25 de junho de 2024

Bel-Ami de Maupassant: Gênero e Moralidade no Século XIX

 

Amo Maupassant. Simples assim. E amo com todos os exageros que podem caber em um elogio. Ele foi o mestre do conto, mas não deve nada a ninguém como romancista. Bel-Ami, primeiro romance escrito por Maupassant, publicado no jornal Gil Blas como folhetim em 1885, apresenta-nos uma das mais penetrantes análises do poder de sedução e de manipulação. O título, embora literalmente designe um “bom amigo” tem, no caso, uma dupla conotação não sem ironia.

O personagem Georges Duroy, bonito, dono de um ar desafiador e que bem lembraria o vilão dos romances populares, é apresentado em detalhes, objetivamente, em sua atuação, digamos, sedutora; e subjetivamente também, porque sabemos de seus pensamentos, uma vez que Maupassant nos mostra claramente quais os objetivos reais de alguém que é francamente dissimulado.

Georges Duroy mostra como fazer da sedução uma arma poderosa na busca de objetivos pessoais. Não se tratam, pois, de suas competências ou de suas qualidades. Caráter? Ele não tem nenhum e isso sequer o preocupa. O que importa é que ele faz parecer que tem. Comporta-se adequadamente. Estuda cada uma das pessoas de quem pretende alguma coisa, conhecendo suas fraquezas e suas ambições.

Ao longo da narrativa, testemunhamos Duroy envolvido em intricadas relações com outros personagens, especialmente quando são mulheres. Madame Madeleine Forestier e Clotilde de Marelle, por exemplo. A primeira, mulher de um amigo. Ela é jovem, loura, cheia de gentileza e de malícia. É bastante perspicaz. A segunda, baixinha e casada, mostra-se ambiciosa e, além de tudo, infiel ao amante. São tramas complexas, que ultrapassam a simplicidade de uma relação em que há claramente um culpado e uma vítima, pois, na dinâmica do romance, a ilicitude das relações contamina cada personagem. As relações acabam impregnadas de cinismo.

Importante referir também o envolvimento de Duroy com Madame Forestier, mais velha que ele, uma dama rica e distinta da sociedade. Ambos protagonizam uma cena memorável do romance, quando ela, sentimental, em um gesto apaixonado, enrosca alguns fios de cabelo em um dos botões da roupa de Georges Duroy, que nada percebe. Mais tarde, por conta desse gesto para ela simbólico, Madeleine Forestier percebe a evidência, e questiona seu então marido, perguntando se ele teria dormido com uma mulher que pusera cabelos em seus botões. Logo depois, examinando melhor o fio de cabelo branco, ela dá um grito estridente, de uma alegria nervosa e exclama: “Oh!... Oh!... É uma velha... eis aqui um cabelo branco... Ah! Deste agora para velhas... será que elas te pagam?... Ah! És das mulheres velhas... então não tens mais necessidade de mim...fica com a outra...” Por conta da cena, Duroy sente uma raiva furiosa e pensa na amante como a “velha bruxa de Walter”. O romance é repleto de cenas nas quais o caráter dos personagens é colocado em xeque constantemente.

Fica implícito, na sequência dessas cenas, complexas dinâmicas de poder, de desejo e, sobretudo, de controle nas relações entre homens e mulheres na sociedade do século XIX. Afinal, esse era o tempo desta escrita. Os homens e a sociedade, porém, permanecem, assim como a política dos afetos em face do poder e do manejo das ambições.

Há também toda uma representação do feminino jovem e do feminino maduro, designando a “velha bruxa”, expressão que opera de modo a estigmatizar a sexualidade da Senhora Forestier. Não estaria aí o reflexo da falta de proporcionalidade dos castigos na balança moral dos costumes? Enquanto Georges Duroy ascende na escala social, a Senhora Forestier é ridicularizada por suas ações. Velhos estereótipos, sempre persistentes, associados à sexualidade feminina.

Não obstante seu cinismo, Georges alcança seus objetivos e termina por se casar com Suzanne Walter, filha da velha senhora de Walter, culminando uma ascensão social inteiramente baseada em manipulações e traições ao longo de sua trajetória. Apesar do aparente sucesso, resta implícito que ele deverá manter seu comportamento oportunista, talvez para sempre, indefinidamente.

Um final ambíguo e provocativo. Uma obra de arte em termos de literatura que, até hoje, nos faz reverenciar a profundidade com que cada personagem atua na ordem social. Uma ordem que é questionada a cada linha, a cada momento, desde as descrições até os diálogos. Um romance que, mesmo escrito no século XIX, pode ser lido no XXI sem prejuízo dos retratos que faz tanto das relações humanas quanto da psicologia dos personagens. Eu diria mesmo que ainda há Duroys, porque a sociedade na qual vivemos enseja recompensas que reforçam comportamentos tais como os que ele praticou. Por outro lado, suas vítimas não são de todo inocentes, porque aceitam o jogo que ele propõe e aí talvez resida um aparente companheirismo que não é senão cumplicidade. Após certo ponto, reféns da mentira, não há outro caminho a seguir, a não ser manter as aparências e o jogo, indefinidamente. Maupassant. Sempre Maupassant. Irretocável. Imortal.