ALBERTO, O MULHERENGO
Eu o conheci há
mais de 20 anos. Não no sentido bíblico, bem entendido, mas como uma boa amiga
do querido Alberto. É claro que o nome dele não é este, mas serve perfeitamente
para designar alguém que me impressionou como o tipo clássico do mulherengo, absolutamente
romântico e invariavelmente infiel. O mais interessante, todavia, é que vim a
descobrir esse traço tão vívido de sua personalidade só alguns anos depois de
conhecê-lo. A princípio, Alberto foi sempre um elegante e educado cavalheiro. E
continua sendo, porque recentemente conversei com ele e pudemos recordar um
pouco dos velhos tempos. Inspirada na conversa, surgiu-me a ideia de dividir
com os leitores minhas impressões sobre o que considero um clássico mulherengo,
dos quais Alberto, sem dúvida, é por excelência um bom exemplo.
Embora muitos
(e muitas) se perguntem se um mulherengo precisa ser bonitão, estou para lá de
certa que não absolutamente. Alberto, por exemplo, não era, creio que nunca foi
nem é agora tampouco. Ao vê-lo pela primeira vez, nenhuma mulher iria suspirar,
porque se trata de um homem comum. Nada de olhos verdes, sorriso perfeito,
corpo atlético. Sem ser feio, não chegava a ser bonito. Todavia, uma vez
estabelecidas as relações sociais, e ultrapassadas as devidas apresentações, sabe-se
estar diante de um cavalheiro: alguém que ultrapassa em muito os parâmetros
médios da boa educação e que, do ponto de vista feminino, trata todas as
mulheres como damas, independente da idade ou da condição social delas.
É importante
explicar a ênfase que estou emprestando ao termo clássico. É para deixar bem claro que existem os mulherengos
comuns, nada interessantes. São tão óbvios, os coitadinhos. Passam cantadas,
dizem bobagens, elogiam demais. Integram a tribo dos galãs de parquinho ou
paqueradores de ocasião. São muito chatos. Abordam mulheres na rua e até quando
fazem compras em supermercados. Dizem gracinhas completamente inoportunas e não
é raro que sua conduta ultrapasse os limites da tolerância média, ainda que não
se comportem necessariamente como assediadores sexuais. Os mulherengos
clássicos se conduzem de outra maneira. Mostram-se tão discretos que a gente
deveria sempre suspeitar que, na verdade, são sonsos. Conseguem deixar claro
seu interesse sem recorrer aos lugares comuns utilizados pelo paquerador
vulgar. Valorizam a mulher, sabem como prestigiá-la, de sorte a fazer com que
elas o julguem interessante exatamente porque parece quase desinteressado. Em
resumo: o mulherengo clássico é um jogador de cartas, que investe muito em
apostas crescentes com sucessivas rodadas. O paquerador vulgar, em compensação,
não passa de um apostador que não vai além dos caça-níqueis.
Conheci Alberto socialmente. A impressão
deixada era de elegância, confiabilidade e discrição. Com o tempo, no círculo
de amigos comuns, aos poucos ele foi revelando fatos sobre sua vida. Os laços
de amizade se estreitaram, e ele jamais desmentiu aquela primeira impressão.
Amigo de fé, absolutamente confiável nos negócios, excelente profissional e
dono de um senso de humor capaz de transformar tardes de cafezinho no meu
antigo escritório em grandes momentos sempre divertidos. Nosso pequeno e
restrito grupo de amigos era, à época, bem fechado.
Com o passar
dos anos, as tardes de café repetiam-se, e Alberto acabou falando mais de si
próprio, no sentido íntimo mesmo, até que, em um dia qualquer que não tenho
mais como precisar, o assunto recaiu nas coisas do coração. Até então eu tinha
por certo que o pacato pai de família tivera uma vida comum, até porque vivia
bem com esposa, filhos e um adorável poodle toy. Pensava eu que talvez houvesse
casado como maioria, seguindo os protocolos: conhecer, apaixonar, namorar,
noivar e casar. Depois é só seguir com a vida real e portar-se como todo mundo.
Alberto não me pareceu nunca um tipo arrebatado. Quando me falou sobre amor e
sobre uma paixão do passado, pensei comigo que se referia à mulher dele em
tempos de namoro. Qual não foi porém a minha surpresa ao descobrir que a
história ― uma longa e complexa história de paixão ― ele vivera com outra! O
caso prolongou-se por muitos anos, mas houve desencontros e, por contingência,
foram separados. No fim, ambos terminaram casados, com filhos, e mantiveram-se
distantes, embora continuassem perdidamente apaixonados. Segundo Alberto,
sofreram, choraram, mas mantiveram-se íntegros, como nos filmes de Hollywood,
mesmo após um dramático reencontro que os colocou face a face. Achei aquilo muito interessante, porque
jamais teria imaginado um Alberto capaz de amores tão castos, quase heroicos.
Desde essa conversa, passei a prestar mais
atenção àquele que começava a se revelar como um mulherengo, porém, a meu ver,
do tipo clássico, porque, mesmo quando é infiel, não consegue ser cafajeste.
Não! De modo algum! A traição deles é sempre compreensível, e acredito que
mesmo a esposa o teria perdoado. Um mulherengo clássico é incapaz de uma
traição. Ao contrário dos mulherengos comuns, ― que se confundem com os
paqueradores vulgares e que chegam, no máximo, a cafajestes rodriguianos ―, os
clássicos não mentem, não enganam nem simulam. Cafajestes, por exemplo,
empenham-se muito na conquista da mulher só para abandoná-la depois. Gostam de
lágrimas e se sentem homens quando fazem com que a mulher sofra. Agem como Dom
Juan. Os mulherengos clássicos não. Eles sabem intuitivamente como evitar
traumas, talvez porque seduzem sem mentir. Dizem a verdade, porque sentem de
verdade aquilo que dizem, mesmo que seja mentira.
Nenhuma mulher se sente feia diante de um
mulherengo clássico. Por algum feliz acidente que talvez só se explique pela
combinação de planetas, eles gostam de mulheres e sabem bem como atiçar mesmo a
mais inexpressiva das feminilidades. O romantismo é neles tão natural que a
impressão que fica é a de que são os mais fiéis dos homens. Alberto revelou-se
bem assim: fiel a todos os amores que colecionou ao longo da vida. Conquistava
as mulheres, relacionava-se com elas, mas jamais permitia que a chama se
apagasse. Para minha surpresa, aquele cavalheiro educado, respeitável pai de
família, mantinha, além da esposa, vários relacionamentos amorosos, alguns com
décadas já. Apesar de surpresa, não
havia como não rir daquela situação e da justificativa que ele dava ao seu
comportamento: nunca se deve fechar uma porta atrás de si. Seja.
Contudo, apesar
de cuidadoso, algo deu errado com seu casamento. Indiscretos comentários deram
conta de que Alberto havia se separado da esposa, que o expulsara do lar
conjugal, acusando-o de manter um caso com a mulher de um amigo da família
recentemente falecido. Como eu soube do maldoso boato, na primeira oportunidade
em que nos encontramos, não resisti à curiosidade e fui direto ao assunto:
― Então,
Alberto. Ouvi dizer que você se separou. Fala sério! Verdade que você pegou a
mulher de um amigo? ― perguntei.
Ao contrário do
que se pode esperar da maioria dos homens, ele não estranhou a minha pergunta e
tampouco se mostrou embaraçado com tamanha indiscrição. Apenas abriu seu
sorriso mais simpático, balançou a cabeça e adotou a expressão da mais pura
inocência:
― Mas eu jamais
desrespeitaria a mulher de um amigo! Ainda mais a mulher do falecido João!
Infelizmente, minha esposa — agora ex — se tornou uma mulher ciumenta e não
entendeu o que nunca foi além de um gesto de solidariedade.
Embora achasse
a história muito estranha, escutei a versão dele, que se sentia ainda
injustiçado. A separação acontecera de modo dramático, com a expulsão de casa
do suposto adúltero.
― Mas, então, e
agora? Estás como? Morando onde?
― Estou morando
com ela, respondeu-me.
― Com ela quem?
― Com ela…
Esse ela veio acompanhado de um sorrisinho,
de sorte que compreendi então que a esposa efetivamente teve lá os seus motivos
para enciumar-se. Ele, elegantemente, foi peremptório. Negou qualquer
envolvimento com a mulher do amigo ao tempo da separação. ― Um cavalheiro jamais
comprometeria uma dama! ― Passado algum tempo, porém, Alberto não teve como não
se mostrar solidário com a viúva do amigo. Muito compreensível, naturalmente.
Dessa solidariedade, então, teria nascido o novo relacionamento. Ou seja: ele
permanecia inocente. Alberto e a viúva do amigo João foram ambos injustiçados.
Se terminaram juntos, foi culpa do destino. Afinal, Deus sabe o que faz.
Assim, o
irrepreensível cavalheiro mostrava enfim outros aspectos de sua personalidade.
Devo confessar que me sentia absolutamente privilegiada. Afinal, eram
confidências vedadas ao mundo feminino em geral. O mais interessante era
observar que ele conseguia sempre permanecer com pleno domínio das
circunstâncias: não se contradizia nunca, não se embaraçava nem se constrangia.
Seu discurso, porém, sempre impecável, dava a entrever que se divertia muito
entre amores e amadas.
O tempo passou.
Minha vida mudou e também mudaram os amigos. Nesse ínterim, porém, aconteceu de
nos encontrarmos uma vez apenas, e isso, seguramente, há uns oito anos atrás.
Alberto ocupava então um cargo importante. Perguntei onde estava morando e ele
me respondeu estar sem endereço certo, porque morava, simultaneamente, com três
namoradas que não sabiam umas das outras e na casa das quais ele dormia. Elas
acreditavam que ele viajava muito e que só dispunha de um, no máximo dois ou
três dias de amor por semana. Com esse engenhoso arranjo, ele era sempre
esperado por suas namoradas, uma por vez, em clima de romantismo e de saudade a
cada retorno das cansativas viagens de trabalho. Mais uma vez me senti
privilegiada. Afinal, um mulherengo não costuma se revelar com tanta clareza. A
lamentar que não nos encontramos desde então, até alguns dias atrás, quando
conversamos virtualmente durante um encontro com amigos. Conversa divertida
sobre os velhos tempos que recaiu, naturalmente, sobre o assunto mulheres.
― Então, Alberto? Ainda com três
namoradas? Não, disse ele, rindo.
Pelo que pude
perceber, agora são apenas duas namoradas que dividem pacífica e insuspeitadamente
a posse do glamuroso Alberto. Sorte dele que residem ambas em cidades, na
verdade em estados diferentes. Desde
então venho me perguntando quem são as mulheres que os mulherengos conseguem
deslumbrar ou mesmo cegar por completo? Belas adormecidas talvez, que o
mulherengo faz sonhar. Assim como os libertinos, os mulherengos ― os clássicos
notadamente ― são tipos em franca extinção. Com eles, vão desaparecer também as
belas adormecidas, os cavalos brancos, o glamour dos envolvimentos amorosos, os
cavalheiros gentis que entregam seu coração, jurando amor ardente. E enquanto
tudo isso aos poucos cai no esquecimento, à medida que desaparecem os
mulherengos e suas amadas, a vida lá fora corre apressada, com relógios,
compromissos, prazos e boletos.
Da conversa
sobre os velhos tempos, uma bela impressão. Ao me ver pelo vídeo, Alberto não
me poupou do clássico: você não mudou
nada nesses anos todos. Na despedida, uma promessa de vir a Porto Alegre.
Parece que ele virá em algumas semanas. Mulherengos! Eu, hein?
Disponível na REVISTA VIDA BRASIL