Cheguei a acreditar que não teria mais nada a escrever. Silenciar minha
escrita foi consequência, todavia, não da escassez de palavras ou da falta
delas, mas do luto pela definitiva ausência daquele que me lia e que me
compreendia na escrita e no silêncio.
Sempre que diante da folha em branco, era nele que eu pensava primeiro e,
só de pensar, já me vinha a vontade de escrever e de caprichar no texto.
Caprichar? Sim. Deixar as frases bem torneadas, usar palavras escolhidas e, eu
diria mesmo, escrever com leves toques cor-de-rosa, para dar ao texto certas
sutilezas femininas, por mais politicamente incorreto que isso seja nos dias de
hoje. Esse exercício contínuo de estar atento àquele que nos cativa reforça sua
presença dentro de nós. Quem ama é habitado pelo amado, e vice-versa.
Para mim, escrever pensando naquele que mais profundamente me lia foi um
jeito infalível de dar continuidade àquela deliciosa sedução que atualiza o
amor no tempo. Quem viveu, no mínimo, da metade em diante do século XX, que o
diga. Amores espetaculares. Grandes despedidas. Arrebatamentos. Algumas
decepções. Saudades. Mas há o tempo. A juventude e a beleza que lhe é inerente,
— ambas tão fugazes —, nos abandonam um dia. É preciso então reinventar a
sedução e mesmo o amor. Cupido é criança, é cego e anda armado. Mantê-lo
cativo, portanto, demanda o manejo de uma arte. Não mais naquela versão dos
vinte anos, alimentada de hormônios, explosiva, glandular, plasmada no corpo
que tantos, tão desesperadamente, tentam conservar, mas outra, uma versão mais
sofisticada eu diria, que não apela aos sentidos, mas à memória deles. Afinal,
seduzir é atiçar a imaginação.
Digressões à parte, fato é que, às vezes, o amor acontece na vida real.
Ele sequestra e envenena duas almas e as mantêm unidas, mesmo quando a vida
separa os corpos, mesmo quando estes sofrem com as agruras das enfermidades,
mesmo quando o amor não convém. Amarração apesar de todas as circunstâncias e
de todas as inconveniências. Há amores teimosos. Insistentes. Há amores felizes
e também infelizes. Há amores óbvios, sob medida. E há os nossos, muito
particularmente.
Contudo, não obstante sua tipologia ou sua pertinência, um dia o amor
acaba. Não necessariamente ao mesmo tempo para ambos os envolvidos. Num
processo que varia muito, lento, doloroso, violento ou angustiante, o amor se
vai. Outras vezes, porém, ele é interrompido pela morte. A morte é clássica.
Nem a Igreja, que pretende exercer a prerrogativa da salvação das almas, ousa
contrapor-se ao fim do amor pela morte.
Das perdas que se têm, muitas são naturais e sabemos, desde certo tempo
de vida, que haveremos de lidar com elas.
Dessas perdas, entretanto, talvez nenhuma seja tão drástica quanto a do
ser amado. Inacreditável primeiro, sua irrealidade precisa ser suprida.
Nascimentos e óbitos só acontecem nos cartórios: são tão inacreditáveis que
demandam certidões. Não há espaço para o faz de conta. Não há como negar a
morte, e é preciso vivê-la como imponderável que é, como tenho feito, ao longo
de dias que não são mais os mesmos, de semanas que não se contam, e de meses
que nenhum calendário nomeia. Vive-se um tempo repleto de vazio, cuja legenda,
se houvesse, seria nunca mais. Morte
sem cadáver, sabida de longe, por mensagem. Morte que, mesmo chegando
diariamente a tantos, é sempre única. Morte anunciada, que há alguns anos
espreitava o meu amado. Cercava-o, sedutoramente como outra mulher, e depois
recuava, na última hora, tantas vezes, que eu já a acreditava amiga. Um fim
anunciado. As últimas semanas eu já as vivi em dias sem amanhã, porque
prevenida por ele, quando cantarolou para mim uma mensagem gravada em áudio: Giorni senza domani e il desiderio di te. Era
a Casa d’Irene. Ele sabia ser muito sutil quando queria.
Mas a morte chegou. Ela concluiu sua parte e mais um pouco ainda, quando
não me instruiu acerca do que fazer de mim agora sem ele. Que fazer de tantas e
tantas palavras que eu ainda tinha a escrever? Que fazer diante da perda do
destinatário da minha escrita, desde sempre, desde que eu nem sabia quem ele
era, e ele tanto menos de mim conhecia. A escrita nos uniu, perante o divino
sacerdócio das palavras que, uma vez dada aos homens, deu-lhes corpo e
divindade. João não me deixa mentir: no princípio era o verbo. A carne veio depois.
Exatamente como foi comigo e com ele. Porque o amor é mágico e poderoso.
Supersticioso, louco, mas nada pode frente à morte. Convenci-me assim de que
poria fim à minha escrita, tornada ela Julieta, suicida pelo desengano,
buscando seguir o seu Romeu. Por algum tempo tal banalidade me consolou: nunca
mais vou escrever ― dizia-me. Depois
pensei justamente que, por ser tão óbvia, ― e de duvidosa dramaticidade ―, esta
não poderia ser uma escolha minha. Seria preciso vivenciar o luto pela perda
daquele que, por tanto tempo, fora o destinatário de todos os meus pensamentos,
palavras e obras, fossem eles santos ou profanos.
Prolongada e dolorosa despedida que me impedia de escrever. Angústia
paralisante que me levava pelos caminhos da dor e da escuridão. Que me impedia
a escrita, única alma que tenho, solitária entidade metafísica que me habita e
na qual me reconheço. Alma silenciada, essa escrita recaía muitas vezes em
obituários de vaidades, mais próprios a catalogar dores, a lamentar laços
perdidos, mesmo os mais frouxos. Seria, para mim, demasiado óbvio chorar, por
escrito, uma morte que nem mesmo me pertencia.
Por mais que os lugares comuns das saudades atinjam a todos quase da
mesma maneira, eu não queria me enlutar, não convencionalmente ao menos. Seria
inusitado. Quanto mais porque nunca protagonizei, naquela vida que se esgotou
para o mundo, qualquer papel convencional. Liberdade e independência cobram
solidão. Solidão combina com escrita. Mas eu nada conseguia escrever desde que
aquela morte me acontecera. Descobri aí uma morte pronominal: que me afetara e não a ele. Não se tratava
mais de pensar o morto, mas de pensar a morte em si, e o que ela me dizia
daquele que me levou. Foi assim que caí presa de uma estranha perversão que
quase me impediu por um bom tempo de escrever. Eu desenhava e pintava, coloria
o papel e só depois me permitia decifrar uma dor transformada em cores, riscos
e palavras, que me chegavam em breves notas, cheias de sentidos ocultos,
exatamente como faziam quando eram por mim escritas àquele que se fora. Partida
imperdoável.
Descobri que o culpava, porque ele
desertara de mim. Abandonou-me na vida, entregue ao mundo, levando com ele
todos os sentidos. Eu experimentava saudades e raiva. Esse sentimento tão
mesquinho, quase odioso, não inspirava qualquer escrita, mas fazia-me riscar o
papel, colorindo-o de mil maneiras. Foi preciso reaprender cada palavra depois,
explorar o sentido de cada verbo e de cada frase diante de imagens que me
apareciam como se viessem do além. Inventei Nunca
Mais, morada dos mortos. Inventei Sinistro,
lugar terrível, à beira do Estige, onde moram todos os que sentem saudades.
Inventei lugares onde se vive a olhar para janelas abertas, onde há flores em
vasos e vasos sem flores, imaginando que um dia o olhar de quem partiu pode
descobrir que ali se vive ainda. Inventei gavetas e cortinas que, abertas ou
fechadas, emprestavam alguma dinâmica a sentimentos tão contraditórios e
densos, disputando a enorme sombra que ficou no lugar daquele que foi embora
sem se despedir de mim. Inventei flores que eram sinos que tocariam sem parar,
e outras, muito azuis, que floresciam em troncos ressecados. Inventei novas
cores até. Pintei, desenhei e escrevi obsessivamente para criar com isso um
luto que fosse apenas dele e que ninguém mais no mundo pudesse sentir ou
imitar. Lancei-me contra a morte, amaldiçoei a fatalidade e persisti, sozinha
contra o tempo: perene ameaça que retira até a força do veneno das flechas de
Cupido.
Penso que a morte, assim como a vida, não tem nem faz sentido algum.
Sempre me recusei às entregas místicas, ainda que conheça bem seu potencial
como inspiração. A perda de sentidos, porém, é apanágio dos loucos e dos
desesperados. Muito por conta disso é que a sanidade dos homens não dispensa a
criação de significados, seja para justificar a vida, seja para explicar a
morte, não raro negando-a como tal. Há muitas respostas prontas, na medida para
quase todas as vidas e para quase todas as mortes. Basta aderir a uma fé ou
crença. Os mais filosóficos que religiosos não buscam menos tais sentidos que
encontram em filosofias de varejo ou de atacado, que vão da lógica formal até o
absurdo mais completo e ainda além deste. Misticismo e lógica disputam entre si
o primado da verdade, e mesmo dentro de nós há muitas lutas antes que se faça o
silêncio e, depois, a angústia, que nos ensina que a morte existe e que ela é
de uma realidade brutal.
Não há retorno possível, nunca mais. Além do inútil desespero, contudo, existe ainda a minha palavra que se lança contra o tempo, a fatalidade e a morte, esses três desconhecidos que devo afrontar, apesar de saber que agora não há mais o destinatário desta escrita, transformada em oração de quem não sabe rezar, mas sabe escrever, sempre, Rogério.