15 de novembro de 2021

Mediocridade como opção


Pode a mediocridade ser uma opção? Eu diria jamais. E diria jamais em caixa alta, grifando as maiúsculas, bem como não se deve fazer. Mas isso é coisa minha, e eu sou o ponto fora da curva. A mediocridade é um horror. Assombrosa e viciosa. Consegue tirar o colorido das coisas, consegue extrair a originalidade de tudo, consegue tornar tediosa a mais bela melodia. É a média mediana ajustada, adaptada e conformada. É o prêt-à-porter e o prêt-à-penser. É gente que deforma os próprios talentos, ajustando-os ao sistema da moda, da mídia, do cool e do cult. É gente que segue o rebanho sem reclamar, que procura a manada e obedece sem discussão. Gente que inventa que é feliz, depois publica o que entende por felicidade e espera ansiosamente pela chancela dos seguidores. É gente que se deixa estandardizar na expectativa de se tornar original.

Mas preciso me explicar. O fato de eu criticar a mediocridade, não significa dizer que eu viva glamourosamente. Bem ao contrário. Não há holofotes ao meu redor. Antes sou o que existe de mais comum e rotineiro aos olhos de quem me enxerga, mas não me vê. Porque viver pode ser simples, sem ser por isso menos intenso. Acredito que todos os instantes devem ser recebidos e vividos de maneira plena, ou seja, em sua originalidade mais profunda, marca de nosso próprio eu que é simplesmente o que ninguém mais é. É um modo de ser e de viver que olha para o mundo e para a vida sem outra mediação que não a dos sentidos. Ah, sim, isso causa algum estranhamento por aí, e já me valeu o atributo de pêndulo. Verdade que um apelido bem mais elegante do que seria uma mera bipolaridade, tão em moda ultimamente. Todavia, não se trata de variar de lá para cá, mas de se abrir para o que há de particular na generalidade das coisas. Uma fórmula simples, mas funcional, quando se trata de beber a água da vida sem nunca saber quando seu sabor será doce ou amargo, — e que me compreendam os simbolistas, se houver ainda algum perdido por aí.

Mas do que estou falando, afinal? De ninguém e de muita gente. Daquele que já me escreveu um dia que amava livros, mas que eles acabaram silenciados por obra e graça de uma esposa que só vibrava na frente da TV, especialmente aos domingos. Lendo isso num e-mail enviado para mim há exatamente onze anos atrás, fiquei imaginando a cena. Creio que hoje ele já esteja ajustado à programação dominical. Era talentoso. Curioso e original. Nunca mais me escreveu para falar de livros ou mesmo de si. Temo que se tenha deixado absorver inteiramente pela cara-metade com quem divide a cama e os humores. Há também outro que amarga a existência ao lado de alguém cujas limitações cognitivas são indisfarçáveis, mas que se esforça para não admitir o quanto isso o afeta. Eu teria mil outros exemplos. Creio que fazer concessões desse tipo passou a ser tão banal que não vejo muita gente reagir. Na verdade, muitos nem chegam a se indignar. Simplesmente aceitam, quando não inventam uma desculpa que justifique tanto a opressão quanto o opressor. Conformismo e adaptação. Duas palavras que resumem uma fórmula para se viver a vida de modo rápido e indolor, quando esta deveria ser a fórmula mais adequada à nossa morte.

Que posso dizer sobre isso? Nada que seja de muito proveito, exceto para mim mesma, como reflexão que fica escrita e à qual posso voltar, quem sabe, daqui a algum tempo. Nunca me conformei com aquilo que me contraria. Posso ser vencida pela força ou pelas circunstâncias. Já fui muitas vezes. Posso perder. Já perdi, aliás, tudo o que mais amava. Já caí, inclusive de joelhos. Apanhei muito, é verdade, mas bati mais ainda. Apesar de tudo, conheço o meu norte e não vacilo, por uma espécie de maldição que muitos chamam de ceticismo cínico, mas que eu tenho como a minha lucidez. Insisto, teimosamente, que cada instante, cada breve minuto de vida, traz consigo uma dose grande ou pequena de imponderável. Por isso procuro me fazer presente e atenta à vida e ao tempo que a constrói, tudo para descobrir o que há de mágico nas rotinas mais ordinárias: no caminho das formigas numa calçada, no barquinho de papel que navega na água da chuva acumulada na sarjeta, na originalidade que se esconde no que há de mais banal, como as ideias que coloco por escrito nesta madrugada para você me ler amanhã, como leria, se ainda estivesse por aqui.

Contudo, por uma questão de escrúpulos, de coerência e de honestidade intelectual, devo admitir que a mediocridade, ainda que me pareça aterrorizante, pode ser uma escolha segura, uma opção consciente e, sobretudo, vantajosa. Penso que isso merece algumas considerações.

A opção pela mediocridade é um caminho fácil. Basta seguir o rebanho que mais combina com o seu passo. Decore frases feitas. Leia o jornal mais vendido. Adote a opinião do colunista que tem milhões de seguidores. Ouça atentamente o guru facilitador que lhe ensina tudo sobre filosofia num curso online de poucos dias. Grátis, desde que você se inscreva no canal dele, dê um like e toque o sininho. Aprenda a dormir bem com o remédio da moda. Controle seu gênio e sua ansiedade com outro comprimido e não hesite diante do canabidiol, que pode ser obtido do modo tradicional ou com receita médica atualmente. Sexo cinco estrelas é possível em qualquer idade graças à pílula azul. Ser feliz não é difícil, e você vai ver isso acontecer logo depois que os amigos elogiarem sua nova foto de perfil com aqueles filtros mágicos e tudo o mais. Todavia, se as coisas ainda assim não andarem bem, há sempre um mestre de plantão para aconselhar você espiritualmente. Não tema as mudanças. Torne-se vegano, por exemplo, ou frequente um grupo alternativo qualquer, tipo oficina literária. Porque você sempre sonhou em se tornar um escritor. E os mestres sempre disseram que os sonhos são possíveis, desde que você não acorde, evidentemente. Malhe bastante na academia e transforme seu corpo. Se não der certo ou demorar muito, atinja suas metas com estimulantes, suplementos, hormônios ou silicone. Enfim, saia por aí e descubra quem você é. Pergunte à astrologia, à numerologia, à cabala ou ao tarô. As esfinges disputam você em cada esquina. Bem, é verdade que isso tudo não vai trazer resultados imediatos, mas você poderá sempre dizer para si mesmo que está no caminho da realização pessoal, rumo a tornar-se uma pessoa política e ideologicamente correta, desde que tome, evidentemente, o rumo certo.

Isso vai lhe custar algum dinheiro, é verdade. Mas não se assuste. Há padrões para todos os bolsos nesse campo minado de ofertas, fora aquilo que é absolutamente grátis. Só há uma coisa que você deverá investir com prodigalidade: o seu tempo. E não apenas o tempo que o seu relógio mede. Você precisa gastar o seu tempo existencial, porque é você que se desgasta para ser outro. Conforme seu investimento for maior ou menor, o resultado a gente já sabe: você se torna mais um sujeito feliz, integrado e globalizado, pronto para dizer sim a esse patético mundo novo. O que você está esperando para se decidir? Dentre as mais diversificadas franquias para ser ou para pensar, há uma sob medida esperando por você: basta apenas acreditar, e investir, naturalmente.