7 de agosto de 2009

Cigarro. Paixão Proibida


A caça aos fumantes tomou proporções inauditas. Estou estarrecida. Agora é lei. São Paulo proíbe o uso de cigarros e derivados de tabaco em áreas fechadas de uso coletivo, como bares, restaurantes, casas noturnas, escolas, ambiente de trabalho, museus, shoppings, lojas, repartições públicas e táxis. Os “fumódromos” foram abolidos em estabelecimentos comerciais e em ambientes de trabalho. Restam a própria casa, as vias públicas e o ar livre. Áreas comuns de condomínio também não foram liberadas, mas os cultos religiosos foram preservados, de sorte que o indivíduo que receba um “santo” ou uma “entidade” reconhecidamente tabagista poderá acender o seu cigarrinho durante o culto, desde que isso faça parte do ritual. Bem, a perda de glamour do cigarro é indiscutível. Fico chocada ao ler a que ponto chegam as patrulhas, e me assusta pensar qual será o próximo objeto dessa implacável cruzada em prol, dizem, da saúde. E da economia também, pois curar as doenças provocadas pelo cigarro custa muito caro para a sociedade. Bem, os fins sempre justificaram os meios, não é? O jeito será buscar uma nova forma de morrer aos poucos, pois as paixões nos consomem e fumar é uma paixão. Eu que o diga.

Inteirar-me desses fatos, ― tais como o da recente edição da lei paulista que varre o cigarro dos meios de convívio social, ― me faz lembrar que o cigarro foi a maior paixão de minha vida. Por anos e anos eu fumei todos os cigarros que quis. Era ritualístico. Tinha uma linda cigarreira que custou todo o salário de meu primeiro emprego. Gostava de isqueiros e gostava também de provar as novas marcas. Havia Charme e Ella. Havia Eve, com seus elegantes 120 mm e filtro decorado. Infelizmente este não cabia na minha maravilhosa cigarreira... Havia cigarros coloridos enfeitados com um anel dourado. Vinham em lindas caixas, tipo Box. Fumei todos. E fumei ainda os populares. Não vivia sem. Fumar era a primeira coisa que fazia ao acordar e a última, antes de dormir. Uma paixão, um culto, uma oração. E gostava. Gostava imensamente de fazer o tempo parar. Fumava o tempo todo, especialmente ao escrever. Chequei a consumir dois maços e meio por dia. Eu passei assim de 50 para zero de um dia para o outro. Meus lindos cinzeiros de cristal agora estão vazios. O de porcelana chinesa, todo enfeitado, agora serve para que eu coloque nele o meu pesado molho de chaves.

Quem rompe desse modo costuma dizer “parei e pronto”, exibindo sua força de vontade como um halterofilista exibiria os seus músculos. Verdade, eu parei e pronto, mas confesso humildemente que não foi bem assim, fácil como dizem alguns. Eu nunca havia tentado antes. Sempre quis fumar. Porque deixar “dele” é exatamente como vivenciar um luto. É o amigo que se foi, o companheiro, o amor, a paixão, a companhia, o apoio. Que saudade eu sentia! Ficar sem ele foi mergulhar num vazio imenso, experimentar uma ausência monstruosa que nos faz chorar de saudade daqueles momentos que só os fumantes conhecem. A gente não se sente viver. Lembra do cigarro no café, lembra dele depois do jantar, lembra dele quando assiste um filme, quando escreve. Lembra dele na hora de dormir e perde o sono. Acorda pela manhã e não sente vontade de encarar o dia sem “ele”. As esperas. Ah! Os primeiros meses foram enlouquecedores. Eu cheirava os meus cigarros, mas apenas isso. Não os acendia. Em compensação, eu seguia pelas ruas os que acendiam os seus maravilhosos cigarrinhos. Ia bem atrás, aspirando a fumaça. Rondava os fumódromos também, farejando sem disfarçar.

Deixar de fumar foi terrível, até porque não procurei “ajuda especializada”. Os chatos? Nunca! Jamais faria isso. Amava fumar e detestaria ouvir falar mal de cigarros e de fumantes. Sempre detestei ex-fumantes e seus discursos saudáveis. São chatos, chatíssimos, chatérrimos! Fanáticos, nada teriam a ver com o meu luto. Meu caso com “ele” era assunto meu. Também não usei aqueles adesivos nem tomei remédio algum. Não foi fácil. Eu nem lembrava de mim sem o cigarro, pois comecei a fumar antes dos vinte anos. Não me recordava de mim como gente separada do hábito de fumar. Foi uma fase dolorosa. Mas passou.

É inacreditável, eu sei. Mas passou e, se alguém ousasse me dizer que algum dia o cigarro me seria estranho, eu acharia graça e não daria a menor atenção. Mas passou. Olho para cigarros hoje e não sinto vontade de acender um. Entretanto, convivo muito bem com quem fuma, não me desagrada o cheiro, não me desagrada o hábito tampouco, não me desagrada o vício. Simpatizo com fumantes. Não sou mais, é verdade, mas fui um dia e gostava. Não rompi com meu passado. Não fosse o fato de ter ficado doente, não teria deixado de fumar.

Todavia, eu deixei. Fiquei só. A vontade passou, engordei uns quilinhos que, pra falar a verdade, não me ficaram mal. Meu olfato tornou-se poderoso e o paladar aguçou. Caminho hoje 80 quarteirões em um dia sem sentir falta de ar. Subo as escadas do prédio onde morro sem parar no meio do caminho. Vantagens? Pode ser. Sem dúvida, não precisar sair de dentro de um shopping para fumar, não precisar refugiar-se em algum esconderijo para acender um cigarro e dar uma tragada com pressa, como se fosse um crime ou um pecado, são vantagens das quais o fumante não desfruta. É bom não precisar passar por descomposturas, por caras feias, por discursos e sermões encontrados edificantes, despejados sobre nós sem nenhuma reserva pelas patrulhas ideológicas da brigada anti-fumo. Com tanta coisa pior a combater, perseguem-se os inofensivos fumantes. Simples apaixonados como eu fui um dia, que só fazem mal a eles mesmos. Ora, os pulmões são meus, e a tal poluição provocada pela fumaça dos cigarros não é maior nem mais agressiva do que a fumaça que se desprende dos veículos e mesmo dos incensos que tanta gente zen adora usar. Mas fumar agora se tornou praticamente um crime e não há muito que se possa fazer contra a monstruosa força representada pela opinião.

Estranho, porém, é saber hoje que o cigarro me é indiferente. Tanto esforço de vontade, tanta paixão, tanta frustração e saudade por nada. Nem lembro mais de como eu era quando fumava. Também não lembro mais, concretamente, do tipo de prazer que eu encontrava em fumar. Era bom. Só isso. Não sei como esse desprendimento aconteceu, mas aconteceu. Sou indiferente ao cigarro. Ele não me encanta mais e me pergunto que tipo de prazer eu encontrava nessa relação. Estou melhor sem ele? Pode ser que sim, mas essa questão é mais profunda do que parece. Não passei a odiar cigarros nem fumantes. Também não me alistei na cruzada atual. Não devo a nenhuma campanha o fato de haver deixado de fumar, nem meu coração e ouvidos se abriram às pregações. Além do mais, simpatizo com fumantes, essa minoria oprimida que, ao que parece, está desamparada e vivendo uma autêntica paixão proibida.