6 de setembro de 2018

Revista Vida Brasil

A Pombagira

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Mexendo no baú de minhas memórias, dei-me conta de que a vida é cheia de banalidades. Coisas que a gente seleciona para excluir, condenando-as ao esquecimento. Tudo simplesmente porque elas poderiam exercer um efeito deletério sobre nossa vaidade. Quero me referir àquelas coisas que não combinam com o momento, e que vão desde as gafes até o corte de cabelo que não deu certo, bem no dia daquela festa, passando pelo salto alto que quebrou e pelo vinho tinto derramado sobre a toalha.

A Pombagira





E
nfim, as tais saias justas, expressão que só entende bem quem já usou uma em sentido real ou figurado. O problema é que, não poucas vezes, as lembranças boas se misturam às trágicas e mesmo às cômicas. Com Ricardo foi assim. Uma lembrança que traz consigo outras lembranças, que nem mesmo sei dizer se são alegres ou tristes. Talvez, desconcertantes.
Hoje, lembrando-me de Ricardo, me dou conta de que lá se vão quase 40 anos. É tempo bastante para neutralizar, seja uma gafe, seja uma frustração qualquer. Ricardo. Como era bonito! ― Continua sendo, aliás, porque morreu antes de envelhecer. ― Quando ele passava pelos corredores da faculdade na qual estudávamos Direito, arrancava suspiros das mulheres entre os 18 e os 50 anos. Era educado e muito elegante. Alto, com mais de um metro e oitenta, era magro e muito bem proporcionado. Moreno, de cabelos fartos e ondulados, possuía grandes olhos castanhos emoldurados por sobrancelhas espeças. O rosto era anguloso, o nariz, reto, o queixo, quadrado.  Estava na casa dos trinta. Era o perfeito tipo italiano em uma combinação de traços que bem poderia inspirar certa truculência, impressão que cessava imediatamente, tão logo ele abrisse aquele largo e franco sorriso, do tipo que ficaria perfeito em campanha publicitária de creme dental.
Eu o conhecia de vista, dos corredores da universidade, mas nunca tivemos aula juntos, e ele não fazia parte do grupo com o qual eu me relacionava. Sabia quem ele era, como sabíamos todos um mínimo uns dos outros e, exceto cumprimentos informais, nunca conversamos sobre qualquer coisa pessoal. A vida acadêmica, em tempos de graduação, é vivida com pressa, pois é passagem, é rumo, metade sonho, metade realização. É preparo, receita, e creio que entramos como uns e saímos como outros de lá, trabalhados pelos conteúdos, condicionados pelos saberes. Ricardo, apesar de chamar a atenção, destacando-se pela beleza, era apenas mais um colega e nunca pensei que iríamos namorar um dia. Mas, para minha surpresa, aconteceu.
Depois de ambos formados, nos encontramos por acaso nas dependências da OAB/RS. O assunto inicialmente tinha a ver com a burocracia exigida para inscrição definitiva nos quadros da Ordem. A conversa informal, todavia, prosseguiu até o convite dele para um café naquela mesma tarde ao sairmos dali. Aceitei. A escolha do lugar foi dele. Estranhei a cafeteria sofisticada e a forma tão atenciosa com que ele procurou uma mesa bastante discreta, como se buscasse estabelecer alguma intimidade entre nós. Reparei então no corte e no caimento perfeito do terno escuro que ele usava, na camisa branca impecável, na gravata discreta que combinava perfeitamente com todo o resto. ― Ele usa abotoaduras, meu deus! Como não reparar em um homem que usa abotoaduras? ― O café chegou. Havia certo clima entre nós. O leitor sabe: olhares, silêncios, sorrisos. Uma cumplicidade que se estabelecia naturalmente.
Para minha surpresa, ele começou a falar a meu respeito. Descobri que ele sabia onde eu morava e que conhecia muitos detalhes da minha rotina diária. Sabia que eu pintava, que adorava ler, que me interessava por Processo Civil e por Direito das Coisas. Descreveu roupas que eu usava às vezes. Hoje isso poderia ser comum, mas naquela época não havia internet, nem Google, nem redes sociais.  ― Como assim? O cara me cuidava há anos, e eu nunca notei? ― Ele fez questão de ficar com meu telefone. Confessou um interesse antigo por mim. Duvidei, mas, afinal, encontros são encontros. Ele ligou naquela mesma noite, e marcamos um jantar. Aceitei o convite muito mais por curiosidade do que por atração. Homens interessados acabam por se tornar interessantes, ainda mais quando eles usam abotoaduras. Além disso, Ricardo não era interesseiro, porque era muito rico e eu, comparada a ele, muito pobre.
Mas, por bonito e rico que fosse, educado, gentil e atencioso, alguma coisa parecia faltar nele. Aquele elemento indefinível que é, precisamente, a chave que provoca a velha sintomatologia das paixões: o frio na barriga, a revoada das borboletas que habitam nossos estômagos, o sonhar acordado e outras coisas das quais eu já nem me lembro mais. Não sou imune à beleza. Gosto de olhar para homens bonitos, mas nem sempre eu os encontro sedutores. A sedução está muito além do belo. Insubmissa à estética, sempre complexa, ela, sedução, pode livremente recair até mesmo sobre o feio, tornando-o irresistível. Enfim, Ricardo era muito bonito, sim. Mas havia algo um tanto quanto óbvio naquele pacote de perfeições, desse mesmo óbvio que se resume ao best-seller que já foi lido ou àquela anedota cujo final já conhecemos. Eu tinha consciência de tudo isso, sim, mas dispensar um bonitão daqueles, que despencou na minha vida tão inesperadamente, seria um verdadeiro desperdício. Afinal, por que não?
Eram os idos da década de 1980. Uma década muito enfeitada, com cabelos volumosos, ombreiras, saltos altos e maquilagem. Havia glamour no ar, embora eu não fosse ― nunca fui, aliás ―, do tipo femme fatale. Começamos a sair juntos desde o encontro na cafeteria. Ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, Ricardo não era vaidoso. Sua elegância era natural, resultado do porte e do próprio tipo físico. Entrar com ele em qualquer lugar era renunciar a uma mínima possibilidade de discrição. Não havia quem não o notasse. Mulheres, sobretudo, chegavam a se virar. Encaravam mesmo. Inútil pretensão a delas. Porque ele era perfeitamente indiferente a esse tipo de assédio. A beleza tem mesmo esse efeito sobre as pessoas, especialmente quando é assim tão evidente.  Absoluta como a luz do sol, ela é uma espécie de verdade que não requer nenhum outro ingrediente para se realizar dentro de nós, nem mesmo a imaginação.

Acabamos namorando. Com direito a jantares, a passeios românticos, a alguma poesia e a lindos presentes. Guardo dele dois poemas. Tenho comigo a edição especial em dois volumes do Código Civil Brasileiro comentado por Clóvis Beviláqua. A dedicatória é bonita. Busco o primeiro volume na estante e confiro. Com respeito, admiração e carinho de alguém que disse me querer muito. Como naquele tempo namorava-se seriamente, ― não se inventara ainda o ficar ―, conheci toda a família dele. A mãe, mulher de sociedade; o pai, comerciante muito bem-sucedido e já aposentado; os irmãos, nenhum tão bonito quanto. A família de Ricardo morava em outra cidade, para onde íamos às vezes. Casa grande, bonita. Comia-se na sala. Era um namoro sério, enfim. Sem grandes arrebatamentos, porém, ao menos da minha parte. Entediava-me com nossas rotinas, que envolviam encontros com os amigos dele, com os quais eu não tinha muito em comum.  Até que algo inesperado aconteceu. Descobri que Ricardo era pai de santo.
A revelação dessa faceta incógnita me surpreendeu. Embora namorássemos e saíssemos com bastante frequência, nossos assuntos tinham em vista a profissão. Advogados parecem não saber falar de outra coisa e, em início de carreira, tudo era novidade. Por vezes, ele tentava levar a conversa para assuntos que considerava mais elevados, entendendo por isso temas correlatos ao além, a uma vida espiritual que teria lugar após a morte. Mas eu já naquela época era muito pouco sensível às coisas do chamado outro mundo. Se o simbólico me encantava, fascinava-me por sua transcendência, como algo meramente conceitual e abstrato que não assumia, na minha vida, nenhum significado. Ricardo deve ter se sentido desencorajado pelo meu ceticismo. É que o real me basta. Ele já me oferece mistérios de sobra, e a vida eterna representa para mim uma perspectiva desesperadamente entediante. Por mais que eu tenha em alta conta toda a conjuntura simbólica que envolve o misticismo, e até domine alguns temas, — sei ler o Tarô e daria uma excelente cartomante —, não fui agraciada com o dom da espiritualidade e, segundo já me disseram, precisarei de muitas e muitas reencarnações até que atinja um grau adequado de evolução. Pobre Ricardo. Mesmo decepcionado, não desistiu de tentar me fazer ver a luz.
Mas vida tem lá os seus mistérios.

Passados uns três ou quatro meses de namoro, Ricardo me pediu que fosse até sua casa ajudá-lo no que me disse ser uma ocasião especial para ele. Estranhei, mas me comprometi a ajudar. Chegando ao apartamento dele, conheci Beto, um rapaz que parecia ocupado na cozinha, mexendo com diversos ingredientes. Havia batatas, farinha de mandioca, azeite de dendê, carnes e até uma galinha viva em um canto da cozinha! Sem entender o que acontecia, fiquei esperando que alguém me explicasse alguma coisa. Não demorou muito para que Ricardo se revelasse a mim como pai de santo. Explicou-me que, uma vez por ano, tinha por dever homenagear seu pai maior com oferendas. Era disso que se ocupavam então ele e Beto que, — como eu soube —, era uma espécie de aprendiz dele, seu filho de santo, aliás.
Confesso que eu não soube exatamente o que pensar. Olhei para a galinha, encolhida num canto, cacarejando baixinho. Era preta, tão perdida quanto eu naquele cenário onde nada, absolutamente nada parecia ter relações com o além. Percebendo a dificuldade que eu enfrentava diante daquelas circunstâncias, Ricardo explicou-me que fizera um pacto com uma entidade muito misteriosa, e que este pacto dependia do cumprimento anual de uma obrigação. Tratava-se disso. Da tal obrigação, que seria entregue justo naquela noite, em um cemitério. Ele, seu aprendiz e ainda outro adepto que chegaria mais tarde ajudariam a carregar os pacotes e, já lá dentro do cemitério, a proceder à cerimônia de entrega. Eu estava convidada a participar dos trabalhos. É evidente que aceitei. Não perderia uma oportunidade como essa por nada deste mundo e acho que nem do outro.
Enquanto assistia ao preparo das oferendas, fui entendendo a extensão da coisa e suas implicações. A entidade protetora de Ricardo não poderia ser homenageada nos lugares onde normalmente são agraciados outros santos. Não era nem do mar, nem da pedreira, nem dos rios ou das matas. Pertencia ao mundo dos mortos e, por isso, deveria ser reverenciada no interior de um cemitério. A mesa da cozinha enchia-se de alimentos. Não consigo me lembrar bem de tudo que havia ali. Seguramente muita pipoca. Lembro-me de batatas assadas e carnes. Algumas bandejas de papelão, enfeitadas com papel de seda vermelho, foram arrumadas com oferendas e depois, com cuidado, embrulhadas em papel Kraft. Pacotes e garrafas de bebidas enchiam sacolas que se enfileiravam perto da porta da rua. A noite chegava. Ricardo e Beto pareciam alegres, enquanto eu assistia a tudo sem entender nada. O que havia ali de mais real para mim era pobre galinha preta. Pressentindo seu sacrifício iminente, arrisquei-me a comentar que sentia piedade do pobre bicho, e isso me valeu uma reprimenda severa de Ricardo que me assegurou de tal sentimento revoltaria a entidade e atrairia energias negativas que poderiam comprometer toda a cerimônia. Ele não estava brincando.
Em torno de dez horas da noite, chegou o outro auxiliar. Um senhor já de alguma idade, pessoa muito simples e humilde. Chamava-se Luís. Parecia assustado, e dirigia-se a Ricardo com um temor quase reverencial. A mim não tratou de modo diferente, ainda mais depois que lhe fui apresentada como a namorada que iria participar dos trabalhos. Os pacotes foram levados para o carro, acomodados no porta-malas, e nós quatro, mais a galinha, seguimos pelas ruas, direto para o menos movimentado dos cemitérios da cidade. Antes de chegar, no entanto, parte das oferendas foi deixada, com velas acesas, em um “cruzeiro aberto”. Ricardo dava ordens, parecia decidido e, definitivamente, mostrava-se como uma pessoa diferente daquela com quem, até então, eu me relacionara.
Era tudo muito surreal. O cemitério de muros altos não oferecia facilidades. Lembro-me de estar usando jeans naquela noite em que, literalmente, eu pulei o muro não sem muita ajuda. Ricardo, muito alto, escalou fácil e, lá de cima, me puxou, graças à ajuda do filho de santo que me ergueu. Seu Luís, porém, ficou por último. Era preciso agachar-se na parte de cima, ficar de costas para o lado de dentro do cemitério, pendurar-se e depois soltar os braços com cuidado para cair com segurança. Passamos os três. Mas o pobre homem, mais idoso e menos ágil, congelou em cima do muro. Ele não conseguia nem falar e parecia aterrorizado. Com olhos esbugalhados, sinalizava para algo que estaria bem atrás dele. Sem saber o que estava acontecendo, ficamos os três parados, olhando a criatura que sequer conseguia articular uma palavra que fosse, tamanho o pavor que parecia sentir. Foi quando Ricardo percebeu que o susto se devia a algo bastante prosaico. O casaco do homem prendeu-se a uma irregularidade do muro. Ele imaginou, todavia, que alguma entidade o estava segurando, impedindo-o de entrar. Bem. Foi nesse instante que eu comecei a sentir uma incontrolável vontade de rir. Havia naquilo tudo alguma coisa de cômico, de muito cômico. Notei que a galinha ficara no carro. Ricardo explicou-me que ela seria sacrificada na saída. Que ali seriam oferecidas as carnes. Já os quatro do lado de dentro, sacolas em punho, entramos cemitério a dentro. Restava esperar a meia-noite. Ricardo buscou então a Cruz das Almas e na laje em frente dela começou a desocupar as sacolas e a desembrulhar as oferendas. Minha vontade de rir estava ficando cada vez mais difícil de controlar. Era uma noite calma de abril. Temperatura agradável. Os três, Ricardo, Beto e Seu Luís, contritos, procuravam arrumar com alguma estética as bandejas de papelão. Algumas bebidas foram abertas, e carnes foram expostas. Costelas e bifes, lembro-me bem destes. Eu me sentei num sepulcro e fiquei observando a poucos metros toda aquela cena.

Mas o movimento a tão altas horas da noite, se não atraiu, é verdade, nenhum zelador ou segurança, atraiu outros habitantes do cemitério. Não se tratavam, todavia, de seres do além. Ocorre que pelo menos uma meia dúzia de gatos das mais variadas cores e tamanhos vieram parar ali tão logo o cheiro da carne se propagou pelo ar. Os bichos se aproximaram devagar. Primeiro em silêncio, depois, miando alto em uma espécie de couro que parecia bem ensaiado. Um deles se destacava pela cor e pelo tamanho. Era um grande gato preto de brilhantes olhos amarelos. Foi nesse instante que tudo aconteceu. Ricardo, repentinamente, se dirigiu ao gato preto e o reverenciou como se estivesse diante de alguma majestade. Ele falava com o gato. Curvava-se, quase se punha de joelhos enquanto dizia: “Vem senhor meu pai, vem senhor meu pai! ” E eu? Ah! Eu comecei a rir, a rir descontroladamente. Eu ria tanto, mas tanto, que quase chorava. Foi um acesso invencível. Ricardo então, que orava para o gato, olhou para mim e, em vez de ficar revoltado com minha desrespeitosa atitude, saudou-me, tratando-me como se eu estivesse tomada por uma entidade mágica. Ai mesmo que o descontrole de meu riso foi absoluto. Sentada sobre um túmulo, eu simplesmente caí na risada. Ricardo estourou a rolha de uma bebida espumante. Ofereceu-me, com gestos, a garrafa que transbordava. Sem conseguir falar, fiz que não. Nunca ri tanto em toda a minha vida. E quanto mais eu ria, mais Ricardo e outros dois ali presentes me reverenciavam, muito sérios, tentando fazer alguma coisa que me agradasse. Enquanto isso, os gatos fizeram o serviço no despacho. As carnes rapidamente desaparecem da lápide onde haviam sido tão cuidadosamente dispostas. Uma ótima recepção da oferenda, senão pela entidade, seguramente pelos felinos, deliciados com tão farta refeição.
Missão cumprida. Era hora de sair dali. Na volta, outro “cruzeiro”. Pipocas, velas, bebidas. Chegou a vez de a pobre galinha ser oferecida como sacrifício. De pernas desatadas por descuido, surpreendida pela brutalidade do gesto, ela conseguiu, mesmo sem cabeça, correr desesperadamente por um ou dois metros. Eu não ria mais. Nem falava. Não havia o que dizer. Os três estavam satisfeitos e pareciam felizes. Eu, todavia, estranhava-me e descobria bem o sentido de uma lucidez que insiste em se fazer presente em minha vida.
Lá se vão décadas desse episódio. E de lá até aqui permaneço cética. Ricardo, porém, considerou-me desde então como alguém muito especial. Queria “minha cabeça”. Prometeu-me poderes. Riquezas. Explicou-me que eu tinha a proteção de uma entidade muito especial, uma pombagira, segundo ele. Disse-me que eu deveria me entregar ao outro mundo, dedicar-me às ciências ocultas. Eu disse que não. Que se eu não me entregava nem a este mundo, que dizer de outro.
O namoro acabou. Ricardo morreu poucos anos depois.  A fila andou. O namorado seguinte não era nem tão rico nem tão bonito. Nem precisava. Era muito bem-humorado. A pombagira? Ah! Creio que, lá de vez em quando, ela aparece, ou transparece, inspiradora, em minha irreverência. Talvez para tentar descomplicar um pouco que seja esse mundo que os homens insistem tanto em tornar tão sombrio às vezes.
 




Autor: Maristela Bleggi Tomasini