24 de dezembro de 2021

Feijões Mágicos


 Quando joguei os feijões na terra, sabia que nasceriam. Não cuidei de enterrá-los com cuidado, para que houvesse conforto. Deixei por conta de sua maior ou menor vontade de viver. In struggle for life. Notei que brotaram. Raízes à mostra. Ainda assim, floriram. Distraída por uns dias, agora descubro, por debaixo das folhas, que há vagens. Terei feijões.

Paro e penso então que nada terão de rotineiros esses meus feijões. A um, que raramente integram meu cardápio, a dois, que estes não eram feijões comuns. Vieram de uma venda à beira da estrada, pois foram cultivados artesanalmente. Assim, penso que podem ser mágicos. Se forem, o pé vai crescer até depois das nuvens e quem subir pelo caule da gigantesca planta chegará ao tal castelo onde mora o gigante que é dono de um tesouro. Ah, sim, pois é a tal história dos feijões mágicos. 

Então, quem sabe?


4 de dezembro de 2021

Por aí


 Daí a gente olha a parede, depois se olha e o outro então inventa de tirar fotografia, assim, discretamente. Tá bom, Dudu, Stela em Estrela, RS. 


21 de novembro de 2021

Reflexão

 É tanta coisa pra dizer que é melhor calar.

15 de novembro de 2021

Mediocridade como opção


Pode a mediocridade ser uma opção? Eu diria jamais. E diria jamais em caixa alta, grifando as maiúsculas, bem como não se deve fazer. Mas isso é coisa minha, e eu sou o ponto fora da curva. A mediocridade é um horror. Assombrosa e viciosa. Consegue tirar o colorido das coisas, consegue extrair a originalidade de tudo, consegue tornar tediosa a mais bela melodia. É a média mediana ajustada, adaptada e conformada. É o prêt-à-porter e o prêt-à-penser. É gente que deforma os próprios talentos, ajustando-os ao sistema da moda, da mídia, do cool e do cult. É gente que segue o rebanho sem reclamar, que procura a manada e obedece sem discussão. Gente que inventa que é feliz, depois publica o que entende por felicidade e espera ansiosamente pela chancela dos seguidores. É gente que se deixa estandardizar na expectativa de se tornar original.

Mas preciso me explicar. O fato de eu criticar a mediocridade, não significa dizer que eu viva glamourosamente. Bem ao contrário. Não há holofotes ao meu redor. Antes sou o que existe de mais comum e rotineiro aos olhos de quem me enxerga, mas não me vê. Porque viver pode ser simples, sem ser por isso menos intenso. Acredito que todos os instantes devem ser recebidos e vividos de maneira plena, ou seja, em sua originalidade mais profunda, marca de nosso próprio eu que é simplesmente o que ninguém mais é. É um modo de ser e de viver que olha para o mundo e para a vida sem outra mediação que não a dos sentidos. Ah, sim, isso causa algum estranhamento por aí, e já me valeu o atributo de pêndulo. Verdade que um apelido bem mais elegante do que seria uma mera bipolaridade, tão em moda ultimamente. Todavia, não se trata de variar de lá para cá, mas de se abrir para o que há de particular na generalidade das coisas. Uma fórmula simples, mas funcional, quando se trata de beber a água da vida sem nunca saber quando seu sabor será doce ou amargo, — e que me compreendam os simbolistas, se houver ainda algum perdido por aí.

Mas do que estou falando, afinal? De ninguém e de muita gente. Daquele que já me escreveu um dia que amava livros, mas que eles acabaram silenciados por obra e graça de uma esposa que só vibrava na frente da TV, especialmente aos domingos. Lendo isso num e-mail enviado para mim há exatamente onze anos atrás, fiquei imaginando a cena. Creio que hoje ele já esteja ajustado à programação dominical. Era talentoso. Curioso e original. Nunca mais me escreveu para falar de livros ou mesmo de si. Temo que se tenha deixado absorver inteiramente pela cara-metade com quem divide a cama e os humores. Há também outro que amarga a existência ao lado de alguém cujas limitações cognitivas são indisfarçáveis, mas que se esforça para não admitir o quanto isso o afeta. Eu teria mil outros exemplos. Creio que fazer concessões desse tipo passou a ser tão banal que não vejo muita gente reagir. Na verdade, muitos nem chegam a se indignar. Simplesmente aceitam, quando não inventam uma desculpa que justifique tanto a opressão quanto o opressor. Conformismo e adaptação. Duas palavras que resumem uma fórmula para se viver a vida de modo rápido e indolor, quando esta deveria ser a fórmula mais adequada à nossa morte.

Que posso dizer sobre isso? Nada que seja de muito proveito, exceto para mim mesma, como reflexão que fica escrita e à qual posso voltar, quem sabe, daqui a algum tempo. Nunca me conformei com aquilo que me contraria. Posso ser vencida pela força ou pelas circunstâncias. Já fui muitas vezes. Posso perder. Já perdi, aliás, tudo o que mais amava. Já caí, inclusive de joelhos. Apanhei muito, é verdade, mas bati mais ainda. Apesar de tudo, conheço o meu norte e não vacilo, por uma espécie de maldição que muitos chamam de ceticismo cínico, mas que eu tenho como a minha lucidez. Insisto, teimosamente, que cada instante, cada breve minuto de vida, traz consigo uma dose grande ou pequena de imponderável. Por isso procuro me fazer presente e atenta à vida e ao tempo que a constrói, tudo para descobrir o que há de mágico nas rotinas mais ordinárias: no caminho das formigas numa calçada, no barquinho de papel que navega na água da chuva acumulada na sarjeta, na originalidade que se esconde no que há de mais banal, como as ideias que coloco por escrito nesta madrugada para você me ler amanhã, como leria, se ainda estivesse por aqui.

Contudo, por uma questão de escrúpulos, de coerência e de honestidade intelectual, devo admitir que a mediocridade, ainda que me pareça aterrorizante, pode ser uma escolha segura, uma opção consciente e, sobretudo, vantajosa. Penso que isso merece algumas considerações.

A opção pela mediocridade é um caminho fácil. Basta seguir o rebanho que mais combina com o seu passo. Decore frases feitas. Leia o jornal mais vendido. Adote a opinião do colunista que tem milhões de seguidores. Ouça atentamente o guru facilitador que lhe ensina tudo sobre filosofia num curso online de poucos dias. Grátis, desde que você se inscreva no canal dele, dê um like e toque o sininho. Aprenda a dormir bem com o remédio da moda. Controle seu gênio e sua ansiedade com outro comprimido e não hesite diante do canabidiol, que pode ser obtido do modo tradicional ou com receita médica atualmente. Sexo cinco estrelas é possível em qualquer idade graças à pílula azul. Ser feliz não é difícil, e você vai ver isso acontecer logo depois que os amigos elogiarem sua nova foto de perfil com aqueles filtros mágicos e tudo o mais. Todavia, se as coisas ainda assim não andarem bem, há sempre um mestre de plantão para aconselhar você espiritualmente. Não tema as mudanças. Torne-se vegano, por exemplo, ou frequente um grupo alternativo qualquer, tipo oficina literária. Porque você sempre sonhou em se tornar um escritor. E os mestres sempre disseram que os sonhos são possíveis, desde que você não acorde, evidentemente. Malhe bastante na academia e transforme seu corpo. Se não der certo ou demorar muito, atinja suas metas com estimulantes, suplementos, hormônios ou silicone. Enfim, saia por aí e descubra quem você é. Pergunte à astrologia, à numerologia, à cabala ou ao tarô. As esfinges disputam você em cada esquina. Bem, é verdade que isso tudo não vai trazer resultados imediatos, mas você poderá sempre dizer para si mesmo que está no caminho da realização pessoal, rumo a tornar-se uma pessoa política e ideologicamente correta, desde que tome, evidentemente, o rumo certo.

Isso vai lhe custar algum dinheiro, é verdade. Mas não se assuste. Há padrões para todos os bolsos nesse campo minado de ofertas, fora aquilo que é absolutamente grátis. Só há uma coisa que você deverá investir com prodigalidade: o seu tempo. E não apenas o tempo que o seu relógio mede. Você precisa gastar o seu tempo existencial, porque é você que se desgasta para ser outro. Conforme seu investimento for maior ou menor, o resultado a gente já sabe: você se torna mais um sujeito feliz, integrado e globalizado, pronto para dizer sim a esse patético mundo novo. O que você está esperando para se decidir? Dentre as mais diversificadas franquias para ser ou para pensar, há uma sob medida esperando por você: basta apenas acreditar, e investir, naturalmente.

 

8 de novembro de 2021

10 de outubro de 2021

Por aí


 Então, a gente vai ao Foro trabalhar, e encontra uma coisa dessas no jardim. Estrela, RS.

2 de outubro de 2021

Como assim?

Como assim, outubro?

Porque não vi setembro passar. Diz o calendário aqui embaixo que se foi. 

Mas, e eu? Alguém me viu?

31 de agosto de 2021

Das tiranias

 

"Há uma tirania do progresso e um dogmatismo que, sob a bandeira da livre investigação, navega pelo mar do conhecimento. Toda réplica da tripulação é qualificada de rebeldia e castigada com a morte científica..."

STEKEL, Wilhelm. El querido ego. Buenos Aires:Imán, s.d.

24 de agosto de 2021

Por aí


 E ainda é preciso explicar, além de desenhar.

14 de agosto de 2021

12 de agosto de 2021

Na dúvida


 Se não for anjo, melhor não pular...

6 de agosto de 2021

Ordem no Caos

Só para colocar um pouco de ordem no caos criativo de riscos, rabiscos, cores e pinceladas, o jeito foi lançar tudo em uma Pinacoteca replicada em dois (por enquanto) arquivos PDF.

A PINACOTECA I

A PINACOTECA II

 

Então

Madrugadas de solidão, com direito a café recém-coado e horas pela frente para usar como bem entender. Revejo pastas de e-mails guardados. Dez anos atrás que lembram dez mais antigos e outros dez ainda. Tempo. Releio aquela história que nunca aconteceu, mas que foi inventada em detalhes tão precisos que me intrigam ainda. Quarto de século é fração bastante para preencher com não vivências. De concreto, o café, o silêncio, a leitura: lembranças de um verão e do mar.

Brincando

Sobreposições. 

Porque a gente pensa muitas coisas ao mesmo tempo, de modo que as imagens precisam acompanhar o pensamento. 

Assim, brincando.

2 de agosto de 2021

Para Rogério (1948-2020)


Cores, riscos e palavras são os ingredientes. A receita, saudades. No improviso, o segredo de viver todos os dias a tua ausência. De provisório, a vida: definitivamente.

Provisória & Improvisada reúne uma coleção de imagens e textos que, enquanto vivias, iam todos para ti. Tua morte, todavia, não pode me impedir de continuar a buscar o teu olhar. Porque eras o destinatário de todos os meus pensamentos, palavras e obras, fossem eles santos ou profanos.

Prolongada despedida. 

Estranha perversão que criou este catálogo de dores: impotente consolação. Porque meu luto precisa de todas as cores e todos os sentidos ocultos nas palavras, para que seja exclusivamente teu.

Disponível em: https://pt.scribd.com/document/518329992/Provisoria-e-Improvisada

31 de julho de 2021

Alberto, o mulherengo


ALBERTO, O MULHERENGO

Eu o conheci há mais de 20 anos. Não no sentido bíblico, bem entendido, mas como uma boa amiga do querido Alberto. É claro que o nome dele não é este, mas serve perfeitamente para designar alguém que me impressionou como o tipo clássico do mulherengo, absolutamente romântico e invariavelmente infiel. O mais interessante, todavia, é que vim a descobrir esse traço tão vívido de sua personalidade só alguns anos depois de conhecê-lo. A princípio, Alberto foi sempre um elegante e educado cavalheiro. E continua sendo, porque recentemente conversei com ele e pudemos recordar um pouco dos velhos tempos. Inspirada na conversa, surgiu-me a ideia de dividir com os leitores minhas impressões sobre o que considero um clássico mulherengo, dos quais Alberto, sem dúvida, é por excelência um bom exemplo.

Embora muitos (e muitas) se perguntem se um mulherengo precisa ser bonitão, estou para lá de certa que não absolutamente. Alberto, por exemplo, não era, creio que nunca foi nem é agora tampouco. Ao vê-lo pela primeira vez, nenhuma mulher iria suspirar, porque se trata de um homem comum. Nada de olhos verdes, sorriso perfeito, corpo atlético. Sem ser feio, não chegava a ser bonito. Todavia, uma vez estabelecidas as relações sociais, e ultrapassadas as devidas apresentações, sabe-se estar diante de um cavalheiro: alguém que ultrapassa em muito os parâmetros médios da boa educação e que, do ponto de vista feminino, trata todas as mulheres como damas, independente da idade ou da condição social delas.

É importante explicar a ênfase que estou emprestando ao termo clássico. É para deixar bem claro que existem os mulherengos comuns, nada interessantes. São tão óbvios, os coitadinhos. Passam cantadas, dizem bobagens, elogiam demais. Integram a tribo dos galãs de parquinho ou paqueradores de ocasião. São muito chatos. Abordam mulheres na rua e até quando fazem compras em supermercados. Dizem gracinhas completamente inoportunas e não é raro que sua conduta ultrapasse os limites da tolerância média, ainda que não se comportem necessariamente como assediadores sexuais. Os mulherengos clássicos se conduzem de outra maneira. Mostram-se tão discretos que a gente deveria sempre suspeitar que, na verdade, são sonsos. Conseguem deixar claro seu interesse sem recorrer aos lugares comuns utilizados pelo paquerador vulgar. Valorizam a mulher, sabem como prestigiá-la, de sorte a fazer com que elas o julguem interessante exatamente porque parece quase desinteressado. Em resumo: o mulherengo clássico é um jogador de cartas, que investe muito em apostas crescentes com sucessivas rodadas. O paquerador vulgar, em compensação, não passa de um apostador que não vai além dos caça-níqueis.

 Conheci Alberto socialmente. A impressão deixada era de elegância, confiabilidade e discrição. Com o tempo, no círculo de amigos comuns, aos poucos ele foi revelando fatos sobre sua vida. Os laços de amizade se estreitaram, e ele jamais desmentiu aquela primeira impressão. Amigo de fé, absolutamente confiável nos negócios, excelente profissional e dono de um senso de humor capaz de transformar tardes de cafezinho no meu antigo escritório em grandes momentos sempre divertidos. Nosso pequeno e restrito grupo de amigos era, à época, bem fechado.

Com o passar dos anos, as tardes de café repetiam-se, e Alberto acabou falando mais de si próprio, no sentido íntimo mesmo, até que, em um dia qualquer que não tenho mais como precisar, o assunto recaiu nas coisas do coração. Até então eu tinha por certo que o pacato pai de família tivera uma vida comum, até porque vivia bem com esposa, filhos e um adorável poodle toy. Pensava eu que talvez houvesse casado como maioria, seguindo os protocolos: conhecer, apaixonar, namorar, noivar e casar. Depois é só seguir com a vida real e portar-se como todo mundo. Alberto não me pareceu nunca um tipo arrebatado. Quando me falou sobre amor e sobre uma paixão do passado, pensei comigo que se referia à mulher dele em tempos de namoro. Qual não foi porém a minha surpresa ao descobrir que a história ― uma longa e complexa história de paixão ― ele vivera com outra! O caso prolongou-se por muitos anos, mas houve desencontros e, por contingência, foram separados. No fim, ambos terminaram casados, com filhos, e mantiveram-se distantes, embora continuassem perdidamente apaixonados. Segundo Alberto, sofreram, choraram, mas mantiveram-se íntegros, como nos filmes de Hollywood, mesmo após um dramático reencontro que os colocou face a face.  Achei aquilo muito interessante, porque jamais teria imaginado um Alberto capaz de amores tão castos, quase heroicos.

Desde essa conversa, passei a prestar mais atenção àquele que começava a se revelar como um mulherengo, porém, a meu ver, do tipo clássico, porque, mesmo quando é infiel, não consegue ser cafajeste. Não! De modo algum! A traição deles é sempre compreensível, e acredito que mesmo a esposa o teria perdoado. Um mulherengo clássico é incapaz de uma traição. Ao contrário dos mulherengos comuns, ― que se confundem com os paqueradores vulgares e que chegam, no máximo, a cafajestes rodriguianos ―, os clássicos não mentem, não enganam nem simulam. Cafajestes, por exemplo, empenham-se muito na conquista da mulher só para abandoná-la depois. Gostam de lágrimas e se sentem homens quando fazem com que a mulher sofra. Agem como Dom Juan. Os mulherengos clássicos não. Eles sabem intuitivamente como evitar traumas, talvez porque seduzem sem mentir. Dizem a verdade, porque sentem de verdade aquilo que dizem, mesmo que seja mentira.

Nenhuma mulher se sente feia diante de um mulherengo clássico. Por algum feliz acidente que talvez só se explique pela combinação de planetas, eles gostam de mulheres e sabem bem como atiçar mesmo a mais inexpressiva das feminilidades. O romantismo é neles tão natural que a impressão que fica é a de que são os mais fiéis dos homens. Alberto revelou-se bem assim: fiel a todos os amores que colecionou ao longo da vida. Conquistava as mulheres, relacionava-se com elas, mas jamais permitia que a chama se apagasse. Para minha surpresa, aquele cavalheiro educado, respeitável pai de família, mantinha, além da esposa, vários relacionamentos amorosos, alguns com décadas já.  Apesar de surpresa, não havia como não rir daquela situação e da justificativa que ele dava ao seu comportamento: nunca se deve fechar uma porta atrás de si. Seja.

Contudo, apesar de cuidadoso, algo deu errado com seu casamento. Indiscretos comentários deram conta de que Alberto havia se separado da esposa, que o expulsara do lar conjugal, acusando-o de manter um caso com a mulher de um amigo da família recentemente falecido. Como eu soube do maldoso boato, na primeira oportunidade em que nos encontramos, não resisti à curiosidade e fui direto ao assunto:

― Então, Alberto. Ouvi dizer que você se separou. Fala sério! Verdade que você pegou a mulher de um amigo? ― perguntei.

Ao contrário do que se pode esperar da maioria dos homens, ele não estranhou a minha pergunta e tampouco se mostrou embaraçado com tamanha indiscrição. Apenas abriu seu sorriso mais simpático, balançou a cabeça e adotou a expressão da mais pura inocência:

― Mas eu jamais desrespeitaria a mulher de um amigo! Ainda mais a mulher do falecido João! Infelizmente, minha esposa — agora ex — se tornou uma mulher ciumenta e não entendeu o que nunca foi além de um gesto de solidariedade.

Embora achasse a história muito estranha, escutei a versão dele, que se sentia ainda injustiçado. A separação acontecera de modo dramático, com a expulsão de casa do suposto adúltero.

― Mas, então, e agora? Estás como? Morando onde?

― Estou morando com ela, respondeu-me.

― Com ela quem?

― Com ela…

Esse ela veio acompanhado de um sorrisinho, de sorte que compreendi então que a esposa efetivamente teve lá os seus motivos para enciumar-se. Ele, elegantemente, foi peremptório. Negou qualquer envolvimento com a mulher do amigo ao tempo da separação. ― Um cavalheiro jamais comprometeria uma dama! ― Passado algum tempo, porém, Alberto não teve como não se mostrar solidário com a viúva do amigo. Muito compreensível, naturalmente. Dessa solidariedade, então, teria nascido o novo relacionamento. Ou seja: ele permanecia inocente. Alberto e a viúva do amigo João foram ambos injustiçados. Se terminaram juntos, foi culpa do destino. Afinal, Deus sabe o que faz.

Assim, o irrepreensível cavalheiro mostrava enfim outros aspectos de sua personalidade. Devo confessar que me sentia absolutamente privilegiada. Afinal, eram confidências vedadas ao mundo feminino em geral. O mais interessante era observar que ele conseguia sempre permanecer com pleno domínio das circunstâncias: não se contradizia nunca, não se embaraçava nem se constrangia. Seu discurso, porém, sempre impecável, dava a entrever que se divertia muito entre amores e amadas.

O tempo passou. Minha vida mudou e também mudaram os amigos. Nesse ínterim, porém, aconteceu de nos encontrarmos uma vez apenas, e isso, seguramente, há uns oito anos atrás. Alberto ocupava então um cargo importante. Perguntei onde estava morando e ele me respondeu estar sem endereço certo, porque morava, simultaneamente, com três namoradas que não sabiam umas das outras e na casa das quais ele dormia. Elas acreditavam que ele viajava muito e que só dispunha de um, no máximo dois ou três dias de amor por semana. Com esse engenhoso arranjo, ele era sempre esperado por suas namoradas, uma por vez, em clima de romantismo e de saudade a cada retorno das cansativas viagens de trabalho. Mais uma vez me senti privilegiada. Afinal, um mulherengo não costuma se revelar com tanta clareza. A lamentar que não nos encontramos desde então, até alguns dias atrás, quando conversamos virtualmente durante um encontro com amigos. Conversa divertida sobre os velhos tempos que recaiu, naturalmente, sobre o assunto mulheres.

 ― Então, Alberto? Ainda com três namoradas? Não, disse ele, rindo.

Pelo que pude perceber, agora são apenas duas namoradas que dividem pacífica e insuspeitadamente a posse do glamuroso Alberto. Sorte dele que residem ambas em cidades, na verdade em estados diferentes.  Desde então venho me perguntando quem são as mulheres que os mulherengos conseguem deslumbrar ou mesmo cegar por completo? Belas adormecidas talvez, que o mulherengo faz sonhar. Assim como os libertinos, os mulherengos ― os clássicos notadamente ― são tipos em franca extinção. Com eles, vão desaparecer também as belas adormecidas, os cavalos brancos, o glamour dos envolvimentos amorosos, os cavalheiros gentis que entregam seu coração, jurando amor ardente. E enquanto tudo isso aos poucos cai no esquecimento, à medida que desaparecem os mulherengos e suas amadas, a vida lá fora corre apressada, com relógios, compromissos, prazos e boletos. 

Da conversa sobre os velhos tempos, uma bela impressão. Ao me ver pelo vídeo, Alberto não me poupou do clássico: você não mudou nada nesses anos todos. Na despedida, uma promessa de vir a Porto Alegre. Parece que ele virá em algumas semanas. Mulherengos! Eu, hein?

 

 Disponível na REVISTA VIDA BRASIL

 

30 de julho de 2021

Da conversação

 "A conversação é mãe da polidez. Ela o é mesmo quando a polidez consiste em não conversar. Nada parece mais singular, mais contra natureza a um provinciano repentinamente chegado a Paris, que ver aí os ônibus cheios de pessoas que se abstêm, com cuidado, de falar entre si. O silêncio entre desconhecidos que se encontram parece, naturalmente, uma inconveniência, como o silêncio, entre pessoas que se conhecem, é um sinal de desarmonia. Todo camponês bem educado sente-se no dever de “fazer companhia” àqueles com quem ele caminha. Na realidade, não é que a necessidade da conversação seja mais forte nas pequenas cidades ou nos campos que nas grandes. Ao contrário, ela parece crescer na razão direta da densidade da população e do grau de civilização. Mas é precisamente por causa de sua intensidade nas grandes cidades que se estabeleceram aí diques contra o perigo de ser submerso sob ondas de palavras indiscretas."

Gabriel Tarde

Em flagrante


 Flagrei o Aquaman passeando pelo Centro Histórico de Porto Alegre.

29 de julho de 2021

Verdade


 Talvez porque ovelhas sejam pacíficas, ou porque o pastoreio toma contornos de sacralidade, talvez porque paisagens bucólicas sejam sossegadas. Talvez muita coisa. Certeza? A de  que gosto muito desse quadro. Ele não me deixa esquecer de que minha mãe costumava dizer que seus quadros fariam sempre lembrar dela. Verdade.

28 de julho de 2021

Ato falho

 Era para falar sobre o ônus da prova. Saiu ânus. Pois é...

25 de julho de 2021

Então

 Daí amanhã volta o frio, dizem. Com chuva. E depois mais frio, muito frio. Porque estamos em julho e faz inverno. Tão corriqueiro falar do tempo. Mas fala-se do tempo, da chuva, frio, doenças e tantas outras chatices. Lugares comuns. Para a maioria, a única realidade hoje, amanhã, sempre.

24 de julho de 2021

Luz & Calor

Assim como o homem é ímpeto tempestuoso e obscuro do querer (indicado pelo polo dos órgãos genitais, como seu foco), e, simultaneamente sujeito eterno, livre, sereno, do puro conhecer (indicado pelo polo do cérebro), assim, também, em conformidade com essa oposição, o sol é fonte de LUZ, é condição do modo mais perfeito do conhecimento e, justamente por isso, do que há de mais aprazível nas coisas, e simultaneamente é fonte de CALOR, da primeira condição de qualquer vida, isso é, de todo fenômeno de Vontade em graus mais elevados. Assim, o que o calor é para a vontade, a luz é para o conhecimento. A luz é justamente por isso o maior diamante na coroa da beleza, e tem a mais decisiva influência no conhecimento de todo objeto: sua presença em geral é condição indispensável; seu posicionamento favorável incrementa até mesmo a beleza do que há de mais belo.

SCHPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, V. 1. Trad. Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2002, p. 1.239.

Memorial das Saudades

Revejo "Minhas Imagens" e encontro até textos lá dentro. Sorrio. Mexo nas pastas e penso que a falha de catalogação cria uma espécie de catalogação, sim, só que completamente anárquica. Então sigo o método intuitivo. Vou abrindo as pastas amarelas que estão ali. Abro as fotos, uma por uma, e surgem lugares, sabores, perfumes e performances. Encontro a Pinacoteca. Relembro a tarde, uma entre tantas das que passamos lá, revisitando artistas e passeando por nosso jardim, que era o da Luz. A recordação é o encanto dos tijolos à vista e, súbito, a janela aberta que a fotografia remete à escuridão, ao nada, ao nunca mais. 

23 de julho de 2021

Tua casa

"Faz da tua casa uma festa! 
Ouve música, canta, dança...
Faz da tua casa um templo!
Reza, ora, medita, pede, agradece...
Faz da tua casa uma escola!
Lê, escreve, desenha, pinta, 
estuda, aprende, ensina...
Faz da tua casa uma loja!
Limpa, arruma, organiza, decora, 
muda de lugar, separa para doar...
Faz da tua casa um restaurante!
Cozinha, prova, cria, cultiva, planta...

Enfim...
Faz da tua casa
Um local criativo de amor." 
   
(Cora Coralina)

20 de julho de 2021

Antiga e nova moral


"A antiga moral prescrevia regras de comportamento individual. Pensava-se que a sociedade se tornaria melhor se os indivíduos que a compunham agissem bem. A nova moral quer moralizar a própria sociedade sem impor regras aos indivíduos; a antiga moral dizia às pessoas aquilo que deviam fazer. A nova moral descreve aquilo que a sociedade deve se tornar: não são mais os indivíduos que devem se comportar de modo direito, mas a sociedade é que tem o dever de ser mais justa. Enquanto a antiga moral se voltava ao bem, a antiga moral era ordenada ao bem e a nova é ordenada ao justo."

BENOIST, Alain de. I demoni del bene. Dal nouvo ordine morale all’ideologia del genere. Napoli: Controcorrente, 2015, p. 9-10.


18 de julho de 2021

Reclames de Antigamente


 Almanaque Eu sei Tudo, 1959, contracapa. E eu aqui, pensando nos transtornos da TPM de antigamente e nas promessas do Regulador Gesteira. 

17 de julho de 2021

Lápis de cor


 Sempre que estou diante de um lápis de cor, volto ao passado. Esse material simples era, na prática, um dos primeiros disponibilizados às crianças do meu tempo, que se transformaram nos idosos deste tempo. Usava-se lápis de cor antes dos crayons, antes das têmperas, das aquarelas e bem antes das tintas de base oleosa. Era uma espécie de hierarquia. Adquiria-se o "direito" ao uso de certos materiais, conforme nos mostrássemos mais um menos competentes no emprego das técnicas reservadas a cada um. Todavia, a primeira "prova" era aprender a colorir com lápis de cor. Com o tempo,  afastei-me deles. Acabaram  desparceirados. Muitos sem ponta, relegados  ao exílio, amontoados em caixas guardadas naqueles cantos da casa que são habitados pelos duendes domésticos. — É óbvio que eles existem!  — Recentemente, porém, resolvi brincar com meus lápis de cor e, na mesma hora, voltei no tempo. Tão bom não ter a menor preocupação em mostrar técnica ou competência. O único objetivo é brincar. Brincar de fazer acontecer um céu estrelado do qual me aproprio no meio da noite, nas madrugadas proibidas que acontecem só depois da meia-noite, quando brilham estrelas gigantes, quase do tamanho da lua que não é nem tão redonda assim. E a cor não é preta, porque esses céus devem puxar o tom de um veludo que minha mãe chamava de "azul noite" e que era muito "chic" e macio. Tenho, pois, para mim, secretamente, que os lápis de cor devem ser mágicos. Basta encostar suas pontas  no papel e deixar que se movam à vontade, para que aconteçam essas coisas tão prosaicas quanto esse desenho. Depois, olhando bem para esse céu de lua achatada e de estrelas tortas, dá vontade de escrever coisas assim, que as traças devoram, inexoravelmente.

16 de julho de 2021

Sexta

 Sim, sexta. Faz frio e paz ao redor. Noite serena, suave. Na sala escura teu retrato domina o ambiente do alto. Busco o teu olhar, mas o escuro mal define as formas. Não importa. Na memória em que navega a saudade todos os detalhes são precisos.

15 de julho de 2021

Por assim dizer

Deu por hoje. Que o dia se vai e já está quase sextando, por assim dizer.

1 de julho de 2021

Memórias tristes

É que hoje me vieram lembranças. Nos áudios que me deixaste, como evocações, tantos detalhes. E a insidiosa maldade que, ao final, prevaleceu. Memórias tristes, escolhas fatais.

Sempre


 

28 de junho de 2021

Comigo mesma

 Daí pensei comigo mesma, ainda que não pudesse pensar senão comigo mesma, que este mundo aqui está é cheio de gente doida. 

7 de junho de 2021

Figurinha de Agenda


 É, sim. Figurinha de agenda. No diminutivo mesmo, para a gente pensar em perder tempo em dia útil, em plena segunda-feira, início de mês. 

Mas em dias que têm sido tão feios e tão faltos de melhores expectativas, pelo menos algum resquício de ingenuidade é possível fabricar, de propósito, com segundas e terceiras intenções.

Pense nisso, como um convite para perder tempo aqui, entre traças e ácaros que sempre infestam as minhas agendas, de folhas amassadas, escritas com pressa, para que sempre me sobre algum tempo para rabiscar e escrever bobagens como esta.



5 de junho de 2021

Bem assim


 Então, a gente passa muito tempo aperfeiçoando perspectivas e pontos de vista, reparando na incidência da luz sobre os objetos, projetando onde colocar corretamente as sombras, etc.. Aprende tudo sobre como dar profundidade ao desenho. Admira os clássicos. Copia-os. Estuda-os. Lê e relê os velhos e maravilhosos autores que nos ensinam a História como história da arte. Só para — depois de crescer (no meu caso nem tanto) e de envelhecer (inevitável) —recomeçar tudo outra vez, reaprendendo a desenhar e a pintar tal e qual se fazia quando criança. 

Porque é de verdade bem assim, do jeito que eu fiz, e não assado, como é quando se pinta pensando.

Não é o caso de pensar. E por isso tenho feito coisas distorcidas ultimamente. Se eu pensar, vou corrigir minha percepção, para pintar e desenhar o que conheço. Daí eu criar sem pensamento e concluir que estou em plena regressão. 

Pudera, alguém duvida dessa evolução às avessas? O feio definitivamente desbancou o belo, e só eu sei a trabalheira que dá esconder, sob mil disfarces, um pouco de beleza e de delicadeza nesses tropeços dos pinceis e dos lápis sobre a frágil superfície do papel.

Trégua

 Sábado de trégua na guerra contra o frio. Manhã preguiçosa. Coisas que ficarão por fazer.

3 de junho de 2021

Mas é real

O abstrato nasce do real. A gente é que teoriza e depois se apaixona pelas ideias. Afinal, elas são mesmo muito mais sedutoras. Não é por nada que ideias são a matriz de nossos ideais. E não é à toa que a maioria prefira sonhar a viver. Então, a propósito do título, sim, é real. Reflexo de prédios iluminados, brilhando à noite, refletidos na areia da praia banhada pelas águas do mar. Simples assim. 

A troco de quê? Ah. Tem dias que estou mais empírica. Preguiça de pensar mesmo. 

24 de maio de 2021

O resto


 Um pouco mais de cor, ainda que o mundo em preto e branco possa ser mais lógico, mais neutro, mais assim... sério e respeitável. Não me diga, que eu sei. Agora, o que eu sinto é bem mais pelas cores. E assim mesmo: invasivas, desfocadas, confusas, como todo o resto.

9 de maio de 2021

O gato de Vila Ventura


 

Poesia

 Como me sinto? Como se colocassem dois olhos sobre uma mesa e dissessem a mim, a mim que sou cego: isso é aquilo que vê, essa é a matéria que vê. Toco os dois olhos sobre a mesa, lisos, tépidos ainda, arrancaram há pouco, gelatinosos, mas não vejo o que vê. É assim o que sinto tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito, desbocado e cruel, manchado de tinta, essas pardas escuras do não saber dizer, tento amputado conhecer o passo, cego conhecer a luz, ausente de braços tento te abraçar.

Hilda Hilst

8 de maio de 2021

Poesia

Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia. 


Fernando Pessoa

6 de maio de 2021

Nunca Mais


Cheguei a acreditar que não teria mais nada a escrever. Silenciar minha escrita foi consequência, todavia, não da escassez de palavras ou da falta delas, mas do luto pela definitiva ausência daquele que me lia e que me compreendia na escrita e no silêncio.

Sempre que diante da folha em branco, era nele que eu pensava primeiro e, só de pensar, já me vinha a vontade de escrever e de caprichar no texto. Caprichar? Sim. Deixar as frases bem torneadas, usar palavras escolhidas e, eu diria mesmo, escrever com leves toques cor-de-rosa, para dar ao texto certas sutilezas femininas, por mais politicamente incorreto que isso seja nos dias de hoje. Esse exercício contínuo de estar atento àquele que nos cativa reforça sua presença dentro de nós. Quem ama é habitado pelo amado, e vice-versa.

Para mim, escrever pensando naquele que mais profundamente me lia foi um jeito infalível de dar continuidade àquela deliciosa sedução que atualiza o amor no tempo. Quem viveu, no mínimo, da metade em diante do século XX, que o diga. Amores espetaculares. Grandes despedidas. Arrebatamentos. Algumas decepções. Saudades. Mas há o tempo. A juventude e a beleza que lhe é inerente, — ambas tão fugazes —, nos abandonam um dia. É preciso então reinventar a sedução e mesmo o amor. Cupido é criança, é cego e anda armado. Mantê-lo cativo, portanto, demanda o manejo de uma arte. Não mais naquela versão dos vinte anos, alimentada de hormônios, explosiva, glandular, plasmada no corpo que tantos, tão desesperadamente, tentam conservar, mas outra, uma versão mais sofisticada eu diria, que não apela aos sentidos, mas à memória deles. Afinal, seduzir é atiçar a imaginação.

Digressões à parte, fato é que, às vezes, o amor acontece na vida real. Ele sequestra e envenena duas almas e as mantêm unidas, mesmo quando a vida separa os corpos, mesmo quando estes sofrem com as agruras das enfermidades, mesmo quando o amor não convém. Amarração apesar de todas as circunstâncias e de todas as inconveniências. Há amores teimosos. Insistentes. Há amores felizes e também infelizes. Há amores óbvios, sob medida. E há os nossos, muito particularmente.

Contudo, não obstante sua tipologia ou sua pertinência, um dia o amor acaba. Não necessariamente ao mesmo tempo para ambos os envolvidos. Num processo que varia muito, lento, doloroso, violento ou angustiante, o amor se vai. Outras vezes, porém, ele é interrompido pela morte. A morte é clássica. Nem a Igreja, que pretende exercer a prerrogativa da salvação das almas, ousa contrapor-se ao fim do amor pela morte.

Das perdas que se têm, muitas são naturais e sabemos, desde certo tempo de vida, que haveremos de lidar com elas.  Dessas perdas, entretanto, talvez nenhuma seja tão drástica quanto a do ser amado. Inacreditável primeiro, sua irrealidade precisa ser suprida. Nascimentos e óbitos só acontecem nos cartórios: são tão inacreditáveis que demandam certidões. Não há espaço para o faz de conta. Não há como negar a morte, e é preciso vivê-la como imponderável que é, como tenho feito, ao longo de dias que não são mais os mesmos, de semanas que não se contam, e de meses que nenhum calendário nomeia. Vive-se um tempo repleto de vazio, cuja legenda, se houvesse, seria nunca mais. Morte sem cadáver, sabida de longe, por mensagem. Morte que, mesmo chegando diariamente a tantos, é sempre única. Morte anunciada, que há alguns anos espreitava o meu amado. Cercava-o, sedutoramente como outra mulher, e depois recuava, na última hora, tantas vezes, que eu já a acreditava amiga. Um fim anunciado. As últimas semanas eu já as vivi em dias sem amanhã, porque prevenida por ele, quando cantarolou para mim uma mensagem gravada em áudio: Giorni senza domani e il desiderio di te. Era a Casa d’Irene. Ele sabia ser muito sutil quando queria.

Mas a morte chegou. Ela concluiu sua parte e mais um pouco ainda, quando não me instruiu acerca do que fazer de mim agora sem ele. Que fazer de tantas e tantas palavras que eu ainda tinha a escrever? Que fazer diante da perda do destinatário da minha escrita, desde sempre, desde que eu nem sabia quem ele era, e ele tanto menos de mim conhecia. A escrita nos uniu, perante o divino sacerdócio das palavras que, uma vez dada aos homens, deu-lhes corpo e divindade. João não me deixa mentir: no princípio era o verbo. A carne veio depois. Exatamente como foi comigo e com ele. Porque o amor é mágico e poderoso. Supersticioso, louco, mas nada pode frente à morte. Convenci-me assim de que poria fim à minha escrita, tornada ela Julieta, suicida pelo desengano, buscando seguir o seu Romeu. Por algum tempo tal banalidade me consolou: nunca mais vou escrever ― dizia-me.  Depois pensei justamente que, por ser tão óbvia, ― e de duvidosa dramaticidade ―, esta não poderia ser uma escolha minha. Seria preciso vivenciar o luto pela perda daquele que, por tanto tempo, fora o destinatário de todos os meus pensamentos, palavras e obras, fossem eles santos ou profanos.

Prolongada e dolorosa despedida que me impedia de escrever. Angústia paralisante que me levava pelos caminhos da dor e da escuridão. Que me impedia a escrita, única alma que tenho, solitária entidade metafísica que me habita e na qual me reconheço. Alma silenciada, essa escrita recaía muitas vezes em obituários de vaidades, mais próprios a catalogar dores, a lamentar laços perdidos, mesmo os mais frouxos. Seria, para mim, demasiado óbvio chorar, por escrito, uma morte que nem mesmo me pertencia.

Por mais que os lugares comuns das saudades atinjam a todos quase da mesma maneira, eu não queria me enlutar, não convencionalmente ao menos. Seria inusitado. Quanto mais porque nunca protagonizei, naquela vida que se esgotou para o mundo, qualquer papel convencional. Liberdade e independência cobram solidão. Solidão combina com escrita. Mas eu nada conseguia escrever desde que aquela morte me acontecera. Descobri aí uma morte pronominal: que me afetara e não a ele. Não se tratava mais de pensar o morto, mas de pensar a morte em si, e o que ela me dizia daquele que me levou. Foi assim que caí presa de uma estranha perversão que quase me impediu por um bom tempo de escrever. Eu desenhava e pintava, coloria o papel e só depois me permitia decifrar uma dor transformada em cores, riscos e palavras, que me chegavam em breves notas, cheias de sentidos ocultos, exatamente como faziam quando eram por mim escritas àquele que se fora. Partida imperdoável.

Descobri que o culpava, porque ele desertara de mim. Abandonou-me na vida, entregue ao mundo, levando com ele todos os sentidos. Eu experimentava saudades e raiva. Esse sentimento tão mesquinho, quase odioso, não inspirava qualquer escrita, mas fazia-me riscar o papel, colorindo-o de mil maneiras. Foi preciso reaprender cada palavra depois, explorar o sentido de cada verbo e de cada frase diante de imagens que me apareciam como se viessem do além. Inventei Nunca Mais, morada dos mortos. Inventei Sinistro, lugar terrível, à beira do Estige, onde moram todos os que sentem saudades. Inventei lugares onde se vive a olhar para janelas abertas, onde há flores em vasos e vasos sem flores, imaginando que um dia o olhar de quem partiu pode descobrir que ali se vive ainda. Inventei gavetas e cortinas que, abertas ou fechadas, emprestavam alguma dinâmica a sentimentos tão contraditórios e densos, disputando a enorme sombra que ficou no lugar daquele que foi embora sem se despedir de mim. Inventei flores que eram sinos que tocariam sem parar, e outras, muito azuis, que floresciam em troncos ressecados. Inventei novas cores até. Pintei, desenhei e escrevi obsessivamente para criar com isso um luto que fosse apenas dele e que ninguém mais no mundo pudesse sentir ou imitar. Lancei-me contra a morte, amaldiçoei a fatalidade e persisti, sozinha contra o tempo: perene ameaça que retira até a força do veneno das flechas de Cupido.

Penso que a morte, assim como a vida, não tem nem faz sentido algum. Sempre me recusei às entregas místicas, ainda que conheça bem seu potencial como inspiração. A perda de sentidos, porém, é apanágio dos loucos e dos desesperados. Muito por conta disso é que a sanidade dos homens não dispensa a criação de significados, seja para justificar a vida, seja para explicar a morte, não raro negando-a como tal. Há muitas respostas prontas, na medida para quase todas as vidas e para quase todas as mortes. Basta aderir a uma fé ou crença. Os mais filosóficos que religiosos não buscam menos tais sentidos que encontram em filosofias de varejo ou de atacado, que vão da lógica formal até o absurdo mais completo e ainda além deste. Misticismo e lógica disputam entre si o primado da verdade, e mesmo dentro de nós há muitas lutas antes que se faça o silêncio e, depois, a angústia, que nos ensina que a morte existe e que ela é de uma realidade brutal.

Não há retorno possível, nunca mais. Além do inútil desespero, contudo, existe ainda a minha palavra que se lança contra o tempo, a fatalidade e a morte, esses três desconhecidos que devo afrontar, apesar de saber que agora não há mais o destinatário desta escrita, transformada em oração de quem não sabe rezar, mas sabe escrever, sempre, Rogério.

REVISTA VIDA BRASIL

1 de maio de 2021

Repouso das águas


 Era uma vez um deserto onde as águas podiam repousar tranquilamente. 

23 de abril de 2021

16 de abril de 2021

Tudo e nada

 Enfim, dias que se acumulam, semanas, meses: o ano que se vai. Cada dia um improviso, para homenagear saudades. Passos perdidos, caminhos desencontrados. Consolo? Minha escrita. Arriscar? Minha arte. Esboços diários nos quais dou testemunho de mim. Diários, anotações, esfinges. De tudo e mais
ainda um pouco de nada.

14 de abril de 2021

“Quem não comunica se trumbica”...


...dizia aquele que se tornou conhecido como o "velho guerreiro" na década de 1980. Faz tempo. Mas é possível também que alguém  se trumbique quando se comunica. Ou não?

14 de março de 2021

O que vem por aí


 Tirando o fim de semana para ouvir o que os malucos têm a dizer. Cansei dos normais. Horas e horas só escutando verdadeiros loucos de atar. 

12 de março de 2021

Perplexa

 Soube ontem de uma moça que dorme com a chapinha embaixo do travesseiro. Desde que se casou, ela acorda sempre muito cedo, desliza silenciosamente para fora de cama e, sem fazer barulho, se arruma. Depois volta  ao quarto, deita-se, e faz de conta que dorme. Quando o marido acorda, ela finge que desperta "maravilhosa". Jamais aparece diante dele com o cabelo arrepiado. Foi minha cabeleireira que me contou essa história. A moça é  mais uma dependente da chapinha, disse minha cabeleireira, deixando bem claro que há muitas assim. Fiquei (e continuo) perplexa, até meio inspirada para uma crônica, talvez. Saber que mulheres sejam tão inseguras, a ponto de temerem se mostrar como são, e justamente com quem decidiram dividir a intimidade. 

11 de março de 2021

Por ora


 Restaurando a bagunça na sala de estar. Afinal, de estar o quê? De estar por estar, de estar por ali, de estar à espera, de estar a ficar, a pensar, a viver, a conjugar enfim tantos verbos. Trocar o estar por hora, que é hora de trabalho, pelo estar por ora, justo nesta manhã em que decreto feriado para tratar de dar mais cores ao meu tempo, mais cores que palavras, ultimamente, tão vãs.



10 de março de 2021

Contudo

Pensando em voltar às cores. Ultimamente as palavras têm sido tão vãs... De uma inutilidade à toda prova. Redundantes como um pleonasmo. Barulhentas, mas ocas.

8 de março de 2021

A propósito

 Ismos à parte, divertido lembrar, e justamente hoje, que a parte espúria era o nome dado à genitália feminina. Para Plutarco (50-120 d.C.) a palavra spurius tinha origem sabina. Posteriormente, tribunais medievais passaram a chamar assim também crianças ilegítimas, nascidas de mãe nobre e de pai plebeu.

PEREIRA JÚNIOR, Luiz Costa. Com a língua de fora. A obscenidade por trás de palavras insuspeitas e a história inocente de termos cabeludos. São Paulo: Angra, 2002. (p. 57-58).



7 de março de 2021

Só queria que soubesses

 


Cercada de coisas silenciosas. Até meus livros, hoje, mal sussurram seus títulos. Devo prolongar minha estadia nos 1500. Relendo vidas: Lutero, Erasmo, Savonarola... Maquiavel. Sem pretensões didáticas! Nada de métodos. Apenas leitura e o colocar-se na pele dos que viveram seu tempo. Busco detalhes. Amores. Palavras. Marco as páginas, sublinho o texto. Quero entender a Reforma. Quero mais, na verdade: quero imaginar homens e circunstâncias. Homens talvez superiores às suas circunstâncias: pelo caráter, pelas convicções, pela vontade. Depois me lembro da tua ausência. Não tenho mais com quem compartilhar tantos tesouros. Para quem faria sentido detalhes tão ínfimos? Descubro cartas. Dizeres... Descubro que Erasmo, ao saber do casamento de Lutero com Catarina de Bora, comentou que a Reforma, depois de haver começado como uma tragédia, terminava, como toda comédia, com um casamento. Saboreio a frase e sua refinada ironia. Só queria que soubesses. 

28 de fevereiro de 2021

Como assim, março?

 Alguém anda roubando o tempo. Porque não sei onde foram parar os dois meses que dizem que passaram.

19 de fevereiro de 2021

Por nada, mas


 Até podem ser anjos. Mas a expressão é bem profana...

12 de fevereiro de 2021

Esses dias 12

 Tempo não é remédio. Esquecimento pode ser, porque nos esvazia de nós, de uma parte de nós, às vezes doída, habitada de saudade. Quando chove, quando nubla, quando faz sol, quando anoitece, quando amanhece, quando é sempre: sempre assim, nós habitados de silêncios e de saudades. Remédio? Os breves esquecimentos. Momentos em que vivemos no modo automático. A vida mecânica que a agenda preenche, quando ela mesma não traz prenotadas essas datas, esses dias 12, tão assombrosos, dos agostos e dos fevereiros

10 de fevereiro de 2021

Dizem


O que arde cura.

O que aperta segura.

31 de janeiro de 2021

Adilson


 Este é o Adilson. Ele mora na Zona Sul aqui de Porto Alegre, em um condomínio e, por incrível que possa parecer, é o legítimo senhor de um dos apartamentos. 

O imóvel, na verdade um dos apartamentos térreos, já teve vários proprietários, e todos eles, sem exceção, têm de "aceitar" a presença de Adilson no imóvel. Afinal, ele é o verdadeiro dono.

Em que pese ainda não ter sido eleito síndico, Adilson se dá bem com todos os moradores. É amigável, simpático, guloso, preguiçoso e muito popular. Passa horas tomando sol, ora no estacionamento, ora circulando pelas áreas comuns. Contudo, tem o seu próprio apartamento, e dispõe de uma entrada/saída exclusivamente dele. 

Sempre que visito o prédio, faço questão de cumprimentar o Adilson, fazer uns carinhos nele e me sentir bem-vinda. Ele sempre me recebe bem. Imagino que já se acostumou à fama.

Adilson. Pois é. Soa bem. Que nome para um gato! Só não consegui descobrir quem o batizou, mas é certo que, mesmo quem mora lá há bastante tempo, chama-o por esse nome.

Ah! As fotos são do Dr. Eduardo Cestari Grando. Vizinho do Adilson.

26 de janeiro de 2021

Ao bom entendedor


 Um pouco mais de cor, de cheiros, de sabores. Até aí, tudo bem. Só não me sugira aquela rima pobre, ok? Menos. Por favor, menos.

1 de janeiro de 2021

1924-2021


 O coração, certo que não bate mais. Mas o papel persistiu. As cartas, guardei. A palavra, manuscrita, ficou. Encanto. Memória. Arquivo.