27 de fevereiro de 2009

Pele de Asno

Tarde de sexta-feira, deveres cumpridos, telefone sossegado e na paz da 407. Nada melhor que percorrer as minhas estantes e empoeirar as mãos. Vadiando pelos livros, abro Pele de Asno de Balzac e reencontro tantas passagens que sublinhei quando pela primeira vez li este estranho romance místico do incomparável gênio. Ah! Ali diz que um homem não é inteiramente miserável quando ele é supersticioso, porque uma superstição é freqüentemente uma esperança...
Como é bom marcar os livros tão amados, anotar as suas margens, grifar palavras, distribuir setas e exclamações. Eu me encontro comigo mesma quando revejo essas passagens destacadas, como se uma secreta sabedoria me fizesse ali postar recados para mim mesma. Tempos depois, encontrar os traços de uma inspiração, aviso ou promessa. Acho que hoje o ocaso me trouxe justamente a este livro, porque foi ele o que, não sem dificuldade, li durante um carnaval de repouso forçado há uns quatro anos. Nele há a descrição de um velho. E de um talismã. Procuro. Mas encontro outra coisa no capítulo dedicado à mulher sem coração, mulher que descubro descrita pelo personagem que escreve na primeira pessoa: Ela me recebe com esta fria polidez que dá aos gestos e às palavras a aparência de um insulto. Ah! Não era isso. Hoje as mulheres ficaram para Nietzsche aqui nos Ácaros. Queria encontrar era a descrição do velho antiquário onde a misteriosa pele de asno aparece no romance. Encontro.
Balzac criou-o seco e magro, vestiu-o com uma roupa de veludo negro fechada por cordão de seda preso em torno dos rins. Sobre a cabeça, uma boina também de veludo negro, da qual escapavam mechas de cabelo branco. Tinha ele uma fineza de inquisidor. Era impossível enganá-lo, pois parecia ter o dom de surpreender os pensamentos no fundo dos mais discretos corações. Assegura-nos Balzac que, ao olharmos para este eremita, encontraríamos nele a tranquilidade de um Deus que tudo vê, ou a força orgulhosa de um homem que viu tudo. O misterioso talismã impressiona. O velho explica que a indústria do levante tem segredos que lhe são particulares.
Na pele havia gravada, em caracteres de escrita oriental, esta estranha passagem, disposta com destaque em forma de um triângulo invertido: SE TU ME POSSUÍRES, POSSUIRÁS TUDO. MAS TUA VIDA ME PERTENCERÁ. DEUS O QUIS ASSIM. DESEJA, E TEUS DESEJOS SERÃO REALIZADOS. MAS REGRA TEUS SONHOS PELA TUA VIDA. ELA ESTÁ AÍ. A CADA QUERER, ENCURTAREI TEUS DIAS. TU ME QUERES? TOMA-ME. DEUS TE CONCEDERÁ. SEJA!
O romance prossegue, contando-nos uma das mais belas histórias sobre a realização mágica de nossos desejos, ― magia da qual todos somos capazes, ― sobre poder e realização que aparecem numa trama aparentemente comum que vem, todavia, permeada de mistérios, romance e estranhas coincidências. Pertenceremos a nós mesmos ou aos nossos desejos? Essa tocante história é uma das mais geniais análises do querer e da ousadia das realizações. Da sabedoria que daí resulta, aprendizado silencioso e profundo.
Quanto sou grata à generosidade de Balzac. Tenho a nítida sensação de que ele, eternamente presente em sua obra, me inspira e me concede ainda o dom de poder admirá-lo.

Do Crepúsculo dos Ídolos

Desconfio de todas as pessoas com sistemas e as evito. A vontade de sistema é uma falta de lealdade.

Dizem que a mulher é profunda ― por quê? ― se nela jamais chegamos ao fundo. A mulher não chega a ser nem mesmo plana.

O homem criou a mulher ― com que, afinal? ― Com uma costela de seu deus ― de seu "ideal"...

Entre mulheres. ― "A verdade? Oh, não conheces a verdade! Não é ela um atentado contra o nosso pudor?"

Que importa que eu tenha a razão? Tenho razão demais. ― E ri melhor hoje quem ri por último.

Nietzsche

O Nascimento de uma Idéia

Não há regras a dar para fazer nascer em um cérebro, a propósito de uma observação dada, uma idéia justa e fecunda que seja, para o experimentador, uma espécie de antecipação intuitiva do espírito na direção de uma pesquisa feliz. A idéia, uma vez emitida, pode-se apenas dizer como se deve submetê-la a preceitos definidos e a regras lógicas precisas, das quais nenhum experimentador saberia afastar-se; mas sua aparição é sempre inteiramente espontânea, e sua natureza, inteiramente individual. É um sentimento particular, um quid proprium que constitui a originalidade, a invenção ou o gênio de cada um. Uma idéia nova aparece como uma relação nova ou inesperada que o espírito percebe entre as coisas. Todas as inteligências se parecem sem dúvida, e idéias semelhantes podem nascer entre todos os homens quando de certas relações simples entre objetos que todos podem compreender. Mas, como os sentidos, as inteligências não têm todas o mesmo poder nem a mesma acuidade, e há relações sutis e delicadas que só podem ser sentidas, compreendidas e desveladas pelos espíritos mais perspicazes, melhor dotados ou colocados em um meio intelectual que os predisponha de uma maneira favorável.
Claude Bernard

Coisas Doces

25 de fevereiro de 2009

Palavras Desacreditadas

Fora com esses termos otimismo e pessimismo, usados até o enfado! Pois, o motivo para empregá-los falta sempre mais dia após dia: somente aos faladores é que hoje são ainda inevitavelmente necessários. De fato, por qual motivo no mundo haveria alguém de querer ser otimista, se não tem mais razão alguma para fazer apologia de um Deus que deve ter criado o melhor dos mundos, sendo ele próprio o bem e a perfeição? Qual é o ser pensante que ainda precisa da hipótese de um Deus?
Mas também falta qualquer motivo para uma profissão de fé pessimista, se não se tiver interesse em contrariar os advogados de Deus, os teólogos ou os filósofos teologizantes e expor vigorosamente a tese contrária: que o mal reina, que o desprazer é maior que o prazer, que o mundo é uma obra mal feita, a manifestação de uma má vontade para com a vida. Mas quem se preocupa ainda com os teólogos? ― Excetuando os teólogos? ― Abstração feita de toda a teologia e de uma guerra contra ela, é evidente que o mundo não é bom nem mau, bem longe igualmente de ser o melhor ou o pior, e que esses conceitos de bom e de mau só tem sentido com relação aos homens e que até da maneira como são habitualmente empregados talvez mesmo neste caso não se justifiquem: a concepção do mundo injuriosa ou enaltecedora é coisa de que temos em todo caso de renunciar.
Nietzsche
Humano, demasiado humano.

22 de fevereiro de 2009

Honestamente...

AS CARTAS XVII


Carta de Francisco para Maria de 30 de setembro de 1924.
Maria,
Afastado de ti, mas não separado, que isso é impossível, eu sofro à míngua da sensação física do teu amor, sem as projeções afetivas do teu ser amante e amado. Que eu te amo muito! E sem a carícia de veludo dos teus olhos, sem o perfume matinal e bom do teu corpo, sem o prazer amável do teu contato, sem a harmonia musical da tua voz, longe de ti, enfim, eu não vivo, porque tu és a fonte da minha vida. E eu vivo para amar. Vim ao mundo para não fazer outra coisa que não seja amar. E não só amar, mas sentir o amor. E esta é a maneira suprema de viver a vida, através do amor em todas as suas cambiantes de alegria e dor, prazer e alegria. E, eu creio, o amor é o mais alto motivo de viver dos homens. Nasceram dele, e por ele vivem.
Doente, criei o meu universo próprio, cheio de recordações de um passado na aparência remoto, e tu és o centro desse universo. Para esse centro convergem todas as manifestações da minha vida, a vida do teu
Francisco

PS.: Recebeste a minha carta datada de 24, 25 ou 26 do corrente? Responde-me. 30-09-1924.

11 de fevereiro de 2009

Wilhelm Stekel (1868-1940)

Este psiquiatra austríaco, colaborador de Freud, Jung e Adler, foi também um talentoso escritor, dispensando o emprego da linguagem técnica, de sorte que ao lermos os seus livros temos a impressão de estarmos diante de um romancista talentoso.

"A vontade de viver exige pesadas tarefas: a renúncia aos sonhos. Exige também nosso esforço para sentir e configurar artisticamente a coisa em si, a nua realidade, a arte, a natureza e a vida. Para isso vive o homem: para forjar sua vida, cultivar suas habilidades e adaptá-las à realidade de sua existência, amar e sofrer, vencer e ser vencido, esperar sem medo o fim no qual seu romance cheio de segredos se perde na verdade do infinito".
W. STEKEL, La voluntad de vivir.

Simone de Beauvoir (1908-1986)

Da polêmica companheira de Sartre, em La Force de L’Age, Gallimard, Paris, 1960.

Nós não pertencemos a nenhum lugar, a nenhum país, a nenhuma classe, a nenhuma profissão, a nenhuma geração. Nossa verdade está além. Ela se inscreve na eternidade e o amanhã a revelará: nós somos escritores.


O surrealismo me marcou, porque eu encontrei nele uma espécie de sobrenatural...
O mundo se abriu em um novo dia no instante que eu vi, no trabalho, a fonte e como que a substância dos valores. Nada jamais me fez renegar esta verdade, nem as críticas que suscita em mim o fim do "Capital", nem aquelas que encontrei nos livros, nem as doutrinas sutis dos eonomistas mais recentes.

9 de fevereiro de 2009

AS CARTAS XVI



Carta de Francisco para Maria de 25 de setembro de 1924.

Maria,
A tua carta, fosse ela “medicinal”, e eu estaria curado do meu mal orgânico, como por ela estou de um mal sentimental... Interrogas... Direi: “Não é nada...” Dirás: “São os nervos...” Que sejam... O que importa é que eu o esqueça. E isto é fácil, na fuga vertiginosa do tempo, que sepulta depressa as nossas emoções as mais vivas. Tudo passa na vida... E isso é um bem, que, não raro, esconde uma tristeza: a tristeza do fim... Falas na minha enfermidade. Culpas-te, injustamente, da minha recaída. Nada mais falso. Se há culpado, o único sou eu. E nem sei se eu ou a moléstia mesma, por sua rebeldia. Entretanto, estou resignado. Demais, quase já tenho como natural esta posição, na cama, nada natural. É um estado anormal que se normaliza. Mas que Deus não permita que ela se efetive! E que ele não ouça também tanta doidice. Tenho que, no tempo de quinze dias, estarei restabelecido, usando, como usarei, com um rigor religioso, os teus conselhos. “Tudo pela minha dama!” A vida, ou a morte! E, em amor, querida, o morrer é viver eternamente por ele.
E me advertes, com filosofia, que “a saúde é a maior riqueza”. Por isso mesmo que a desprezo e maltrato. Eu sou liberal... Ah!... Perdoa-me, meu amor. Perdoa-me a ironia. Ela me atraiçoou, e fugiu pela pena. Não foi por querer.
Quando cheguei ao fim da tua carta, não fiz “cara feia”, mas sorri. E do meu sorriso caiu um beijo que envolveu o teu nome, e vai vestida de amor a mão que o escreveu, a mão que tem o meu sonho,
o sonho do teu
Francisco

8 de fevereiro de 2009

Os Animais

A ingratidão do homem para com os animais é ainda mais cruel do que para com as árvores. Mesmo o termo ingratidão não é de todo exato. Eu deveria dizer imprevidência, crueldade e sempre estupidez.
Para dizer a verdade, a palavra que melhor convém aqui é uma palavra alemã que responde, sem dúvida, − pois que reina na língua alemã, − ao espírito alemão. A Schadenfreude, quer dizer, a alegria de fazer o mal. Felizmente este substantivo não tem equivalente na nossa língua francesa.
Ainda que Schadenfreude seja uma palavra alemã, eu não cuidaria de acreditá-la reservada a tal ou qual povo. Entre todos os homens, mesmo aqueles que não são alemães, em graus diversos encontra-se o amor pelo mal, o prazer da destruição, o ardor brutal contra seres inocentes e inofensivos.
Na Espanha, a grande paixão, que é devoradora, que absorve tudo, que faz calar todas as querelas, políticas, sociais, religiosas, familiares, são as touradas. Um touro adquirido a alto preço para este dia de festa é levado à arena. Então, cercado de inimigos covardes, cujas armas são irresistíveis, ele vai propiciar o longo espetáculo de seu sofrimento e de sua morte, morte dramática que rejubila e inflama todo um povo. Primeiro ele se recusa, magnânimo, ao combate, mas o homem não lhe permite ser magnânimo. Ele é provocado por espetadas que fazem correr seu sangue e o estimulam a uma cólera justa. Contra ele, são conduzidos cavalos que ele fere a chifradas. A luta desigual prossegue até que, sangrento, esgotado, ele cai, lançando um olhar de angústia contra seus carrascos.
Enfim, o sacrificador chega, bem protegido por um cortejo imponente de banderilleros e, quando o pobre animal não tem mais que um resto de vida, o toureiro a liquida. Então o delírio da multidão não se contém mais. Ela urra, sapateia... Esta agonia de um nobre animal é o mais glorioso prazer que ela inventou.
Em outros países, lança-se contra um cervo, − esse corredor gracioso, que foi outrora o ornamento de nossas florestas, − uma tropa de cães ávidos. Senhoras bem arrumadas, senhores vestidos de vermelho, conduzem a caça. Que alegria quando, esgotado pela corrida desenfreada, tremendo de angústia, de fadiga, de terror, o infeliz ser é apanhado por uma matilha feroz que o devora ainda vivo!... E é uma honra insigne poder dar-lhe então, sem perigo, o golpe mortal!
Adiante ainda, são os pombos, esses seres de instintos misteriosos e profundos, tão alegres, tão ternos… Se lhes fazem cair sob os golpes dos caçadores, − caçadores ou assassinos, − e os pobres pássaros vão às dúzias, − a cem metros do campo de tiro, desplumados, aviltados, sangrando, − expiar, por uma agonia cruel, a glória de haverem sido feitos de alvo pelo homem.
É verdade que o homem poderia adotar outros alvos, igualmente aptos a provar sua destreza: bolas de vidro projetadas por um aparelho automático! Mas essas bolas de vidro não têm vida! Um pombo vive! Um ser a matar! É bem mais divertido!
Em todas as aldeias, indígenas, mulheres, velhos e crianças, obstinam-se contra pequenos pássaros.
Para capturá-los, não há esforços que eles não empreguem.
Armadilhas, alçapões, ciladas, iscas, fogo. Ora, esses pequenos pássaros são uma minúscula porção de carne. Seriam necessárias três dezenas desses animaizinhos para satisfazer a gula de um comedor medíocre. Do ponto de vista alimentar, é menos que nada. E por esta parcela de alimento todos os aldeões de todos os países sacrificam milhares de seres, os mais encantadores da natureza, toutinegras, papa-figos, tentilhões, pastorinhas, hortulanas, verdelhões, reizinhos, rouxinóis, cujos cantos alados nos poderiam extasiar, se não fôssemos selvagens. Que inexplicável estupidez torcer o pescoço de um desses pequenos seres, pouco ferozes, que nos seguem com um olhar espiritual e amigo, quando passeamos pela floresta; que saltam de galho em galho, brincando diante de nós; que destroem o verme e os animais nocivos, que lançam suas cores e suas canções em nossas vidas fastigiosas.
As crianças atiram pedras nos ninhos e sobem nas árvores para destruí-los. O mais pobre camponês tem um fuzil para matá-los; cada habitante do vilarejo os põem na gaiola. Em certos países, leva-se a crueldade a ponto de perfurar os olhos de uma avezinha cativa, para que ela cante com toda força e atraia, com seu canto, suas irmãs em direção à pérfida armadilha. Que alegria ter, numa bela manhã de outono, presas num saco, dezenas dessas adoráveis pequenas vítimas! Não para que se produza uma insuficiente refeição, mas para que se dê pleno curso ao amor à destruição. A Schadenfreude continua.
Tentou-se erradicar essas matanças inúteis.
Para quê? Que pode valer um decreto municipal contra a Schadenfreude?
Havia, outrora, na América do Norte, magníficos rebanhos de bisões. A caça fez-se aí apaixonante, porque ela dava a aparência do perigo, o que é delicioso. E então, contra esses infelizes bisões, o homem, provido de armas muito poderosas, organizou batidas tão mortais que os bisões desapareceram.
Do mesmo modo, aniquilaram-se, nos mares gelados dos Pólos, as baleias. Assim, nas margens do Pacífico, inocentes legiões de focas em cuja carnificina o governo acreditou, − tarde demais, porém, − ser necessário intervir. O mal estava feito. As focas vão desaparecer.
E eis como, graças ao furor destrutivo do homem, perecem belas espécies animais!
Uma espécie animal que se extingue! Que sacrilégio!
Nenhuma força, nem humana nem divina, poderá mais fazê-la reaparecer. Terminou, terminou para sempre!
Da mesma forma podemos nós prever que logo o homem terá conseguido aniquilar a maior parte das admiráveis formas vivas que enfeitam a terra. Cupidez e estupidez juntas! Porque, assim como o avaro mata a galinha dos ovos de ouro, o homem será, por sua imprevidência, arruinado sem esperança.
O futuro que o homem prepara para si é tão pouco recreativo, tão pouco elegante. Em face de animais vivos, − à parte os insetos malfazejos que continuarão a pulular, − nós não conheceremos mais que as espécies domésticas: gatos, cachorros, cavalos, asnos, vacas, ovelhas, cabras, porcos, galinhas, cisnes, galinhas-do-mato, patos, gansas, perus. A visão e o olfato poderão satisfazer-se amplamente nessas pocilgas, nessas estrebarias, nesses currais, nesses imensos estábulos. Talvez, para o prazer da caça, deixar-se-ão sobreviver algumas perdizes, alguns coelhos, alguns cabritos, algumas lebres. Mas isso será ainda criação doméstica, porque os faisões e as perdizes se tornarão animais de galinheiro.
Então, os tratados de zoologia serão apenas tratados de paleontologia. Se, como é possível, os bombardeios não destruírem todas os nossos museus de História Natural e todos os nossos zoológicos, conheceremos ainda, mas apenas por espécimes arruinados por vermes, ou pelos esqueletos, os macacos, os elefantes, as girafas, os ursos, ao antílopes, as zebras, as focas, as avestruzes, os cangurus, os castores, os papagaios... Nós os teremos, e vamos persegui-los, ainda que só reste deles um único com vida.
A toda parte o homem traz a morte. Ele chega ao pólo, às regiões menos hospitaleiras do globo, e ele encontra colônias de pinguins, estranhos animais que resistem a esses climas terríveis. Mas, se o homem continuar a querer visitar os pólos, as colônias de pinguins não existirão mais amanhã, a não ser em fotografias para os cinemas.
Em qualquer ponto do planeta onde ele coloque os pés, o homem se põe a destruir, com obstinado afinco, tudo aquilo que está vivo. Ele mata sem motivo e sem escusa. Todo o atavismo do bruto que está nele se revela. E ele mata. Ele mata sempre. Que o animal seja belo, elegante, doce, pouco lhe importa! Está vivo! Matemos primeiro. E ele mata!
Joseph de Maistre achou admirável esse instinto do homem.
E como a espécie humana é mais forte e mais numerosa, a resistência das espécies animais é impossível. Elas fogem diante do homem, mas o homem as persegue em seus mais seguros refúgios. Pelo ferro e pelo fogo, assim como pela astúcia e pelo veneno, ele destrói tudo. Cada indivíduo humano parece se entregar a um dever, um dever inepto e cruel, de aniquilar alguns animais a mais. Não é ele o Rei na criação? E a característica da realeza não é a de dar prova de força, impor sua dominação e sua paz, pax humana?
Ubi solitudinem facit, pacem appellat. Fazem um deserto, e chamam de paz.
Seguramente eu não levo o respeito às formas animais até lamentar o fim dos animais nocivos. O lobo desapareceu da Europa, e é bom. Na África, como a águia, como o abutre, o leão se faz cada vez mais raro. O crocodilo, o caimão, o hipopótamo, o rinoceronte, recuam diante de nossas carabinas, e logo serão representados apenas por alguns espécimes que os jardins zoológicos disputarão a preço de ouro. Seja! Eu não me entristecerei com a partida desses seres malfazejos. Mas não me impedirão de lamentar o urso, este animal sagaz, astuto, curioso, inteligente, raramente carnívoro. Eu lamentarei mesmo os macacos, especialmente os macacos antropóides, o doce e melancólico orangotango, o chimpanzé, ágil e espirituoso (tão próximo da espécie humana), até mesmo o gorila feroz, tornado tão raro hoje em dia que não resta dele mais que uma dezena de exemplares. Eu lamentarei, sobretudo, o elefante, cuja maravilhosa inteligência ultrapassa − e ainda não se está bem seguro disso − àquela do homem estúpido.
Se realmente o homem quisesse justificar sua realeza, ele deveria atacar somente os seres que lhe causam dano. Ele exerceria sua ciência de caçador e de esfolador contra os tigres que devastam a Índia, contra as serpentes venenosas que ele não fez desaparecer ainda, mesmo numa pequena ilha como a Martinica. Ele se empenharia, sobretudo, contra os insetos pérfidos, tais como moscas e mosquitos propagadores de doenças, contra os parasitas microbianos que infectam a vida de animais e vegetais. Mas fale de micróbios a um caçador. Ele rirá diante do seu nariz. Existe glória e proveito em matar uma baleia, um elefante, uma avestruz, até mesmo uma perdiz ou uma cotovia. É bem melhor que impedir a multiplicação de mil milhões de micróbios infecciosos.
Aliás, eu já disse e repito ainda, eu não sou de modo algum um apóstolo. Eu não me atenho a fazer prosélitos. Minha cegueira não chega até acreditar que a indignação sirva para alguma coisa. Ao contrário, estou solidamente convencido de que não se desviará o curso da fúria humana desencadeada.
Feroz e estúpida, irresistivelmente estúpida e feroz, dominada pela sede de destruição, a espécie humana realizará o vazio em torno dela. Certamente ela acabará por reinar, mas será sem prestígio, sobre um globo nu, do qual os campos de beterrabas, canteiros de couves, pocilgas e galinheiros serão os únicos enfeites.

Da obra O Homem Estúpido
Charles Richet
Tradução : Maristela Bleggi Tomasini

5 de fevereiro de 2009

La Bruyère (1645-1696)


É a profunda ignorância que inspira o tom dogmático: aquele que não sabe nada acredita ensinar aos outros aquilo que acaba de aprender ele mesmo; aquele que sabe muito pensa apenas que aquilo que ele diz pode ser ignorado, e fala mais indiferentemente.
É preciso rir antes de ser feliz, de medo de morrer sem haver rido.
Os homens começam pelo amor, terminam pela ambição, e muitas vezes não estão em numa posição mais tranqüila senão quando eles morrem.
Um sábio nem se deixa governar nem procura governas os outros: ele quer que a razão governe sozinha e sempre...
Um caráter bem insípido é aquele de não ter nenhum.
O deboche é, frequentemente, indigência de espírito.
Rir das pessoas de espírito é o privilégio dos tolos; eles são no mundo aquilo que os bobos são na Corte, eu quero dizer, sem conseqüência.
Parece-me que se dizem as coisas ainda mais finamente do que se pode escrevê-las.

2 de fevereiro de 2009

Ribot e os Estados Mórbidos da Atenção

Para retraçar essa marcha do espírito em direção à unidade absoluta da consciência, da qual a própria atenção mais concentrada é apenas um pálido esboço, nós não temos necessidade de recorrer a hipóteses prováveis, nem de proceder teoricamente e a priori. Eu encontro, no Castillo interior de Santa Teresa, a descrição etapa por etapa desta concentração progressiva da consciência que, partindo do estado ordinário de difusão, reveste a forma da atenção, ultrapassa-se e, pouco a pouco, em alguns casos raros, alcança a perfeita unidade da intuição. Na verdade, este documento é único, mas uma boa observação vale mais que cem medíocres. Ela pode, aliás, inspirar-nos plena confiança. É uma confissão feita por ordem do poder espiritual, é obra de um espírito muito delicado, muito hábil em observar, sabendo manejar sua língua para exprimir as mais finas nuanças.
Eu peço ao leitor que não se deixe derrotar pela fraseologia mística desta observação, de não esquecer que é uma espanhola do século XVI que se analisa em sua língua e com ideias de seu tempo; mas pode-se traduzi-la na linguagem da psicologia contemporânea. Eu vou tentar esta tradução, aplicando-me em mostrar esta concentração sempre crescente, esse estreitamento incessante do campo da consciência, descrito de acordo com uma experiência pessoal.
, diz ela, um castelo construído de um só diamante de uma beleza e de uma pureza incomparáveis; entrar aí, habitá-lo, é o objetivo do místico. Este castelo é interior, é em nossa alma; não temos de sair de nós para nele penetrar; mas o caminho é longo e difícil. Para atingi-lo há sete moradas a percorrer; ultrapassa-se os sete degraus da oração. No estado preparatório, está-se mergulhado na multiplicidade das impressões e das imagens, na vida do mundo. Traduzimos: a consciência segue seu curso ordinário, normal.
A primeira morada se atinge pela oração vocal. Eu interpreto: a prece em voz alta, a palavra articulada produz um primeiro grau de concentração, conduz a uma via única a consciência dispersa.
A segunda morada é aquela da oração mental, ou seja, a interioridade do pensamento aumenta; a linguagem interior substitui-se à linguagem exterior. O trabalho de concentração torna-se mais fácil; a consciência não tem mais necessidade do apoio material das palavras articuladas ou ouvidas para não se desviar; são-lhe suficientes imagens vagas de sinais se desenrolando em série.
A oração de recolhimento marca o terceiro degrau. Aqui, eu confesso, a interpretação me embaraça. Posso ver aí apenas uma forma superior do segundo momento, separada dele por uma nuança sutil e apreciável apenas pela consciência do místico.
Até aqui, houve atividade, movimento, esforço; todas as nossas faculdades estão ainda em jogo: agora é preciso não pensar mais, mas amar muito. Em outros termos, a consciência vai passar da forma discursiva à forma intuitiva, da pluralidade à unidade; ela tende a ser, não mais uma irradiação em torno de um ponto fixo, mas um único estado de uma intensidade enorme. E esta passagem não é o efeito de uma vontade caprichosa, arbitrária, nem do único movimento do pensamento entregue a si mesmo; é preciso entregar-se a um poderoso amor, o golpe de graça, ou seja, a conspiração inconsciente do ser por inteiro.
A oração da quietude introduz a quinta morada, e então a alma não produz mais, ela recebe; é um estado de alta contemplação que os míticos religiosos não são os únicos a conhecer. É a verdade aparecendo bruscamente em bloco, impondo-se como tal, sem os processos lentos e longos de uma demonstração lógica.
A quinta morada, ou oração da união é o começo do êxtase; mas ela é instável. É a entrevista com o divino noivo, mas sem possessão durável. As flores apenas entreabrem seus cálices, difundem apenas os primeiros perfumes. A fixação da consciência não está completa, ela tem oscilações e fugas; ela não pode ainda manter-se neste estado extraordinário e contra a natureza.
Enfim, ala atinge o êxtase na sexta morada pela oração de arrebatamento. O corpo de torna frio, a palavra e a respiração são suspensas, os olhos se fecham, o mais leve movimento causaria os maiores esforços. Os sentidos e as faculdades permanecem fora... Ainda que de ordinário não se perca o sentimento [a consciência] aconteceu-me de ficar inteiramente privada disso. Isso tem sido raro e dura muito pouco tempo. Muito frequentemente o sentimento se conserva, mas experimenta-se eu não sei que perturbação e, ainda que não se possa atuar no exterior, não se deixa de escutá-lo. É como um som confuso que viria de longe. Entretanto, mesmo essa maneira de ouvir cessa quando o arrebatamento está em seu mais alto grau.Que é, pois, a sétima e última morada que se atinge pelo vôo do espírito? Que há além do êxtase? A unificação com Deus. Ela se faz de uma maneira súbita e violenta... com uma tal força que se tentaria em vão resistir a esse impulso impetuoso. Quando Deus desce à substância da alma que se torna uma com ele. Não é, na minha opinião, uma distinção inútil esta dos dois graus do êxtase. Em seu mais alto grau a própria abolição da consciência é atingida por seu excesso de unidade. Esta interpretação parece legítima, se a relacionarmos às duas passagens mais acima: aconteceu-me de ser inteiramente privada do sentimento. E essa maneira de ouvir cessa quando o arrebatamento está em seu mais alto grau. Poder-se ia tomar outros empréstimos à mesma autora. É notável que, num desses grandes arrebatamentos, a Divindade lhe apareça sem formas, como uma abstração perfeitamente vazia. Eis ao menos como ela se exprime: Eu direi, pois, que a Divindade é como um diamante de transparência soberanamente límpida e muito maior que o mundo. É-me impossível não ver aí senão que uma comparação literária e uma metáfora. É a expressão da perfeita unidade na intuição.

Ribot, Th. Psychologie de l'Attention. Alcan, Paris, 1913. pg. 142-148.

Théodule Ribot (1839-1916)

Este psicólogo francês é considerado o fundador da psicologia científica francesa. Ribot também era formado em Filosofia, e foi o responsável pela introdução da psicologia experimental na França. Trabalhou em psicologia clínica em conjunto com psiquiatras, com o intuito de relacionar as doenças mentais a bases orgânicas. É dele um conhecido enunciado sobre a memória: as recordações mais recentes, mais complexas e sem significado afetivo desaparecem mais depressa do que as recordações antigas, simples e carregadas de emoções.
Difícil a gente encontrar livros dele por aí. Mas eu encontrei sua Psychologie de L'Attention, Alcan, Paris, 1913. Pois bem, dando uma olhada na obra de menos de 200 páginas, me deparei com um trecho interessantíssimo, porque Ribot − indiscutivelmente um homem de ciência, − debruça-se sobre uma passagem de ninguém menos que Teresa de Ávila, a santa espanhola mística, uma mulher culta que deixou uma obra notável onde narra sua experiência.
Fiquei tão encantada com o que li que não resisti ao impulso de traduzir e compartilhar essa impressionante e delicada análise. Começa na página 142, na parte onde ele analisa o que chama de estados mórbidos da atenção. Traduzi. Está aí em cima, pra quem quiser ler.