6 de maio de 2021

Nunca Mais


Cheguei a acreditar que não teria mais nada a escrever. Silenciar minha escrita foi consequência, todavia, não da escassez de palavras ou da falta delas, mas do luto pela definitiva ausência daquele que me lia e que me compreendia na escrita e no silêncio.

Sempre que diante da folha em branco, era nele que eu pensava primeiro e, só de pensar, já me vinha a vontade de escrever e de caprichar no texto. Caprichar? Sim. Deixar as frases bem torneadas, usar palavras escolhidas e, eu diria mesmo, escrever com leves toques cor-de-rosa, para dar ao texto certas sutilezas femininas, por mais politicamente incorreto que isso seja nos dias de hoje. Esse exercício contínuo de estar atento àquele que nos cativa reforça sua presença dentro de nós. Quem ama é habitado pelo amado, e vice-versa.

Para mim, escrever pensando naquele que mais profundamente me lia foi um jeito infalível de dar continuidade àquela deliciosa sedução que atualiza o amor no tempo. Quem viveu, no mínimo, da metade em diante do século XX, que o diga. Amores espetaculares. Grandes despedidas. Arrebatamentos. Algumas decepções. Saudades. Mas há o tempo. A juventude e a beleza que lhe é inerente, — ambas tão fugazes —, nos abandonam um dia. É preciso então reinventar a sedução e mesmo o amor. Cupido é criança, é cego e anda armado. Mantê-lo cativo, portanto, demanda o manejo de uma arte. Não mais naquela versão dos vinte anos, alimentada de hormônios, explosiva, glandular, plasmada no corpo que tantos, tão desesperadamente, tentam conservar, mas outra, uma versão mais sofisticada eu diria, que não apela aos sentidos, mas à memória deles. Afinal, seduzir é atiçar a imaginação.

Digressões à parte, fato é que, às vezes, o amor acontece na vida real. Ele sequestra e envenena duas almas e as mantêm unidas, mesmo quando a vida separa os corpos, mesmo quando estes sofrem com as agruras das enfermidades, mesmo quando o amor não convém. Amarração apesar de todas as circunstâncias e de todas as inconveniências. Há amores teimosos. Insistentes. Há amores felizes e também infelizes. Há amores óbvios, sob medida. E há os nossos, muito particularmente.

Contudo, não obstante sua tipologia ou sua pertinência, um dia o amor acaba. Não necessariamente ao mesmo tempo para ambos os envolvidos. Num processo que varia muito, lento, doloroso, violento ou angustiante, o amor se vai. Outras vezes, porém, ele é interrompido pela morte. A morte é clássica. Nem a Igreja, que pretende exercer a prerrogativa da salvação das almas, ousa contrapor-se ao fim do amor pela morte.

Das perdas que se têm, muitas são naturais e sabemos, desde certo tempo de vida, que haveremos de lidar com elas.  Dessas perdas, entretanto, talvez nenhuma seja tão drástica quanto a do ser amado. Inacreditável primeiro, sua irrealidade precisa ser suprida. Nascimentos e óbitos só acontecem nos cartórios: são tão inacreditáveis que demandam certidões. Não há espaço para o faz de conta. Não há como negar a morte, e é preciso vivê-la como imponderável que é, como tenho feito, ao longo de dias que não são mais os mesmos, de semanas que não se contam, e de meses que nenhum calendário nomeia. Vive-se um tempo repleto de vazio, cuja legenda, se houvesse, seria nunca mais. Morte sem cadáver, sabida de longe, por mensagem. Morte que, mesmo chegando diariamente a tantos, é sempre única. Morte anunciada, que há alguns anos espreitava o meu amado. Cercava-o, sedutoramente como outra mulher, e depois recuava, na última hora, tantas vezes, que eu já a acreditava amiga. Um fim anunciado. As últimas semanas eu já as vivi em dias sem amanhã, porque prevenida por ele, quando cantarolou para mim uma mensagem gravada em áudio: Giorni senza domani e il desiderio di te. Era a Casa d’Irene. Ele sabia ser muito sutil quando queria.

Mas a morte chegou. Ela concluiu sua parte e mais um pouco ainda, quando não me instruiu acerca do que fazer de mim agora sem ele. Que fazer de tantas e tantas palavras que eu ainda tinha a escrever? Que fazer diante da perda do destinatário da minha escrita, desde sempre, desde que eu nem sabia quem ele era, e ele tanto menos de mim conhecia. A escrita nos uniu, perante o divino sacerdócio das palavras que, uma vez dada aos homens, deu-lhes corpo e divindade. João não me deixa mentir: no princípio era o verbo. A carne veio depois. Exatamente como foi comigo e com ele. Porque o amor é mágico e poderoso. Supersticioso, louco, mas nada pode frente à morte. Convenci-me assim de que poria fim à minha escrita, tornada ela Julieta, suicida pelo desengano, buscando seguir o seu Romeu. Por algum tempo tal banalidade me consolou: nunca mais vou escrever ― dizia-me.  Depois pensei justamente que, por ser tão óbvia, ― e de duvidosa dramaticidade ―, esta não poderia ser uma escolha minha. Seria preciso vivenciar o luto pela perda daquele que, por tanto tempo, fora o destinatário de todos os meus pensamentos, palavras e obras, fossem eles santos ou profanos.

Prolongada e dolorosa despedida que me impedia de escrever. Angústia paralisante que me levava pelos caminhos da dor e da escuridão. Que me impedia a escrita, única alma que tenho, solitária entidade metafísica que me habita e na qual me reconheço. Alma silenciada, essa escrita recaía muitas vezes em obituários de vaidades, mais próprios a catalogar dores, a lamentar laços perdidos, mesmo os mais frouxos. Seria, para mim, demasiado óbvio chorar, por escrito, uma morte que nem mesmo me pertencia.

Por mais que os lugares comuns das saudades atinjam a todos quase da mesma maneira, eu não queria me enlutar, não convencionalmente ao menos. Seria inusitado. Quanto mais porque nunca protagonizei, naquela vida que se esgotou para o mundo, qualquer papel convencional. Liberdade e independência cobram solidão. Solidão combina com escrita. Mas eu nada conseguia escrever desde que aquela morte me acontecera. Descobri aí uma morte pronominal: que me afetara e não a ele. Não se tratava mais de pensar o morto, mas de pensar a morte em si, e o que ela me dizia daquele que me levou. Foi assim que caí presa de uma estranha perversão que quase me impediu por um bom tempo de escrever. Eu desenhava e pintava, coloria o papel e só depois me permitia decifrar uma dor transformada em cores, riscos e palavras, que me chegavam em breves notas, cheias de sentidos ocultos, exatamente como faziam quando eram por mim escritas àquele que se fora. Partida imperdoável.

Descobri que o culpava, porque ele desertara de mim. Abandonou-me na vida, entregue ao mundo, levando com ele todos os sentidos. Eu experimentava saudades e raiva. Esse sentimento tão mesquinho, quase odioso, não inspirava qualquer escrita, mas fazia-me riscar o papel, colorindo-o de mil maneiras. Foi preciso reaprender cada palavra depois, explorar o sentido de cada verbo e de cada frase diante de imagens que me apareciam como se viessem do além. Inventei Nunca Mais, morada dos mortos. Inventei Sinistro, lugar terrível, à beira do Estige, onde moram todos os que sentem saudades. Inventei lugares onde se vive a olhar para janelas abertas, onde há flores em vasos e vasos sem flores, imaginando que um dia o olhar de quem partiu pode descobrir que ali se vive ainda. Inventei gavetas e cortinas que, abertas ou fechadas, emprestavam alguma dinâmica a sentimentos tão contraditórios e densos, disputando a enorme sombra que ficou no lugar daquele que foi embora sem se despedir de mim. Inventei flores que eram sinos que tocariam sem parar, e outras, muito azuis, que floresciam em troncos ressecados. Inventei novas cores até. Pintei, desenhei e escrevi obsessivamente para criar com isso um luto que fosse apenas dele e que ninguém mais no mundo pudesse sentir ou imitar. Lancei-me contra a morte, amaldiçoei a fatalidade e persisti, sozinha contra o tempo: perene ameaça que retira até a força do veneno das flechas de Cupido.

Penso que a morte, assim como a vida, não tem nem faz sentido algum. Sempre me recusei às entregas místicas, ainda que conheça bem seu potencial como inspiração. A perda de sentidos, porém, é apanágio dos loucos e dos desesperados. Muito por conta disso é que a sanidade dos homens não dispensa a criação de significados, seja para justificar a vida, seja para explicar a morte, não raro negando-a como tal. Há muitas respostas prontas, na medida para quase todas as vidas e para quase todas as mortes. Basta aderir a uma fé ou crença. Os mais filosóficos que religiosos não buscam menos tais sentidos que encontram em filosofias de varejo ou de atacado, que vão da lógica formal até o absurdo mais completo e ainda além deste. Misticismo e lógica disputam entre si o primado da verdade, e mesmo dentro de nós há muitas lutas antes que se faça o silêncio e, depois, a angústia, que nos ensina que a morte existe e que ela é de uma realidade brutal.

Não há retorno possível, nunca mais. Além do inútil desespero, contudo, existe ainda a minha palavra que se lança contra o tempo, a fatalidade e a morte, esses três desconhecidos que devo afrontar, apesar de saber que agora não há mais o destinatário desta escrita, transformada em oração de quem não sabe rezar, mas sabe escrever, sempre, Rogério.

REVISTA VIDA BRASIL