31 de dezembro de 2018

17 de dezembro de 2018

REVISTA VIDA BRASIL

Coisas que só acontecem com bibliófilos

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

C’est la vie! Chegou o dia em que o desapego se impôs. Tive de me desfazer da metade de minha biblioteca. Imposição cruel. Sacrifiquei boa parte da literatura, todas as enciclopédias ― a literária, inclusive, com seus mais de vinte volumes ―, e todos os livros dedicados a temas, digamos assim, mais leves. Foram diversos carregamentos de pesadas caixas que vi sendo levadas para longe de mim, deixando-me desolada. Em compensação, ― porque parece que sempre é preciso buscar desesperadamente recompensas aos nossos sacrifícios ―, a renúncia me impôs uma revisão geral de tudo. 

Coisas que só acontecem com bibliófilos


Procedi a um verdadeiro inventário do que possuo. Disputando o espaço centímetro a centímetro, cada um dos livros que me restaram teve de encontrar um lugar certo e inteiramente seu, vizinhando com seus pares, uma vez que tudo agora precisa estar muito organizado.
Essa dolorosa perda de muitos deles só reforçou minha ligação com os remanescentes. Há livros em praticamente todas as peças da casa. São os sobreviventes, brinco. E, se eu já mantinha grande proximidade com eles, agora essa relação se tornou absolutamente promíscua. Retomei-os. Rever, reler, reparar, colar lombadas, encapar, redescobrir. A separação de uns provocou a reaproximação dos demais e ainda felizes reencontros. Como o de hoje, por exemplo, com um livro adquirido em São Paulo, 2007, mês de julho. ― Já faz tanto tempo? Sim. ― Presente do Rogério, que me levara então ao sebo doSeu Luis, gentilíssimo cavalheiro português, com todas as suas décadas como livreiro. Foi ele próprio que, tomando da escada, buscou, no alto de uma das muitas prateleiras de seu enorme estabelecimento, um livro bastante antigo na aparência, talvez adivinhando em mim alguém capaz de dar valor a algo tão anacrônico, definitivamente.


O livro é de 1864 e foi editado na França. Trata-se do segundo volume de Vies des saints avec le martyrologe romain et réflexions morales en forme de lecture de piété pour chaque jour de l’année.Traduzindo: Vidas dos santos com o martirológio romano e reflexões morais em forma de leitura de piedade para cada dia do ano.  A obra foi aprovada pelo bispado, e é de autoria do Abade Caillet, antigo professor do Seminário de Langres. Esse segundo volume, com suas 680 páginas, é dedicado aos mártires cristãos que marcam cada dia do calendário dos meses de abril, maio e junho. Naturalmente, na prática, inencontráveis os outros volumes da mesma obra. Mas a este, é possível consultá-lo como a um calendário, ainda que incompleto. É sempre tentador também abri-lo ao acaso, como se fora um oráculo, e realizar  ― por que não? ― leituras edificantes ou, no mínimo, lúdicas.
Foi assim, ao sabor do acaso, que encontrei uma referência a São Bonifácio, apontado como o mártir cristão festejado no dia 14 de maio. Descubro que ele foi supliciado em Tarso, na antiga Cicília romana, — atual Turquia —, sob Diocleciano. Levado às portas de Roma, foi enterrado na via Latina. Sua história, ainda que sob o estatuto da lenda, me pareceu muito interessante. Divido-a com vocês.
Pois bem. O ano é 304 de nossa era, e a cidade é Roma, onde então vivia Aglaia, uma linda mulher. Uma mulher, aliás, cujas qualidades não se limitavam à beleza, porque era de origem ilustre e também muito, muito, muito rica. Para administrar sua imensa fortuna, valia-se de mais de sessenta intendentes, todos comandados por Bonifácio que, como eles, era também servo de Aglaia. Tão poderosa era ela que, por três vezes, patrocinara jogos públicos naquela cidade. Aglaia vivia, enfim, em meio ao luxo e à opulência que excitam as paixões.
Luxo e opulência na Roma antiga dos anos 300? Instigante, penso eu, até porque em seguida descubro que Bonifácio e Aglaia mantinham entre eles um comércio carnal em tudo reprovável. Sei... Impossível não pensar que, sob alguns aspectos, o mundo mudou bem pouco. Bonifácio, enfim, era amante de sua senhora. Além disso, ele costumava entregar-se também ao jogo, ao vinho e a todas as depravações. Divago por um instante, e me imagino uma leitora do século XIX, com o martirológio nas mãos, num convento talvez, descobrindo o mundo antigo e as tais depravações no livro que se propõe como leitura piedosa. Mas volto, em seguida, às páginas que agora me prendem. Diz ali que, não obstante lúbrico, apesar de voltado aos prazeres da carne e do vinho, a Bonifácio não faltavam boas qualidades. Era hospitaleiro, liberal e generoso. Se algum estrangeiro chegasse a Roma, podia contar com sua pronta acolhida, um dos encantos da hospitalidade. Sensível aos males alheios, muitas vezes ele percorria as ruas de Roma para socorrer e recolher indigentes. Era, pois, um homem de bom coração. E, muito provavelmente, bonito, penso eu, ou Aglaia não teria se interessado por ele.
Saibamos mais dessa mulher. Aglaia, apesar da fartura e dos prazeres em meio aos quais vivia, experimentava o vazio que estes, sempre transitórios, deixam na alma. — Bem, já era hora de a leitura tornar-se edificante. — Nossa heroína, entedia-se. E ela cede a uma graça interior, uma espécie de apelo divino. Por conta disso, chama Bonifácio à sua presença e lhe diz, textualmente: “Vê em que pecados caímos sem pensar que será preciso aparecer diante de Deus. Ouvi dizer dos cristãos que aquele que honrar os santos que combatem por Jesus Cristo partilharão de sua glória. Ouvi também que os servidores de Deus combatem no Oriente contra o demônio e que eles entregam seus corpos aos tormentos para não renunciarem à sua fé. Vá, pois, e traga-nos relíquias de alguns santos mártires, para que nós os honremos e para que sejamos salvos por sua intercessão.” Bonifácio, então, — pelo visto muito obediente aos desejos de sua senhora —, toma boa quantidade de ouro “para adquirir as relíquias e para dar aos pobres” e dispõe-se a partir.

Foram doze cavalos, três liteiras e muitos perfumes para honrar com eles as santas relíquias. Assim equipado, ele parte, dizendo antes a Aglaia: “Senhora, se eu encontrar relíquias, eu as trarei. Mas se as minhas vos chegarem, sob o nome de mártires, vós as recebereis?” Ao que ela lhe respondeu: “Deixa teus prazeres e pensa que vais procurar as relíquias dos santos. Para mim, pobre pecadora, espero pouco. Rogo ao Deus todo-poderoso que tomou a forma de escravo e derramou seu sangue por nós, que envie seu anjo diante de ti, te conduza, e realize meus desejos sem olhar meus pecados.”
Bonifácio partiu. Penso nos caminhos do Império, nos cavalos e nas liteiras. E percebo uma rápida, quase instantânea, transformação em nosso herói. Ao longo do caminho, ele dizia: “É justo que eu não beba vinho nem coma carne, porque, por indigno que eu seja, devo portar as relíquias dos santos.” A seguir, erguendo os olhos aos céus, acrescentou: “Senhor Deus todo-poderoso, pai de vosso único filho, dirigi minha viagem, a fim de que vosso santo nome seja glorificado por todos os séculos.” Enfim, chegaram a Tarso, onde a perseguição aos cristãos se mostrava particularmente violenta. Dirigindo-se aos seus companheiros, Bonifácio pede-lhes que procurem abrigo e que façam repousar os cavalos, porque ele iria imediatamente ao encontro do que mais desejava. E vai sozinho, então, ao lugar dos combates. O espetáculo que se ofereceu a seus olhos era, porém aterrador: santos mártires supliciados.
Um, pendurado pelo pé, sofria com o fogo aceso sob sua cabeça. Outro, amarrado pelos membros, era esticado em quatro direções. Outro ainda era serrado pelos carrascos. Havia o que teve as mãos cortadas, e o que fora colado na terra com um pé na garganta. Havia também o que tivera os membros torcidos e atados nas costas, enquanto era incessantemente espancado. Vinte cristãos eram assim atormentados. Todavia, enquanto esse espetáculo sangrento e aterrador horrorizava os espectadores, os mártires, eles mesmos aos quais se impunham tais tormentos, mantinham uma tranquilidade inalterável.

Aproximando-se de um deles, Bonifácio beijou respeitosamente suas feridas e exclamou: “Como é grande o Deus dos cristãos! Servidores de Jesus Cristo, rogai por mim, para que eu me una a vós e partilhe de vosso combate contra os demônios.” Disse-lhes ainda: “Coragem, santos mártires! Combatei generosamente! O combate é breve, e a recompensa é eterna.”
Simplício, o governador, percebendo a presença de Bonifácio, perguntou-lhe: “Quem é este que zomba dos deuses e de mim? Que ele seja capturado e conduzido a meu tribunal.” E assim foi. Acrescentou depois: “Quem és tu que desprezas a grandeza de meu tribunal?” Bonifácio: “Já vos disse. Sou cristão. Se perguntais meu nome, chamam-me Bonifácio.” Disse-lhe o juiz: “Antes que eu te faça atormentar, aproxima-te e sacrifica aos deuses.” Bonifácio: “Eu vos digo ainda que sou cristão e que não sacrifico a vossos demônios.” O juiz, enfurecido, afiou ferros e os fez introduzir por debaixo das unhas das mãos de Bonifácio, que sofreu pacientemente olhando para o céu. Ele não cede. Ordenam-lhe que abra a boca, para que nela fosse vertido chumbo derretido. Inútil. Bonifácio diz então: “Senhor Jesus, filho do Deus vivo, vinde em meu socorro e não sofrais porque fui derrotado.” Leio assombrada que o chumbo derretido não lhe causou mal algum, e que tampouco Bonifácio sofreu quando foi atirado para dentro de uma caldeira de breu. E, — garante-nos o livro —, depois de diversos outros suplícios que duraram todo o dia até a manhã seguinte, o juiz, espantado diante dos poderes de Jesus Cristo assim como da constância do agora mártir Bonifácio, ordenou que lhe cortassem a cabeça.

Interrompo a leitura por um momento. Reflito acerca da natureza das pregações cristãs. E penso até que ponto a vida real, material, humana, deveria enfrentar esses implacáveis desafios em nome da salvação. Prossigo. Descubro que os companheiros de viagem de Bonifácio, preocupados com sua prolongada ausência, procuravam-no por toda parte, dizendo uns aos outros: “Sem dúvida está em algum lugar mal frequentado, divertindo-se, enquanto nos atormentamos a procurá-lo.” Nisso, encontram o irmão do carcereiro, ao qual indagam se acaso não vira um estrangeiro vindo de Roma, ao que ele lhes respondeu que um fora martirizado naquela manhã, sofrendo por Jesus Cristo. Ouvindo isso, os companheiros de Bonifácio retrucaram, dizendo que aquele a quem procuravam era um devasso, um bêbado, que nada tinha em comum com os mártires. Todavia, a descrição do martirizado fora exata: um homem firme, forte, de cabelos crespos e louros, que usava um manto escarlate. Conduzidos para diante do corpo, qual não foi a surpresa dos companheiros que nele reconheceram Bonifácio.  “Servidor de Deus!” ― exclamaram chorando. — “Perdoai-nos o mal que pensamos de vós!”. Embalsamaram-no depois, e, envolvendo-o em linhos preciosos, retomaram o caminho de volta.

Enquanto isso, longe dali, um anjo aparece a Aglaia e lhe diz: “Aquele que era vosso escravo é agora vosso irmão. Recebe-o como vosso senhor e coloca-o dignamente. Vossos pecados serão perdoados por sua intercessão.” E assim foi. Aglaia, tocada pela mensagem, prontamente convidou eclesiásticos piedosos que trouxeram círios e perfumes. Cumprira-se o pedido profético de Bonifácio. As santas relíquias chegaram e foram colocadas em cinquenta locais ao longo da via Latina. Aglaia constrói também um oratório digno do santo mártir e, desde então, renunciou ao mundo, distribuiu suas riquezas entre os pobres e consagrou-se inteiramente a Jesus. Viveu por mais treze anos ainda, em exercício de piedade. Ela foi sepultada ao lado de Bonifácio.
Termino de ler a história e volto à realidade, depois de ter viajado no tempo e experimentado emoções que me são estranhas, a mim e a você talvez. Os livros têm esse poder de nos abstrair de nosso espaço, de nosso tempo, de nossos hábitos. Nesses percursos, todavia, a imaginação é refinada: ela pode nos levar a Roma e nos aproximar de Aglaias e de Bonifácios, em que pese os mais de mil e setecentos anos que nos separam. Fecho o martirológio, e é como se a Roma antiga por onde viajei há pouco se recolhesse, absorvida pelas páginas amareladas.  O livro volta para a estante e eu, para essa minha escrita e para você, desconhecido leitor, a quem eu confidencio que essas coisas, — acredite —, só acontecem com bibliófilos.


Autor: Maristela Bleggi Tomasini

28 de novembro de 2018

Pois é

É que eu não quis desentortar o Picasso.

26 de novembro de 2018

19 de novembro de 2018

18 de novembro de 2018

O Barão de Lavos

“A plenitude da vida, a arrogância genital, a evolução orgânica ao máximo, própria dos 32 anos, mantinham no barão ainda fortes e dominantes as tendências naturais da virilidade. Ele tinha por enquanto junto do efebo os mesmos apetites de penetração e de posse que o homem sente de ordinário para com a mulher. Todavia, em raros momentos de vertigem, ao contato da sua carne com aquela outra virilidade impetuosa e fresca, percorria-lhe os músculos, fugidio, breve, um movimento efeminado; faiscava-lhe no espírito uma pregustação de prazer que tivesse por base a passividade, o abandono; entrava de suporar-lhe da vontade uma solicitação em escorço de não se entregar, de ser possuído, de ser femeado, em suma. O que era, a um tempo, corolário do seu temperamento, é sinal patognômico do finalisar de uma raça inútil, do agonizar de uma família que vinha assim desfazer-se, podre das últimas aberrações e das últimas baixezas, na pessoa do seu representante derradeiro. Era como o início da formação de um edema de natureza moral, purulento, mole, crescendo traiçoeiramente sem dor e sem pruridos, abeberando-se farto e rápido na degradativa essência do doente, com numa esterqueira os cogumelos.”
BOTELHO, Abel. O Barão de Lavos, 1891, p. 94
Fonte: https://goo.gl/HkNWqE
Obra disponível em: https://goo.gl/x7mzbR

E a propósito, uma nota literária publicada em 1898 pelo Jornal do Recife, periódico que circulou de 1858 a 1938. A nota serve para exemplificar o tipo de repercussão desse gênero literário no Brasil:

Jornal do Recife, Pernambuco, 23 de junho de 1898, Ano XLI, n. 137, p. 2.

Pois é

Pesquisemos então. Fotografado na UERJ. 

14 de novembro de 2018

REVISTA VIDA BRASIL

A morte do homem moderno

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

É em vão que se busca o homem moderno. Ele morreu ao final do último século.De pagão na Antiguidade a obediente filho de Deus no Medievo, ele deu ouvidos um dia ao discurso de Descartes. Aos poucos, descobriu a razão, e assimilou um método que mudaria a face do mundo. Fez-se revolucionário ao depois, porque desconfiou do poder, desejou a liberdade e a igualdade.Modernizou-se, enfim. Mudou a face do mundo e a sua própria. A luz divina substituiu-se pela luz da razão e pela força da vontade.

A morte do homem moderno


O sobrenatural cedeu lugar ao natural. A natureza humana assumiu novo estatuto, inerente à ordem da vida, todavia, com plena consciência de ter consciência disso, capaz de abstrair e de valorar, capaz de dominar uma linguagem não apenas descritiva como ainda simbólica.
Por três séculos o homem construiu a modernidade.
Pouca coisa?
Não. Muita. Grande passo para uma humanidade que, por longo tempo, aceitou passivamente a tutela, se não de um deus, a de seus representantes divinos. A esse deus e seus representantes é que se deve o arcabouço de valores tradicionais que a razão, todavia, não desacreditou: antes os secularizou, esvaziando-os de sua antiga dimensão transcendente. Tais valores pretendiam representar uma ordem que se opunha ao caos, com a mesma polaridade com que o bem se oporia ao mal. Uma antítese, enfim. Porém sem a beleza daquela que o paganismo sacralizara com Apolo e Dionísio, divindades antes complementares que opostas. Velha antítese conservada em seu diapasão pragmático, que o medievo consagrou com acentuada polaridade, quando separou deus do diabo. Ordem contraposta à desordem, luz contraposta à escuridão. Eis que o bem e o mal viriam a protagonizar, por longo tempo, a divina comédia da existência. O poder temporal, visceralmente unido ao poder espiritual, é imposto em face dos homens como porta-voz do bem maior ao qual opor-se era anátema. O cristianismo, que herda do judaísmo seu fundamento teológico e arcabouço normativo, se sobrepõe ao paganismo. Não se negue, porém, o devido tributo a esse passado medieval que conferiu ao homem uma alma imortal e uma salvação individual: o ser é singular e as coletividades, por consequência, são aparentes e transitórias.
Refém de forças guerreiras, até então fantoche do destino, o homem moderno finalmente encontrou, na razão, ainda que tênue, o fio condutor que livremente escolheu para conduzir seu destino. Reaprendeu-se como homem. Redimensionou-se no mundo e na história, política e filosoficamente, ao longo de três séculos, descobrindo a si mesmo e à realidade, esfinge à qual ele interroga em lugar de a ela conformar-se.  Individualista, sim; todavia, à medida que se desprende de velhas pertinências comunitárias, o homem moderno é também massa, quando se espelha e se identifica com os grandes movimentos que vão emergir na história. Em pleno século XIX, ele substitui a fé em deus pela fé na ciência, ― geral e totalizadora também ela ―, e toma a racionalidade como guia superior, único capaz de lhe fornecer um modelo de mundo, cuja rigidez, pressuposta por convicção moral, desconfia da diversidade, elemento visto como ameaçador ao ideal de unidade histórica: um passado que explicasse o presente e preparasse o futuro. Nesse contexto, as singularidades individuais arriscam contaminar corpus fechados de ideias, o que explicaria a tendência a um pensamento único que só se acentuará ao longo do tempo.
A modernidade racional não era, enfim, sem paradoxos. E de tanto duvidar daquilo que os sentidos lhe entregavam, o homem moderno, talvez por força do próprio método que tanto lhe rendera em termos de ordem e de progresso, começou a duvidar da razão. Como resultado disso, a verdade, enfim, sucumbiu, descoberta não em sua nudez, mas em sua absoluta superficialidade. Porque se o homem moderno pretendeu a verdade, o homem pós-moderno prescinde dela.  A verdade banaliza-se: cada um tem a sua, e nenhuma prevalece sobre a outra. Isso não é sem consequência, porque tal sorte de ruptura se estende à história. Passado, presente e futuro coexistem no aqui e agora, eternamente.

Para onde foi o homem moderno que se movia pelo mundo impulsionado pela vontade dirigida pela razão? Que punha sua fé no progresso, que ora a técnica, ora a ciência lhe trariam, graças a Deus. Cada vez menos visível, ele talvez ainda se esforce para protagonizar, ao menos, aqui e ali, os valores tradicionais dos quais se acredita herdeiro. Pouco a pouco, o dono de si sucumbe aos mecanismos de dominação, que falseiam a liberdade substituindo-a por um ideal meramente formal. Neste processo, entre a coletivização comunista e a capitalização dos desejos que cria cada vez mais e maiores necessidades, direitos são proclamados à revelia da possibilidade de seu pleno exercício. Cada vez mais as gerações se deparam com mundos profundamente diferentes daqueles que habitaram seus pais. O passado é desqualificado na medida em que a existência se acelera, de sorte que a felicidade se aproxima cada vez mais da angústia, ambas despontando, porém, espetacularmente. Porque efêmero, virtualmente efêmero, é o caráter de tudo quanto hoje nos cerca.
Decepcionado pelas ideologias mobilizadoras, liberais, sociais ou nacionais que trouxeram guerras e massacres com vistas a um universalismo utópico, homem moderno assistiu a modernidade esvaziar-se de sentidos, mesmo daqueles que só a linguagem pode conferir ao mundo, por vezes tão ricamente, aliás. É que mesmo a linguagem mais nobre foi assimilada àquela dos anúncios publicitários. Mediocrizou-se. Homens e produtos disputam o mercado, cada vez mais violentamente, obedientes ao coro formado pelas vozes de multidões anônimas, ora pacíficas, ora hostis, ao sabor de suas inclinações momentâneas.
Até que a vontade do homem se tornasse a vontade do nada.


Nihil, o nada que dissolve a subjetividade, núcleo do indivíduo que agora se descobre, contudo, múltiplo, projetado nas facetas multiplicadoras das redes. No nada imagético, espelho narcísico, apaixona-se por um eu que não é senão eco de frases feitas. Descobre-se prosélito de uma religião cujo corpo doutrinal foi substituído por slogans. Ele discursa, ele grita, ele vocifera ora Paz, ora Justiça, podendo escolher, ― #malmequer, #bem-me-quer ― a cada manhã, uma nova causa pela qual lutar no evento que terá lugar logo mais. As regras devem ceder diante das exceções. O denuncismo substituiu-se à capacidade crítica. Nada mais se debate, e os espíritos empobrecem. A liberdade de escolha resta profundamente comprometida. É no nada que este homem pós-moderno deposita sua liberdade. Pensa-se múltiplo, quando não está senão dividido, dissolvido na massa, nos movimentos, morto em sua subjetividade à qual renúncia, hipnotizado por paradigmas estéticos e culturais fragmentados, onde é possível acreditar um pseudo passado e pseudo futuro, velho sonho das bruxas que o medievo estigmatizara no caos que se opunha à Ordem Divina.
Releio-me. Constato não sem surpresa o quanto minha própria percepção das coisas precisa fragmentar-se, ela também, para melhor descrever o que percebo à minha volta. E ocorre-me o quanto de nostalgia encontro em minhas palavras, fruto contagioso talvez dos sonhos vislumbrados no olhar de alguns dos que me cercam. Desejaríamos ressuscitar o homem moderno, cuja carne já se desprende dos ossos? Mac Benac! Para tanto seria preciso recriar ou despertar alguém ingenuamente capaz de acreditar em verdades universais. Fugindo às decepções e aos desenganos, ele escolhe sonhar com um destino inspirado em ideais da fé, espelho divino da Lei e da Ordem. Seus sentidosdespertam, ao som mágico da flauta que o encanta. O futuro, do fundo do abismo, lhe sorri aqui e agora, reflexo insólito da ilusão que encarna a Esperança, brilhando escondida entre todos os males do mundo.


Autor: Maristela Bleggi Tomasini

2 de novembro de 2018

Quanta saudade, Alex

Encontro então fotografias de tempos atrás e, por um instante, apenas me encanto. 
Depois sobrevêm as saudades e a dor. 
Vou chorar para sempre a tua perda.






31 de outubro de 2018

Não basta

"Não basta ver para ver, é necessário olhar para o que se vê."
Vieira

27 de outubro de 2018

ORAÇÃO DE SANTO EXPEDITO

Meu Santo Expedito  das Causas Justas e Urgentes,
Socorrei- me nesta Hora de Aflição e Desespero,
intercedei por mim junto ao Nosso Senhor Jesus Cristo.
Vós que sois um Santo Guerreiro.
Vós que sois o Santo dos Aflitos.
Vós que sois o Santo dos Desesperados,
Vós que sois o Santo das Causas Urgentes,
Protegei-me, Ajudai-me, Dai-me Força, Coragem e Serenidade.
Atendei ao meu pedido (pedir a graça desejada).
Ajudai-me a superar estas Horas Difíceis,
protegei-me de todos que possam me prejudicar,
Protegei a Minha Família, atendei ao meu pedido com urgência.
Devolvei-me a Paz e a Tranquilidade.
Serei grato pelo resto de minha vida e levar seu nome a todos que têm fé.
Santo Expedito, rogai por nós.
Amém.

(Rezar 1 Pai Nosso, 1 Ave Maria e fazer o sinal da cruz)

Observação: Funciona!

25 de outubro de 2018

21 de outubro de 2018

Em casa


Esposa

"Ela tomara um ar superior, um ar de matrona gorda, de matrona inabordável, couraçada de princípios, blindada de virtudes."

Guy de Maupassant

19 de outubro de 2018

Altas inclinações

"J'étais née avec les plus hautes inclinations; mais rien ne déprave comme de ne pas être aimée."

Théophile Gautier

12 de outubro de 2018

A Senhora Samoris, por Maupassant

"A Senhora Samoris é uma mulher da alta sociedade, e tem uma filha sem que saiba quem é o pai. Em todo caso, se não teve marido, tem amantes bastante discretamente, pois é recebida numa certa sociedade tolerante ou cega. 
Frequenta a igreja, recebe os sacramentos recolhidamente, mas de forma a que os outros saibam, e jamais se compromete. Espera que sua filha faça um bom casamento. É isso?
― É, mas eu completo o seus dados: é uma mulher experimentada, que se faz respeitar por seus amantes mais do que se não dormisse com eles. É um mérito raro, porque dessa forma se obtém o que se quiser de um homem. Aquele que ela escolhe, sem que ele saiba, faz-lhe a corte durante muito tempo, deseja-a com temor, solicita-a com pudor, obtém-na com assombro e a possui com consideração. Nem percebe que a paga, tal o tato que ela usa; e de dignidade, de decência, que, saindo de sua cama, ele esbofetearia o homem capaz de suspeitar da virtude de sua amante. E isso com a maior boa fé do mundo."

MAUPASSANT, Guy de. Obras de Guy de Maupassant. A Baronesa. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1953, XI v., p. 62/63.
....................

Ando relendo Maupassant e, como sempre, reler é redescobrir sutilezas. Sua obra nos presenteia com retratos de uma precisão que impressiona, ainda mais quando nos damos conta de que são generalizáveis, a ponto de termos todos a impressão de que conhecemos a Senhora Samoris, quando não, no que ela tem de sonsa. Porque só uma verdadeira sonsa pode inspirar temor no desejo, pudor na súplica, assombro na conquista e consideração na posse. E, se aquele que é admitido em sua intimidade nem percebe que a paga, eis que temos aí revelado, em poucas palavras, o poder de manipulação que permeia questões de gênero que, para serem bem analisadas, requerem muito mais do que a boçalidade do senso comum.
 . 

5 de outubro de 2018

A propósito

A saudade é azul, mas eu não sei por que razão. Razão não há. Mas há saudade. Uma falta triste, mas que é iluminada de azul. Uma solidão bem assim: azul e rabiscada aqui e ali.

29 de setembro de 2018

Martirológio

O livro é de 1864 e foi editado na França. Trata-se do segundo volume de Vies des saints avec le martyrologe romain et réflexions morales en forme de lecture de piété pour chaque jour de l’année. Traduzindo: Vidas dos santos com o martirólogo romano e reflexões morais em forma de leitura de piedade para cada dia do ano.  A obra foi aprovada pelo bispado, e é de autoria do Abade Caillet, antigo professor do Seminário de Langres. Esse segundo volume, com suas 679 páginas, é dedicado aos mártires cristãos que marcam cada dia do calendário dos meses de abril, maio e junho. Naturalmente inencontráveis os outros, pela lógica, três volumes. É possível consultá-lo como a um calendário, mas sempre é tentador abri-lo ao acaso, e realizar leituras edificantes, ― por que não? ― que podem cobrir pelo menos um trimestre do ano. 


19 de setembro de 2018

Do poder

"[...] aquele que torna outrem poderoso arruína-se a si próprio, pois esse poderio é causado pela astúcia ou pela força, e uma e outra são suspeitas a quem se tornou poderoso."

Maquiavel
Imagem: Santi di Tito, retrato de Niccolò Machiavelli

Retalho da vidinha provinciana, por Maupassant

"Dificilmente o teria reconhecido. Aparentava pelo menos 45 anos e, num segundo, reconheci os sinais da vida provinciana, que engorda, brutaliza e envelhece. Com um rápido pensamento, mais rápido do que meu gesto ao estender-lhe a mão, conheci sua existência, sua maneira de ser, seu gênero de espírito e suas teorias sobre o mundo. Adivinhei as refeições demoradas que lhe tinham arredondado o ventre, as sonolências depois do almoço, o torpor de uma digestão pesada regada a conhaque e os vagos olhares atirados sobre os doentes, com pensamento na galinha assada girando no espeto. Suas conversas sobre a cozinha, sobre o conhaque, a aguardente e o vinho, sobre a maneira de fazer certos pratos e de bem ligar certos molhos me foram reveladas apenas ao olhar para as suas faces vermelhas e empastadas, a grossura de seus lábios, o brilho morno dos seus olhos."
MAUPASSANT, Guy de. Obras de Guy de Maupassant. O vestal da Senhora Husson. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1953, XI v., p. 12. 

10 de setembro de 2018

Amor

"L'amour est una chose qui meurt. Une fois mort, il pourrit, mais peut servir d'hummus à un novel amour. L'amour defunt continue à vivre d'une vie secrete dan le nouveau, de sorte qu'en réalité l'amour est immortel."

LAGERKVIST, Pär. Le nain. Paris: Stock, 1946, p. 27.

7 de setembro de 2018

Amor e Ódio

"O amor é a transformação psíquica do prazer e o ódio a resposta psíquica da dor. E ódio e amor, embora opostos, têm a mesma marcha, seguem as mesmas leis de expensão, de simpatia e de evolução histórica." Paulo Mantegazza

MANTEGAZZA, Paulo. Fisiologia do ódio. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1946, p. 8.

6 de setembro de 2018

Revista Vida Brasil

A Pombagira

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Mexendo no baú de minhas memórias, dei-me conta de que a vida é cheia de banalidades. Coisas que a gente seleciona para excluir, condenando-as ao esquecimento. Tudo simplesmente porque elas poderiam exercer um efeito deletério sobre nossa vaidade. Quero me referir àquelas coisas que não combinam com o momento, e que vão desde as gafes até o corte de cabelo que não deu certo, bem no dia daquela festa, passando pelo salto alto que quebrou e pelo vinho tinto derramado sobre a toalha.

A Pombagira





E
nfim, as tais saias justas, expressão que só entende bem quem já usou uma em sentido real ou figurado. O problema é que, não poucas vezes, as lembranças boas se misturam às trágicas e mesmo às cômicas. Com Ricardo foi assim. Uma lembrança que traz consigo outras lembranças, que nem mesmo sei dizer se são alegres ou tristes. Talvez, desconcertantes.
Hoje, lembrando-me de Ricardo, me dou conta de que lá se vão quase 40 anos. É tempo bastante para neutralizar, seja uma gafe, seja uma frustração qualquer. Ricardo. Como era bonito! ― Continua sendo, aliás, porque morreu antes de envelhecer. ― Quando ele passava pelos corredores da faculdade na qual estudávamos Direito, arrancava suspiros das mulheres entre os 18 e os 50 anos. Era educado e muito elegante. Alto, com mais de um metro e oitenta, era magro e muito bem proporcionado. Moreno, de cabelos fartos e ondulados, possuía grandes olhos castanhos emoldurados por sobrancelhas espeças. O rosto era anguloso, o nariz, reto, o queixo, quadrado.  Estava na casa dos trinta. Era o perfeito tipo italiano em uma combinação de traços que bem poderia inspirar certa truculência, impressão que cessava imediatamente, tão logo ele abrisse aquele largo e franco sorriso, do tipo que ficaria perfeito em campanha publicitária de creme dental.
Eu o conhecia de vista, dos corredores da universidade, mas nunca tivemos aula juntos, e ele não fazia parte do grupo com o qual eu me relacionava. Sabia quem ele era, como sabíamos todos um mínimo uns dos outros e, exceto cumprimentos informais, nunca conversamos sobre qualquer coisa pessoal. A vida acadêmica, em tempos de graduação, é vivida com pressa, pois é passagem, é rumo, metade sonho, metade realização. É preparo, receita, e creio que entramos como uns e saímos como outros de lá, trabalhados pelos conteúdos, condicionados pelos saberes. Ricardo, apesar de chamar a atenção, destacando-se pela beleza, era apenas mais um colega e nunca pensei que iríamos namorar um dia. Mas, para minha surpresa, aconteceu.
Depois de ambos formados, nos encontramos por acaso nas dependências da OAB/RS. O assunto inicialmente tinha a ver com a burocracia exigida para inscrição definitiva nos quadros da Ordem. A conversa informal, todavia, prosseguiu até o convite dele para um café naquela mesma tarde ao sairmos dali. Aceitei. A escolha do lugar foi dele. Estranhei a cafeteria sofisticada e a forma tão atenciosa com que ele procurou uma mesa bastante discreta, como se buscasse estabelecer alguma intimidade entre nós. Reparei então no corte e no caimento perfeito do terno escuro que ele usava, na camisa branca impecável, na gravata discreta que combinava perfeitamente com todo o resto. ― Ele usa abotoaduras, meu deus! Como não reparar em um homem que usa abotoaduras? ― O café chegou. Havia certo clima entre nós. O leitor sabe: olhares, silêncios, sorrisos. Uma cumplicidade que se estabelecia naturalmente.
Para minha surpresa, ele começou a falar a meu respeito. Descobri que ele sabia onde eu morava e que conhecia muitos detalhes da minha rotina diária. Sabia que eu pintava, que adorava ler, que me interessava por Processo Civil e por Direito das Coisas. Descreveu roupas que eu usava às vezes. Hoje isso poderia ser comum, mas naquela época não havia internet, nem Google, nem redes sociais.  ― Como assim? O cara me cuidava há anos, e eu nunca notei? ― Ele fez questão de ficar com meu telefone. Confessou um interesse antigo por mim. Duvidei, mas, afinal, encontros são encontros. Ele ligou naquela mesma noite, e marcamos um jantar. Aceitei o convite muito mais por curiosidade do que por atração. Homens interessados acabam por se tornar interessantes, ainda mais quando eles usam abotoaduras. Além disso, Ricardo não era interesseiro, porque era muito rico e eu, comparada a ele, muito pobre.
Mas, por bonito e rico que fosse, educado, gentil e atencioso, alguma coisa parecia faltar nele. Aquele elemento indefinível que é, precisamente, a chave que provoca a velha sintomatologia das paixões: o frio na barriga, a revoada das borboletas que habitam nossos estômagos, o sonhar acordado e outras coisas das quais eu já nem me lembro mais. Não sou imune à beleza. Gosto de olhar para homens bonitos, mas nem sempre eu os encontro sedutores. A sedução está muito além do belo. Insubmissa à estética, sempre complexa, ela, sedução, pode livremente recair até mesmo sobre o feio, tornando-o irresistível. Enfim, Ricardo era muito bonito, sim. Mas havia algo um tanto quanto óbvio naquele pacote de perfeições, desse mesmo óbvio que se resume ao best-seller que já foi lido ou àquela anedota cujo final já conhecemos. Eu tinha consciência de tudo isso, sim, mas dispensar um bonitão daqueles, que despencou na minha vida tão inesperadamente, seria um verdadeiro desperdício. Afinal, por que não?
Eram os idos da década de 1980. Uma década muito enfeitada, com cabelos volumosos, ombreiras, saltos altos e maquilagem. Havia glamour no ar, embora eu não fosse ― nunca fui, aliás ―, do tipo femme fatale. Começamos a sair juntos desde o encontro na cafeteria. Ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, Ricardo não era vaidoso. Sua elegância era natural, resultado do porte e do próprio tipo físico. Entrar com ele em qualquer lugar era renunciar a uma mínima possibilidade de discrição. Não havia quem não o notasse. Mulheres, sobretudo, chegavam a se virar. Encaravam mesmo. Inútil pretensão a delas. Porque ele era perfeitamente indiferente a esse tipo de assédio. A beleza tem mesmo esse efeito sobre as pessoas, especialmente quando é assim tão evidente.  Absoluta como a luz do sol, ela é uma espécie de verdade que não requer nenhum outro ingrediente para se realizar dentro de nós, nem mesmo a imaginação.

Acabamos namorando. Com direito a jantares, a passeios românticos, a alguma poesia e a lindos presentes. Guardo dele dois poemas. Tenho comigo a edição especial em dois volumes do Código Civil Brasileiro comentado por Clóvis Beviláqua. A dedicatória é bonita. Busco o primeiro volume na estante e confiro. Com respeito, admiração e carinho de alguém que disse me querer muito. Como naquele tempo namorava-se seriamente, ― não se inventara ainda o ficar ―, conheci toda a família dele. A mãe, mulher de sociedade; o pai, comerciante muito bem-sucedido e já aposentado; os irmãos, nenhum tão bonito quanto. A família de Ricardo morava em outra cidade, para onde íamos às vezes. Casa grande, bonita. Comia-se na sala. Era um namoro sério, enfim. Sem grandes arrebatamentos, porém, ao menos da minha parte. Entediava-me com nossas rotinas, que envolviam encontros com os amigos dele, com os quais eu não tinha muito em comum.  Até que algo inesperado aconteceu. Descobri que Ricardo era pai de santo.
A revelação dessa faceta incógnita me surpreendeu. Embora namorássemos e saíssemos com bastante frequência, nossos assuntos tinham em vista a profissão. Advogados parecem não saber falar de outra coisa e, em início de carreira, tudo era novidade. Por vezes, ele tentava levar a conversa para assuntos que considerava mais elevados, entendendo por isso temas correlatos ao além, a uma vida espiritual que teria lugar após a morte. Mas eu já naquela época era muito pouco sensível às coisas do chamado outro mundo. Se o simbólico me encantava, fascinava-me por sua transcendência, como algo meramente conceitual e abstrato que não assumia, na minha vida, nenhum significado. Ricardo deve ter se sentido desencorajado pelo meu ceticismo. É que o real me basta. Ele já me oferece mistérios de sobra, e a vida eterna representa para mim uma perspectiva desesperadamente entediante. Por mais que eu tenha em alta conta toda a conjuntura simbólica que envolve o misticismo, e até domine alguns temas, — sei ler o Tarô e daria uma excelente cartomante —, não fui agraciada com o dom da espiritualidade e, segundo já me disseram, precisarei de muitas e muitas reencarnações até que atinja um grau adequado de evolução. Pobre Ricardo. Mesmo decepcionado, não desistiu de tentar me fazer ver a luz.
Mas vida tem lá os seus mistérios.

Passados uns três ou quatro meses de namoro, Ricardo me pediu que fosse até sua casa ajudá-lo no que me disse ser uma ocasião especial para ele. Estranhei, mas me comprometi a ajudar. Chegando ao apartamento dele, conheci Beto, um rapaz que parecia ocupado na cozinha, mexendo com diversos ingredientes. Havia batatas, farinha de mandioca, azeite de dendê, carnes e até uma galinha viva em um canto da cozinha! Sem entender o que acontecia, fiquei esperando que alguém me explicasse alguma coisa. Não demorou muito para que Ricardo se revelasse a mim como pai de santo. Explicou-me que, uma vez por ano, tinha por dever homenagear seu pai maior com oferendas. Era disso que se ocupavam então ele e Beto que, — como eu soube —, era uma espécie de aprendiz dele, seu filho de santo, aliás.
Confesso que eu não soube exatamente o que pensar. Olhei para a galinha, encolhida num canto, cacarejando baixinho. Era preta, tão perdida quanto eu naquele cenário onde nada, absolutamente nada parecia ter relações com o além. Percebendo a dificuldade que eu enfrentava diante daquelas circunstâncias, Ricardo explicou-me que fizera um pacto com uma entidade muito misteriosa, e que este pacto dependia do cumprimento anual de uma obrigação. Tratava-se disso. Da tal obrigação, que seria entregue justo naquela noite, em um cemitério. Ele, seu aprendiz e ainda outro adepto que chegaria mais tarde ajudariam a carregar os pacotes e, já lá dentro do cemitério, a proceder à cerimônia de entrega. Eu estava convidada a participar dos trabalhos. É evidente que aceitei. Não perderia uma oportunidade como essa por nada deste mundo e acho que nem do outro.
Enquanto assistia ao preparo das oferendas, fui entendendo a extensão da coisa e suas implicações. A entidade protetora de Ricardo não poderia ser homenageada nos lugares onde normalmente são agraciados outros santos. Não era nem do mar, nem da pedreira, nem dos rios ou das matas. Pertencia ao mundo dos mortos e, por isso, deveria ser reverenciada no interior de um cemitério. A mesa da cozinha enchia-se de alimentos. Não consigo me lembrar bem de tudo que havia ali. Seguramente muita pipoca. Lembro-me de batatas assadas e carnes. Algumas bandejas de papelão, enfeitadas com papel de seda vermelho, foram arrumadas com oferendas e depois, com cuidado, embrulhadas em papel Kraft. Pacotes e garrafas de bebidas enchiam sacolas que se enfileiravam perto da porta da rua. A noite chegava. Ricardo e Beto pareciam alegres, enquanto eu assistia a tudo sem entender nada. O que havia ali de mais real para mim era pobre galinha preta. Pressentindo seu sacrifício iminente, arrisquei-me a comentar que sentia piedade do pobre bicho, e isso me valeu uma reprimenda severa de Ricardo que me assegurou de tal sentimento revoltaria a entidade e atrairia energias negativas que poderiam comprometer toda a cerimônia. Ele não estava brincando.
Em torno de dez horas da noite, chegou o outro auxiliar. Um senhor já de alguma idade, pessoa muito simples e humilde. Chamava-se Luís. Parecia assustado, e dirigia-se a Ricardo com um temor quase reverencial. A mim não tratou de modo diferente, ainda mais depois que lhe fui apresentada como a namorada que iria participar dos trabalhos. Os pacotes foram levados para o carro, acomodados no porta-malas, e nós quatro, mais a galinha, seguimos pelas ruas, direto para o menos movimentado dos cemitérios da cidade. Antes de chegar, no entanto, parte das oferendas foi deixada, com velas acesas, em um “cruzeiro aberto”. Ricardo dava ordens, parecia decidido e, definitivamente, mostrava-se como uma pessoa diferente daquela com quem, até então, eu me relacionara.
Era tudo muito surreal. O cemitério de muros altos não oferecia facilidades. Lembro-me de estar usando jeans naquela noite em que, literalmente, eu pulei o muro não sem muita ajuda. Ricardo, muito alto, escalou fácil e, lá de cima, me puxou, graças à ajuda do filho de santo que me ergueu. Seu Luís, porém, ficou por último. Era preciso agachar-se na parte de cima, ficar de costas para o lado de dentro do cemitério, pendurar-se e depois soltar os braços com cuidado para cair com segurança. Passamos os três. Mas o pobre homem, mais idoso e menos ágil, congelou em cima do muro. Ele não conseguia nem falar e parecia aterrorizado. Com olhos esbugalhados, sinalizava para algo que estaria bem atrás dele. Sem saber o que estava acontecendo, ficamos os três parados, olhando a criatura que sequer conseguia articular uma palavra que fosse, tamanho o pavor que parecia sentir. Foi quando Ricardo percebeu que o susto se devia a algo bastante prosaico. O casaco do homem prendeu-se a uma irregularidade do muro. Ele imaginou, todavia, que alguma entidade o estava segurando, impedindo-o de entrar. Bem. Foi nesse instante que eu comecei a sentir uma incontrolável vontade de rir. Havia naquilo tudo alguma coisa de cômico, de muito cômico. Notei que a galinha ficara no carro. Ricardo explicou-me que ela seria sacrificada na saída. Que ali seriam oferecidas as carnes. Já os quatro do lado de dentro, sacolas em punho, entramos cemitério a dentro. Restava esperar a meia-noite. Ricardo buscou então a Cruz das Almas e na laje em frente dela começou a desocupar as sacolas e a desembrulhar as oferendas. Minha vontade de rir estava ficando cada vez mais difícil de controlar. Era uma noite calma de abril. Temperatura agradável. Os três, Ricardo, Beto e Seu Luís, contritos, procuravam arrumar com alguma estética as bandejas de papelão. Algumas bebidas foram abertas, e carnes foram expostas. Costelas e bifes, lembro-me bem destes. Eu me sentei num sepulcro e fiquei observando a poucos metros toda aquela cena.

Mas o movimento a tão altas horas da noite, se não atraiu, é verdade, nenhum zelador ou segurança, atraiu outros habitantes do cemitério. Não se tratavam, todavia, de seres do além. Ocorre que pelo menos uma meia dúzia de gatos das mais variadas cores e tamanhos vieram parar ali tão logo o cheiro da carne se propagou pelo ar. Os bichos se aproximaram devagar. Primeiro em silêncio, depois, miando alto em uma espécie de couro que parecia bem ensaiado. Um deles se destacava pela cor e pelo tamanho. Era um grande gato preto de brilhantes olhos amarelos. Foi nesse instante que tudo aconteceu. Ricardo, repentinamente, se dirigiu ao gato preto e o reverenciou como se estivesse diante de alguma majestade. Ele falava com o gato. Curvava-se, quase se punha de joelhos enquanto dizia: “Vem senhor meu pai, vem senhor meu pai! ” E eu? Ah! Eu comecei a rir, a rir descontroladamente. Eu ria tanto, mas tanto, que quase chorava. Foi um acesso invencível. Ricardo então, que orava para o gato, olhou para mim e, em vez de ficar revoltado com minha desrespeitosa atitude, saudou-me, tratando-me como se eu estivesse tomada por uma entidade mágica. Ai mesmo que o descontrole de meu riso foi absoluto. Sentada sobre um túmulo, eu simplesmente caí na risada. Ricardo estourou a rolha de uma bebida espumante. Ofereceu-me, com gestos, a garrafa que transbordava. Sem conseguir falar, fiz que não. Nunca ri tanto em toda a minha vida. E quanto mais eu ria, mais Ricardo e outros dois ali presentes me reverenciavam, muito sérios, tentando fazer alguma coisa que me agradasse. Enquanto isso, os gatos fizeram o serviço no despacho. As carnes rapidamente desaparecem da lápide onde haviam sido tão cuidadosamente dispostas. Uma ótima recepção da oferenda, senão pela entidade, seguramente pelos felinos, deliciados com tão farta refeição.
Missão cumprida. Era hora de sair dali. Na volta, outro “cruzeiro”. Pipocas, velas, bebidas. Chegou a vez de a pobre galinha ser oferecida como sacrifício. De pernas desatadas por descuido, surpreendida pela brutalidade do gesto, ela conseguiu, mesmo sem cabeça, correr desesperadamente por um ou dois metros. Eu não ria mais. Nem falava. Não havia o que dizer. Os três estavam satisfeitos e pareciam felizes. Eu, todavia, estranhava-me e descobria bem o sentido de uma lucidez que insiste em se fazer presente em minha vida.
Lá se vão décadas desse episódio. E de lá até aqui permaneço cética. Ricardo, porém, considerou-me desde então como alguém muito especial. Queria “minha cabeça”. Prometeu-me poderes. Riquezas. Explicou-me que eu tinha a proteção de uma entidade muito especial, uma pombagira, segundo ele. Disse-me que eu deveria me entregar ao outro mundo, dedicar-me às ciências ocultas. Eu disse que não. Que se eu não me entregava nem a este mundo, que dizer de outro.
O namoro acabou. Ricardo morreu poucos anos depois.  A fila andou. O namorado seguinte não era nem tão rico nem tão bonito. Nem precisava. Era muito bem-humorado. A pombagira? Ah! Creio que, lá de vez em quando, ela aparece, ou transparece, inspiradora, em minha irreverência. Talvez para tentar descomplicar um pouco que seja esse mundo que os homens insistem tanto em tornar tão sombrio às vezes.
 




Autor: Maristela Bleggi Tomasini

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