sexta-feira, 3 de agosto de 2012
O migrante às avessas está se preparando para reconhecer a si mesmo. Vai mudar de cidade. Sofrerá o doloroso processo de internalizar uma nova paisagem, e terá de ser hermeneuta de um simbolismo com o qual apenas sonhara de passagem. Espaços reduzidos nos tornam muito mais visíveis aos outros, como nos fazem também muito mais visíveis a nós mesmos. A província é assim, toda feita de casas de vidro, de transparências, de percepções marcadas pelo que é quase imperceptível.
“As pequenas cidades possuem uma realidade constrangedora que não é feita para pensar nem sentir, porque simplesmente é.”
As sensibilidades são atiladas, e nada passa despercebido, porque em tudo se põe reparo. Haverá discussões sobre o banheiro, e por certo a ousadia de mudar a forma do lavatório será assunto. A tal namorada do sul, que vai e vem, vem e volta, que não mora junto, que etc. Especula-se. Cogita-se. A província é toda curiosidade.
A casa é refeita. Portas, janelas, detalhes. Ousadias. Um computador. Um homem só, que não se sente só, porque sua solidão é iluminada. É bonito, desenvolto, alto e de um falar firme que sabe ser manso e carinhoso. Ele tem mãos bonitas e quentes. Tem olhos muito azuis que já viram tudo e que mediram os horizontes de terras e mares. Chegou com mania de alterar as pequenas coisas, logo estas, que são dentre todas as mais sagradas, porque as grandes não mudam nunca.
O homem que se passeia por aí de vez em quando, e que olha a cidade para onde vai, a casa, as pessoas, as coisas, a grande pedra. Vem de longe e olha. Estranha os hábitos, inquieta-se com as manias. Interioriza-se, assimilando o ambiente. Ele fala outra língua, sem dobras, sem ais, sem erres dobrados, sem singelezas, com letras pronunciadas uma por uma. Assim as roupas, os modos, as esquisitices. Assim ele próprio. Bem assim.
Ele tem dessa simplicidade ensaiada contraída como doença no viver por aí, se encontrando e se despedindo de tudo e de todos. O homem que construiu muitas casas imensas, mas que, de seu, só teve mesmo foram quartos de hotel e lembranças, memórias de coisas idas e de encontros desencontrados, porque as esquinas do mundo nunca se repetem, e tudo durou pouco, ainda o que durasse muito, demais.
E assim o migrante partiu sempre. Se foi. Agora se vem. Está chegando e parece que sente que nunca saiu. O migrante se vê às avessas, porque as pequenas cidades têm a grandeza daquilo que é paradoxal. É a diferença de São Paulo, imensa, onde a gente se dilui completamente e desfruta do sentimento maravilhoso de ser ninguém. E pode-se sempre, quando se quer, tornar-se alguém, para quem se escolhe aparecer, com a urgência de tudo o que tem a eternidade do instante que não se repete, e que cicatriza a dor de qualquer separação.
O sentir-se desnecessário e inútil é a maior das realizações, porque gera a liberdade que se pensa conhecer muito bem, mas que é apenas interior e teórica. São Paulo é despedir-se de si, dos outros, de tudo. São Paulo tem o adeus dos grandes encontros de até nunca mais. Mas as cidadezinhas pequenas, estas são para sempre, e nelas não existe adeus, nem morte, porque os mortos apenas se
“A casa é refeita. Portas, janelas, detalhes. Ousadias. Um computador. Um homem só, que não se sente só, porque sua solidão é iluminada.”
mudam para bem perto, para logo ali, no cemitério onde cada família já tem reservado o seu terreno, a parte que lhe cabe naquele lugar onde a vida transcorreu com a regularidade das coisas previstas que absorvem todos os imponderáveis, tragados pelo cotidiano. No mais, continuam vivendo nos filhos, nos netos, nos negócios começados há décadas e mais décadas. Ninguém tem fim. Ninguém faz falta. Ninguém morre. É proibido, é pecado afrontar a eternidade.
Só as cidades grandes matam e deixam morrer. São esquecimento. Esquece-se o que se comeu pela manhã, e também se esquece a paixão louca e devoradora da noite, que apaga da mente o nome daquele que desperta ao lado, e que, constrangido, veste-se e vai embora. A vida lá é sempre nova a cada amanhecer. Sempre outra. E não se tem compromisso algum com o minuto que acabou. Há relógios que marcam o fim de todas as coisas. Nas pequenas cidades não há relógios, há sinos que embalam o sono do qual não se deve despertar.
Só os grandes centros têm também daquelas manadas que explodem por um triz, que aparecem na TV, incendiando ônibus, jogando pedras, uivando. Depois sossegam. Ordeiros, vão para casa e viram gente comum. Só as grandes cidades têm loucos varridos. Nas pequenas, só há os mansos, os loucos integrados, medicados pelo próprio ambiente que assimila tudo. Não há adeus. Só até logo, melhor: inté. Inté ali, que tudo é feito de esquinas e cruzamentos. Dá-se a volta ao mundo contornando a praça, e até os cães têm por lá uma solenidade envolvente, uma insolência conquistada no ocupar todo o espaço das calçadas estreitas, para onde as janelas e as portas se abrem. Onde não há passos silenciosos, porque todos fazem eco.
Nos grandes centros somos o que queremos ser. Nas pequenas cidades somos o que é feito de nós, uma referência, um nexo causal associado a qualquer coisa que faça parte daquela existência, e nos tornamos, no máximo, parte da paisagem, pois só como parte da paisagem, inseridos na rotina e na regularidade das coisas e dos acontecimentos, é que nos integramos.
Tudo ali na província toma uma importância e uma dimensão à qual aquele vem de longe não está acostumado. As pequenas cidades possuem uma realidade constrangedora que não é feita para pensar nem sentir, porque simplesmente é. Mesmo a linguagem dos monumentos é desnecessária, uma vez que a pedra grande já é bela e grande que chegue. Muita coisa é desnecessária por lá. Espaço principalmente, porque lá se troca espaço por tempo, que se tem demais. E cabe-se em nós. Cada um morando em si, que é justamente para onde o migrante vai migrar. Às avessas.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini