (p. 108/109). RUSSEL, Bertrand. Ensaios Impopulares. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1956.

19 de novembro de 2008

AS CARTAS VIII

Carta de Francisco para Maria.
Sem data.

Maria,
A paciência é o mais difícil dos heroísmos, o heroísmo constante, quotidiano. Isso nos ensina, com profunda sabedoria, numa lição cheia de verdade, o pensador francês Maxime de Champ. E, ao mesmo tempo, inspira-nos esse heroísmo, mostrando-nos, a traços firmes e claros, o espetáculo da vida, o conflito eterno dos seres, a luta silenciosa do bem e do mal. Este aparece com a maior freqüência que aquele. É uma conseqüência natural e lógica da própria luta em que os homens se empenham constante e eternamente, acumulando na sua alma um patrimônio de ódios, vinganças e maldades.
Por isso, como diz Anatole, “é necessário saber sofrer”, porque a ciência da dor é a única ciência da vida.
E a criatura humana aprende a sofrer somente quando atinge a esse estado que eu chamo divino, de paciência, depois de haver sofrido com resignação toda gama pungente das dores deste mundo.

Vieram-me ao pensamento essas breves considerações, porque um homem, perverso e infeliz, e a quem dediquei, há até bem pouco tempo, grande parte da minha afetividade, acaba de projetar na minha vida a amargura de um mal, felizmente reparável, por ser apenas material. E é esse homem que me impede de ir visitar-te... Saberás o porquê mais tarde.
Mas, eu, que já aprendi a sofrer, sei perdoar. E perdoei-o. Perdoei-o como se deve perdoar, com o mais nobre e verdadeiro perdão: esquecendo o mal produzido.
Para mim, o homem é tão ínfimo, tão miserável, que o acho até indigno de receber das almas superiores um gesto verberativo, uma atitude condenatória aos seus atos de torpeza. O homem superior teria de descer demasiado. E eles não merecem tal honra. Eles merecem apenas um piedoso e completo perdão, que é o desprezo superior dos espíritos nobres.

Não sei se ainda esta semana poderei gozar o encanto doce e perfumado do teu convívio, dentro da beleza pagã e luminosa da natureza, nesse recanto delicioso do nosso Estúdio. Correr contigo, nas manhãs radiosas de sol, pelos campos úmidos, a aspirar o cheiro ocre e sadio das resinas campestres. Embriagar-me, perto de ti, à hora fauniana do meio-dia, na preguiça sensual do repouso. E, à tarde, quando o sol pintasse de ametista o horizonte, contemplar o crepúsculo do dia através do crepúsculo dos teus olhos, cantando na minha lira de Apolo a imortalidade do nosso sonho. E depois, trêmulos, amorosos, debaixo da palidez clorótica da lua, sonharmos, sentindo na carne a carícia de seda dos dedos invisíveis da noite.

Que doçura, que sonho, que poesia, meu amor, meu amor, meu grande amor...
Do teu Francisco.

Observações:Esta carta me parece ser bem posterior àquelas postadas até agora. Espantoso como Francisco não consegue esconder a imensa frustração que experimentou ao perceber que não poderia rever sua Maria, supostamente, por conta de alguém que não cumpriu com a palavra empenha. Conquanto queira mostrar-se superior, esforçando-se por perdoar o tal homem perverso, Francisco não esconde o sentimento de desprezo e repulsa que filosoficamente nutre contra quem o impediu de estar com sua amada. Quando leio coisas assim, viajo no tempo. E fico eu mesma imaginando o que terá sido um romance vivido dessa forma, entre personagens reais que habitaram Porto Alegre há tanto tempo.

Paulo Mantegazza (1831-1910)



Todos estes livros foram escritos pelo adorável Mantegazza, psicólogo italiano que foi amigo de Lombroso. Ele escrevia deliciosamente. Estas passagens pertencencem à sua Hygiene do Amor, de 1903.

Nada há de mais caprichoso, nem de mais variável, que a necessidade de amar nos diversos indivíduos. Depois do cérebro não há nada mais variável que o testículo do homem.
(p. 111).


O homem consome sempre nas batalhas d'amor uma energia muito superior à que despende a mulher, e por isso a economia de suas forças é muito mais necessária a ele (p.196).

Dizem todos os autores que a hora da manhã é a mais própícia para os torneios amorosos, e isso é exato; e dizem muitos que, logo depois do jantar, a hora é mal escolhida, e isso também é verdade, especialmente para os homens obesos e que têm disposições para as congestões cerebrais. Há, porém, uma coisa mais verdadeira ainda, e que é o momento mais oportuno para sacrificar a Vênus é aquele em que os desejos são mais irresistíveis (p. 220).

15 de novembro de 2008

Herbert Spencer, fragmentos biográficos, idéias e críticas

Aliás, a propósito...
Para brincar com as tais regras às quais me referi na postagem anterior, eu mesma me dei ao trabalho de escrever um artigo do tipo supostamente respeitável, ou seja, observando todas as tais regras que ditavam espaços, margens, fontes, citações, bibliografia e sei lá o que mais. Consegui não surtar violentamente e, fato é que encontrei o tal artigo que mereceu terríveis críticas, a ponto de ficar metido numa pasta que escapou à ação da tecla DELET por muito pouco. Li rapidamente hoje à tarde as dezessete páginas inéditas do Herbert Spencer, fragmentos biográficos, idéias e críticas, e confesso que experimentei um certo prazer perverso ao perceber a maneira como desenvolvi o assunto, destacando no que os fundamentos sobre os quais Spencer estabeleceu seu pensamento foram criticados por Russel, Bergson e Tarde.
Bem, agora é do mundo.
Está ali no link das minhas traduções, artigos, etc.

Bertrand Russell (1872-1970)

O apaixonante Bertrand Russel deveria ser lido diariamente para tonificar nossos cérebros. Ele morreu velhinho, escrevendo com vigor e, sobretudo, com sua costumeira e admirável irreverência, coisa que hoje gelaria de terror alguns acadêmicos, chatos ao extremo, que diuturnamente devem dedicar todos os seus esforços para obterem, receio que com sucesso, o engessamento completo da expressão, submissa a fórmulas que aniquilam a individualidade pelo emprego de regras impostas à edição de textos e artigos científicos.
Gosto, então, em contrapartida, de mostrar o lado maroto de homens que, — ninguém duvida, contribuíram para com a criação da própria ciência, — homens que jamais deixaram de mostrar-se em seus textos, descobrindo-se perante o leitor. Spencer, — que até os trinta anos não tinha grande noção do que era filosofia — Bergson, Gabriel Tarde e Bertrand Russel, todos presentes na minha biblioteca e neste blog, mostram essa força em suas obras, e creio que é justamente aí que reside o fato de elas nos encantarem até hoje, não obstante sua alegada obsolescência.
Essas passagens são de Bertrand Russel:

...the existence of universe is an empirical fact. It is true that if the word did not exist, logic-books would not exist; but the existence of logic-books is not one of the premises of logic, nor can it be inferred from any proposition that has a right to be in a logic-book.
Para ele, foi a presunção humana, “chocada com a revelação de seu parentesco com o macaco”, que encontrou um meio de se afirmar: “esse meio é a filosofia da evolução. O processo que levou da ameba ao Homem pareceu aos filósofos um progresso patente — conquanto não se saiba se a ameba concorda com essa opinião”.

Não, ele também não foi nada complacente com os filósofos. Na conferência “Herbert Spencer”, Oxford, 1914, publicada na obra referida sob o título Sobre o método científico em filosofia, afirmou: “Dizem-nos que a vida orgânica se desenvolveu gradualmente dos protozoários ao filósofo, desenvolvimento que nos garantem ser indubitável melhora. Infelizmente, é o filósofo, não os protozoários, que o afirmam...”.

Em que pese o darwinismo ter seguidores do quilate de Huxley, Russell fez ressaltar a grande polêmica gerada em torno da questão atinente a um ancestral comum entre homens e símios. “Eu desconfio — disse ele — que tal suposição possa ofender aos macacos, mas, em todo caso, pouca gente se aborrece com isso nos dias de hoje”.

“De um modo qualquer — diz ele — sem afirmativa explícita, insinua-se a garantia de que o futuro, embora não possamos prevê-lo, será melhor que o passado ou o presente: o leitor é como a criança que espera um doce porque lhe disseram que abra a boca e feche os olhos”.

“O escravo é condenado a adorar o Tempo, o Destino e a Morte, porque são maiores do que tudo o que ele encontra em si mesmo, e porque todos os seus pensamentos são de coisas que essas forças devoram”.

Herbert Spencer (1820-1903)

Um pouco mais deste solteirão encantador, que muitos consideravam mal-humorado e irreligioso:

Ainda que me acontecesse atirar pedras em pássaros por esse amor à brincadeira no qual a destreza manifestada constitui o principal prazer, todavia, em todos os casos em que havia aí imposição de sofrimento sem o elemento da habilidade, não apenas eu me abstinha, mas ainda protestava contra os atos de meus companheiros, opondo-me sempre a que, gratuitamente, se fizesse mal aos animais e a que se divertissem, por exemplo, torturando insetos.

É-me bastante amar o bilhar, e vejo como um motivo suficiente gozar esse prazer. Há muito tempo, elevo-me deliberadamente contra este ascetismo que considera como um pecado o fato de fazer-se uma coisa apenas pelo prazer de fazê-la; tenho pretendido sempre que, enquanto ninguém sofrer por isso, enquanto nós mesmos não sofrermos mais tarde, e enquanto se cumprir os diferentes deveres, a procura do prazer pelo prazer é perfeitamente legítima e dispensa escusa.

É um erro em toda a amplitude da nossa aquisição dos conhecimentos. Porque o espírito, como o corpo, não pode assimilar mais do que uma certa porção; e se o sobrecarregarem com mais fatos do que aqueles que ele pode assimilar, bem depressa serão rejeitados: em vez de contribuírem para a edificação da fábrica intelectual, são logo rejeitados pela memória depois de passarem pelo exame a que foram submetidos.

Não são os conhecimentos amontoados, como uma gordura intelectual, que têm valor; mas aqueles que se tranformam em músculo intelectual.

Um governo sem eqüidade não pode sustentar-se senão que pelo apoio de um povo proporcionalmente falto de eqüidade em seus sentimentos e em seus atos. A injustiça não pode reinar, se a comunidade não fornece uma certa quantidade de agentes injustos. Um tirano não tiraniza um povo senão que sob a condição de que esse povo seja bastante maldoso para fornecer-lhe soldados que lutarão por sua tirania e que manterão seus irmãos na escravidão. Uma classe não pode manter sua supremacia comprando votos, se não se encontrarem multidões de eleitores para vender seu voto. E assim em toda parte e em todos os escalões: a má conduta daqueles que estão no poder é correlativa à má conduta daqueles sobre quem se exerce o poder.

Vida e Pensamento de Ingenieros

Tenho observado um elevado número de acessos às postagens dedicadas a Ingenieros aqui no blog, o que me levou a mexer nos arquivos onde guardei material sobre este autor, na época em que trabalhava junto a uma editora que pretendia reeditar sua Criminologia. Encontrei um apanhado biográfico que, agora, está à disposição de todos, logo abaixo, na parte dedicada às minhas traduções, artigos, etc. Basta acessar o link Vida e Pensamento de Ingenieros.
Chamou-me atenção especialmente a oportunidade de divulgar um pouco mais as curiosas razões que levaram o autor a escrever sua famosa obra O Homem Medíocre, maliciosamente dedicada a um inimigo político que era ninguém menos que o Presidente da República à época. Por outro lado, também curioso o fato de Ingenieros ambicionar morrer cedo, o que efetivamente lhe aconteceu. Sempre disse que preferia morrer antes de envelhecer, e escreveu sobre isso, seja em As Forças Morais, seja no próprio Homem Medíocre, onde afirmou:
Há um momento em que se alcança a plenitude máxima; depois dessa época, é-se incapaz de progredir, logo soem advertirem-se os sintomas iniciais da decadência, o tremular da chama interior que se apaga. Quando o corpo se nega a servir a todas as nossas intenções e desejos, ou quando estes são medidos em previsão de fracassos possíveis, podemos afirmar que começou a velhice.Morto aos 45 anos, fica-se a pensar no quanto teria produzido se chegasse a ostentar as cãs que tanto repúdio e receio lhes causavam a ponto de escrever delas que seria avarentas, e avareza, uma árvore estéril: Se um avaro possuísse o sol, deixaria o universo às escuras, para evitar que o seu tesouro se gastasse.

14 de novembro de 2008

A Arte de Mentir

"O francês distingue duas formas de mentira: a mentira verdadeira, mensonge, que é a coisa que se diz mentindo, bastas vezes mesmo de pouca importância, e menterie, outra coisa não sendo senão uma ficção oriunda da volubilidade do espírito". (p.15)

13 de novembro de 2008

Espelho de Enganos, Teatro de Verdades...


Mais unhas há; mas as que temos visto neste Tratado bastam para as conhecermos todas e para entendermos quão perniciosas e desarrazoadas são. Ab unguibus Leo, diz o provérbio — pelas unhas se conhece o leão — e pelas mesmas se conhece o ladrão. Conhecidos assim bem todos os ladrões, suas unhas e artes, boas três tesouras vos dei, para lha's cortardes todas (p.313).

9 de novembro de 2008

Eugênia Grandet

Terrível condição do homem! Não há uma só de suas felicidades que não venha de uma ignorância qualquer. (p. 87)

Os avarentos não acreditam numa vida futura, o presente é tudo para eles. Esta reflexão joga uma horrível clareza sobre a época atual, onde, mais que em nenhum outro tempo, o dinheiro domina as leis, a política e os costumes. Intituições, livros, homens e doutrinas, tudo conspira para minar a crença em uma vida futura sobre a qual o edifício social se apóia há dezoito séculos. Agora o ataúde é uma transiçao pouco temida. O amanhã que nos esperava além do réquiem foi transposto para o presente. Chegar por todos os meios, legítimos ou não, ao paraíso terrestre do luxo e dos gozos vaidosos, petrificar seu coração e macerar-se o corpo à vista de posses passageiras, como sofria-se outrora o martírio da vida à vista de bens eternos, é o pensamento geral. Pensamento, aliás, escrito em toda parte, até nas leis que perguntam ao legislador: "Que pagas tu?" em lugar de dizer-lhe: "Que pensas tu?" Quando esta doutrina houver passado da burguesia ao povo, que acontecerá ao país? (p. 142)

6 de novembro de 2008

Vida e Obra de Ravaisson


Jean-Gaspar-Félix Laché Ravaisson nasceu em 23 de outubro de 1813 em Namur, então cidade francesa, sede administrativa do departamento de Sambre-et-Meuse. Seu pai, tesoureiro-pagador nesta cidade, era originário do Meio-Dia; Ravaisson é o nome de uma pequena região situada nas proximidades de Caylus, não distante de Montauban. A criança tinha um ano apenas, quando os eventos de 1814 forçaram a família a deixar Namur. Pouco tempo depois, ele perdia seu pai. Sua primeira educação foi dirigida por sua mãe e também por seu tio materno, Gaspard-Théodore Molien, do qual tomou o nome mais tarde. Numa carta datada de 1821, Molien escreve de seu pequeno sobrinho, então com a idade de oito anos: “Félix é um matemático completo, um antiquário, um historiador, tudo enfim”. Já se revelava na criança uma qualidade intelectual à qual deviam juntar-se, facilmente, muitas outras.

A filosofia grega, – diz Ravaisson, – explica primeiro todas as coisas por um elemento material: a água, o ar, o fogo ou alguma matéria indefinida. Dominada pela sensação, como o era no início a inteligência humana, ela não conhece outra intuição que não a intuição sensível nem outro aspecto das coisas que não a materialidade. Vieram então os pitagóricos e os platônicos que mostraram a insuficiência das explicações unicamente pela matéria, e tomaram por princípio os Números e as Idéias. Mas o progresso foi mais aparente que real. Com os números pitagóricos, com as idéias platônicas, está-se na abstração e, por sábia que seja a manipulação à qual se submetem esses elementos, permanece-se no abstrato. A inteligência, maravilhada pela simplificação que ela aporta ao estudo das coisas, em as agrupando sob idéias gerais, imagina, sem dúvida, penetrar através delas até a própria substância da qual as coisas são feitas. À medida que ela via mais longe na série de generalidades, acreditava elevar-se mais na escala das realidades. Mas o que ela toma por uma espiritualidade mais alta não é senão a crescente rarefação do ar que ela respira. Ela não vê que, quanto mais uma idéia é geral, mais ela é abstrata e vazia, e que, de abstração em abstração, de generalidade em generalidade, caminha-se para o nada. O mesmo vale ater-se aos dados dos sentidos, que não nos entregam, sem dúvida, senão uma parte da realidade, mas que nos deixam ao menos sobre o sólido terreno do real. Haveria outro caminho a seguir. Isso seria prolongar a visão do olho por uma visão do espírito. Isso seria, sem abandonar o domínio da intuição, quer dizer, das coisas reais, individuais, concretas, procurar, sob a intuição sensível, uma intuição intelectual. Isso seria, por um poderoso esforço de visão mental, atravessar o invólucro material das coisas e ir ler a fórmula, invisível ao olho, que desenrola e manifesta sua materialidade. Então apareceria a unidade que liga os seres uns aos outros, a unidade de um pensamento que nós veríamos, – da matéria bruta à planta, da planta ao animal, do animal ao homem, – reunir-se sob sua própria substância até que, de concentração em concentração, chegaríamos ao pensamento divino, que pensa todas as coisas e se pensa a si mesmo. Tal foi a doutrina de Aristóteles. Tal é a disciplina intelectual da qual ele forneceu a regra e o exemplo. Nesse sentido, Aristóteles é o fundador da metafísica e o iniciador de um certo método de pensar que é a própria Filosofia.

Mas não parece duvidoso que, do período compreendido entre 1835 e 1845, date o estudo mais aprofundado que ele fez da arte italiana da Renascença. E é ao mesmo período que se deve fazer remontar a influência que teve sobre ele o mestre que não cessou jamais de ser, aos seus olhos, a personificação mesma da arte: Leonardo da Vinci.

Há, no Tratado de Pintura de Leonardo da Vinci, uma página que Ravaisson gostava de citar. É aquela onde ele diz que o ser vivo se caracteriza pela linha ondulosa ou serpentina; que cada ser tem sua maneira própria de serpentear; e que o objetivo da arte é expressar esse serpenteamento individual.”O segredo da arte de desenhar é descobrir, em cada objeto, a maneira particular através da qual ele se dirige ao longo de toda sua extensão, tal como uma onda central que se desdobra em ondas superficiais, uma certa linha flexível que é como seu eixo gerador.” Esta linha pode, aliás, não ser nenhuma das linhas visíveis da figura. Ela não está mais aqui do que ali, mas ela dá a chave de tudo. Ela é menos percebida pelo olho que pensada pelo espírito. “A pintura, – dizia Leonardo da Vinci, – é coisa mental.” E acrescenta que é a alma que faz o corpo a sua imagem. A obra inteira do mestre poderia servir de comentário a essa frase. Detenhamo-nos perante o retrato de Monna Lisa ou mesmo diante daquele de Lucrezia Crivelli: não nos parece que as linhas visíveis da figura vão na direção de um centro virtual situado atrás da tela, onde se descobriria de um golpe, reunido numa só palavra, o segredo que nós jamais terminaríamos de ler, frase a frase, na enigmática fisionomia? É aí que o pintor está colocado. É desenvolvendo uma visão mental simples, concentrada neste ponto, que ele encontrou, traço por traço, o modelo que tinha sob os olhos, reproduzindo, à sua maneira, o esforço gerador da natureza.

A arte do pintor não consiste, pois, para Leonardo da Vinci, em detalhar cada um dos traços do modelo, para transportá-los à tela, reproduzindo, porção por porção, a materialidade. Ela não consiste, não mais, em figurar eu não sei que tipo impessoal e abstrato, onde o modelo que se vê e que se toca vem a dissolver-se numa vaga idealidade. A verdadeira arte visa a expressar a individualidade do modelo e, para isso, ela vai procurar, atrás das linhas que se vêem, o movimento que o olho não vê, atrás do próprio movimento, alguma coisa de mais secreta ainda, a intenção original, a aspiração fundamental da pessoa, pensamento simples que equivale à riqueza indefinida de formas e de cores.

Como não ser surpreendido pela semelhança entre esta estética de Leonardo da Vinci e a metafísica de Aristóteles, tal como Ravaisson a interpreta?

Fonte: Berson, Henri, La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Presses Universitaires de France, 1950, 27ª edição, Paris, 1950, Capítulo IX. A Vida e a Obra de Ravaisson, tradução parcial.

2 de novembro de 2008

Ambiente Acolhedor

Nesta prateleira onde está escrito São Paulo, bem embaixo, estavam duas edições muito interessantes e belíssimas: uma sobre o MASP e outra sobre a cidade de SP, seus palácios e as obras de arte que possui. Um verdadeiro catálogo. Essas duas, e ainda outras duas de outro sebo, ambas sobre arte, eu trouxe comigo. A propósito, tudo presente do Rogério.

Paraíso

Livraria Treze Listras. Um dos muitos corredores recheados de Traças, Ácaros & Cia.

Cinco Andares Repletos de Livros

Justamente isso. Em SP, na famosa Rua Aurora, fica um sebo de cinco andares (eu disse CINCO mesmo...) e mais um subsolo ainda. Dá pra imaginar? Tem literalmente de tudo por lá. Acho que nem preciso dizer como me senti num lugar desses, preciso? E olhem o charme do nome: LIVRARIA TREZE LISTRAS...

26 de outubro de 2008

A Dignidade

Os estóicos ensinavam os segredos da dignidade: contentar-se com o que tem, restringindo as próprias necessidades. Um homem livre não espera nada dos outros, nem precisa pedir. A felicidade que o dinheiro dá está em não ser obrigado a pensar nele: por ignorar este preceito, o avaro não é livre, nem feliz.
Os bens que temos são a base de nossa independência; os bens que desejamos são os anéis da corrente que nos liga à escravidão. A fortuna aumenta a liberdade dos espíritos cultos, e torna vergonhoso o ridículo dos papalvos. É suprema a indignidade dos que adulam tendo fortuna; esta os redimiria de todas as domesticidades, se não fossem escravos da vaidade.
Os únicos bens intangíveis são aqueles que se acumulam no cérebro e no coração; quando estes faltam, nenhum tesouro os substitui.

J. Ingenieros

O Hipócrita

Uma palavra do hipócrita basta para separar dois amigos, ou para distanciar dois amantes. Suas armas são poderosas, devido a serem invisíveis; com uma suspeita falsa, pode envenenar uma felicidade, destruir uma harmonia, quebrar uma concordância.

J. Ingenieros

AS CARTAS VII

Poesia de Francisco para Maria remetida em agosto de 1923
Ao teu ouvido, em surdina...
Teu perfil, pouco a pouco, suaviza-se
no ouro embaciado do crepúsculo.

O crepúsculo é um cofre de veludo,
onde teu perfil repousa,
no silêncio das horas...

Mística doçura envolve tudo...
Estremecem lágrimas no olhar das coisas...

E o crepúsculo, brandamente,
cobre de cinzas teu perfil,
no silêncio das horas...

Para todos os gostos...


René Worms (1869-1926)

Sociólogo francês nascido em Rennes em 1869. Auditor do Conselho de Estado, ensinou Direito em Caen (1897-1902) e no Instituto Comercial (1902). Ele fundou o Instituto Internacional de Sociologia. Suas obras filosóficas são: Précis de philosophie e Elements de philosophie scientifique (1891), um estudo sobre a moral de Espinoza, Morale de Spinoza (1892). Além de diversas obras sobre Direito e economia política, ele escreveu uma Philosophie des sciences sociales.
Fonte: Larousse du XXe. Siècle.
Mais aqui mesmo em René Worms

René Worms

Tarde,
As Transformaçoes do Direito

René Worms

A obra do Senhor Tarde sobre as transformações do direito[1] é um ensaio de sistemática jurídica. O zoólogo pode, ou examinar uma a uma as espécies, traçando a monografia de cada uma delas, ou seguir, no conjunto do reino animal, um ou mais órgãos, uma ou mais funções; do mesmo modo, o sociólogo pode, ou dar a descrição de uma nação isolada, ou ligar-se a uma ordem de fatos no conjunto das nações. O senhor Tarde escolheu a segunda via, e ligou-se primeiro à série de fatos que lhe são profissional e cientificamente os mais familiares: os fatos jurídicos. Seu livro, seguindo a própria ordem na qual são verdadeiramente desenvolvidas as matérias do direito, estuda sucessivamente a história do direito criminal, do processo, do regime de pessoas, do regime de bens, do direito das obrigações. Ele termina por dois capítulos sobre a doutrina do direito natural, e sobre as relações do direito e da sociologia. A idéia mestra desse livro é aquela que o autor já desenvolveu com talento em sua obra precedente: Les lois de l'imitation, e que ele próprio resumiu, aliás, nesta fórmula surpreendente: a diversidade, e não a unidade, está no coração das coisas. Ao contrário do senhor Spencer, (...) ele não crê em uma homogeneidade primitiva, da qual o heterogêneo teria saído ulteriormente pela diferenciação. Ele acredita, ao contrário, na originária heterogeneidade dos seres, na seqüência, mais ou menos aproximados uns dos outros pela imitação que faz o grande número das invenções de alguns. Também se ergue ele com força contra a teoria daqueles que crêem na identidade fundamental da evolução jurídica em todos os povos. Para ele, os processos desta evolução foram múltiplos e diversos. Cada grupo humano teve seu direito distinto na origem e não foi senão progressivamente que o direito se unificou, sob a ação de grupos que o haviam aperfeiçoado. Primitivamente, cada família formava um todo fechado, de onde nada transpirava para fora: tinha sua propriedade para si, ciumentamente fechada ao estrangeiro, seus contratos e seus delitos domésticos eram sancionados pela autoridade familial, tudo como teve ela, a família, suas tradições e seu culto. Progressivamente, a nação do direito amplia-se: admite-se que contrate, com os membros da família, aquele que não pertence a ela; em lugar vê-lo como um inimigo, — em relação ao qual tudo era primitivamente permitido, — aplicam-se a ele, em suas relações com os membros da família, as mesmas regras menos severas do direito penal familiar; mais tarde, depois que as famílias concluíram semelhantes pactos entre elas, admitiu-se beneficiar com o direito aquele que se situava fora dessas gentes fortemente hierarquizadas: o plebeu, o estrangeiro, o escravo; e terminou-se por ter a noção de uma justiça comum a toda humanidade, de um direito de todos os homens à liberdade, à equidade, à propriedade mesmo. Em suma, pois, foi o direito familial que, — em se generalizando, em se estendendo pouco a pouco por efeito da imitação e da simpatia, — engendrou o direito nacional, depois, o direito humano. Os historiadores da legislação romana objetarão, sem dúvida, que, segundo as idéias aceitas, não há propriamente como falar de direito no interior da gens, o pater familias, proprietário das pessoas e dos bens, regendo-a de acordo com sua vontade; e que, por conseqüência, é apenas nas relações interfamiliares que pôde nascer o direito. Todavia, a nosso sentir, o senhor Tarde poderia responder que esta concepção da gens não é absolutamente exata: mesmo na família romana antiga, havia um direito ao menos rudimentar: quando o pai, por exemplo, condenava seu filho à morte, ele não fazia senão uso do direito que tem o proprietário de destruir sua coisa, ele age como magistrado doméstico; e a prova é que ele busca o parecer de um consilium. Está-se, pois, autorizado a ver, no direito de família, a origem de todo direito.

Insistimos nesta idéia, porque ela nos pareceu a idéia mestra do livro de T. Lamentamos não dispor do espaço necessário para sinalar agora todos os detalhes curiosos, novos, sugestivos que pululam nesse livro. O autor indica com razão diferenças essenciais entre a história do direito grego e aquela do direito romano. Ele duvida muito de que o matriarcado haja, na origem, reinado em toda parte; mas é ir muito longe perguntar se “esse matriarcado tão famoso existiu”. Ele sinala, em nossa civilização francesa contemporânea, singulares sobrevivências de casamentos obrigatórios ou proibidos. A transformação da nobreza forneceu-lhe interessantes observações. A propriedade privada parece-lhe tão antiga quanto a propriedade coletiva; o comunismo de aldeia é posterior ao comunismo de família, o mir e a zadruga não remontam aos primeiros tempos da humanidade; as comunidades que se organizaram na Idade Média, as “comunas[2] juradas”, por exemplo, não foram senão que uma imitação dos conventos (capítulo IV). É falso que todos os povos tenham sido primeiro caçadores, depois pastores, depois agricultores. Conhecem-se povos onde a ordem desta evolução foi invertida, outros que jamais conheceram o estado pastoral. Não há mais uniformidade na evolução do direito de hereditariedade. Vê-se, com os progressos da civilização, recuar a idade da maioridade e elevar-se a duração da posse requerida para prescrever. Em matéria de obrigações, o contrato não é senão um derivado da declaração unilateral de vontade, que reaparece hoje e tende a limitar o domínio das obrigações contratuais. O direito natural não nasceu em Roma do comércio internacional, mas da filosofia, que generalizou, em as estendendo, as relações de todos os homens, as regras que governavam as relações dos cidadãos entre si. Jamais houve a fusão do jus naturale e do jus gentium. A idéia do direito natural encontra no senhor Tarde um contraditor encarniçado: ele declara-a pouco precisa e imprópria para guiar o legislador. Ao contrário, ele acentua, para a educação do jurista, a sociologia, da qual o direito não é, para ele, senão que um fragmento. Sem dúvida, como a linguagem (com a qual T. o compara muito engenhosamente) o direito “é o espelho integral da vida social”. Mas “é preciso estudá-lo como um simples ramo da sociologia, se quisermos compreendê-lo em sua realidade viva e completa”.

Eis algumas das concepções do autor. Elas podem, — nesta enumeração rápida que fizemos, — parecer um pouco chocantes e assaz mediocremente coerentes. Confessamos que, com a leitura do livro, um leitor superficial poderia ser tentado a fazer esta reprovação contra o autor mesmo. A idéia fundamental que tentamos destacar a toda hora, domina-o, todavia, e inspira-o em toda parte. A vivacidade, a originalidade do estilo vêm apenas tornar a leitura mais atraente e mais fácil.

O senhor Tarde acrescenta às suas idéias científicas algumas idéias de reformas que convocam a contradição. Ele persegue com seu ódio (aqui e em outras publicações) a instituição do júri: “o que existe de menos perfeito no mundo”, — escreve ele — “é o júri”. O direito à apelação não lhe parece menos contestável que contestado. Ele estima que “o processo ideal não implica necessariamente na existência de advogados e de meirinhos”. Ele não deposita maior confiança no dogma da dualidade das Câmaras, e encontra que não se deveria “poder fabricar leis, a não ser com a condição de apresentar, ao menos, as mesmas provas oficiais que se exigem dos juízes encarregados unicamente de aplicá-las”. Mesma independência de espírito à vista das teorias da ciência pura. No auge da corrente das idéias evolucionistas, e simpático, em suma, ao movimento geral que elas representam, T. guarda-se bem, no mínimo, de aceitá-las inteiramente feitas. Vimos mesmo que sua doutrina mestra faz antítese àquela de Spencer. Ele chega até a falar, em alguma parte, das “pretensas leis da evolução”, opondo-as às únicas verdadeiras leis, as “leis de causação”. E, todavia, à descoberta dessas leis de evolução, ele aporta o concurso mais eficaz, em destacando o critério que permite reconhecê-las. Para que a relação que une dois fenômenos sucessivos seja uma relação necessária, ou seja, uma lei, para que, em uma palavra, se possa afirmar que é nesse sentido que a evolução deveu se produzir, o que é preciso? É preciso — responde Tarde — que essa relação seja irreversível, critério que ele, mais de uma vez, aplicou com engenhosidade em seu livro. — Ei-nos aí bem adiantados, — responder-se-á; — a fórmula é evidente, e o que é evidente não nos ensina nada. — Mas as fórmulas da lógica aristotélica são evidentes, elas também, e é precisamente isso que faz sua força. Pode-se sustentar que elas não nos tenham ensinado nada? Quem sabe, — diremos nós, — se, no critério das leis de sucessão, não existe o gérmen de toda uma lógica nova, a lógica — não mais metafísica, à maneira de Hegel, — mas científica, da evolução?

Revue des livres. Tarde, Les Transformations du Droit, par René Worms. Extraído da Revue internationale de Sociologie, 1º. ano, n° 1, janeiro-fevereiro de 1893, p. 101-104. Disponível em Les Classiques des Sciences Sociales. Tradução: Maristela Bleggi Tomasini.
[1] Gabriel Tarde, Les Transformations du Droit. Paris, Félix Alcan (Bibliothèque de philosophie contemporaine), 1893 ; un vol. in-18, de 212 p.
[2] Chamavam-se comunas, na Idade Média, as cidades que haviam obtido por carta do Senhor um estatuto mais ou menos iberal, comportando uma certa autonomia, com jurisdição e finanças próprias. Larousse du XX Siècle, op. Cit. (N. da T.)