6 de outubro de 2010

Ravaisson

Jean-Gaspar-Félix Laché Ravaisson nasceu em 23 de outubro de 1813 em Namur. Tinha um ano apenas, quando sua família abandonou a cidade natal. Pouco tempo depois, ele perdia seu pai. Sua primeira educação foi dirigida por sua mãe e também por seu tio materno, Gaspard-Théodore Molien, do qual tomou o nome mais tarde. Numa carta datada de 1821, Molien escreve de seu pequeno sobrinho, então com a idade de oito anos: “Félix é um matemático completo, um antiquário, um historiador, tudo enfim”. Já se revelava na criança uma qualidade intelectual à qual deviam juntar-se, facilmente, muitas outras.
A filosofia grega, – diz Ravaisson, – explica primeiro todas as coisas por um elemento material: a água, o ar, o fogo ou alguma matéria indefinida. Dominada pela sensação, como o era no início a inteligência humana, ela não conhece outra intuição que não a intuição sensível nem outro aspecto das coisas que não a materialidade. Vieram então os pitagóricos e os platônicos que mostraram a insuficiência das explicações unicamente pela matéria, e tomaram por princípio os Números e as Idéias. Mas o progresso foi mais aparente que real. Com os números pitagóricos, com as idéias platônicas, está-se na abstração e, por sábia que seja a manipulação à qual se submetem esses elementos, permanece-se no abstrato. A inteligência, maravilhada pela simplificação que ela aporta ao estudo das coisas, em as agrupando sob idéias gerais, imagina, sem dúvida, penetrar através delas até a própria substância da qual as coisas são feitas. À medida que ela via mais longe na série de generalidades, acreditava elevar-se mais na escala das realidades. Mas o que ela toma por uma espiritualidade mais alta não é senão a crescente rarefação do ar que ela respira. Ela não vê que, quanto mais uma idéia é geral, mais ela é abstrata e vazia, e que, de abstração em abstração, de generalidade em generalidade, caminha-se para o nada. O mesmo vale ater-se aos dados dos sentidos, que não nos entregam, sem dúvida, senão uma parte da realidade, mas que nos deixam ao menos sobre o sólido terreno do real. Haveria outro caminho a seguir. Isso seria prolongar a visão do olho por uma visão do espírito. Isso seria, sem abandonar o domínio da intuição, quer dizer, das coisas reais, individuais, concretas, procurar, sob a intuição sensível, uma intuição intelectual. Isso seria, por um poderoso esforço de visão mental, atravessar o invólucro material das coisas e ir ler a fórmula, invisível ao olho, que desenrola e manifesta sua materialidade. Então apareceria a unidade que liga os seres uns aos outros, a unidade de um pensamento que nós veríamos, – da matéria bruta à planta, da planta ao animal, do animal ao homem, – reunir-se sob sua própria substância até que, de concentração em concentração, chegaríamos ao pensamento divino, que pensa todas as coisas e se pensa a si mesmo. Tal foi a doutrina de Aristóteles. Tal é a disciplina intelectual da qual ele forneceu a regra e o exemplo. Nesse sentido, Aristóteles é o fundador da metafísica e o iniciador de um certo método de pensar que é a própria Filosofia.
Mas não parece duvidoso que, do período compreendido entre 1835 e 1845, date o estudo mais aprofundado que ele fez da arte italiana da Renascença. E é ao mesmo período que se deve fazer remontar a influência que teve sobre ele o mestre que não cessou jamais de ser, aos seus olhos, a personificação mesma da arte: Leonardo da Vinci.
Há, no Tratado de Pintura de Leonardo da Vinci, uma página que Ravaisson gostava de citar. É aquela onde ele diz que o ser vivo se caracteriza pela linha ondulosa ou serpentina; que cada ser tem sua maneira própria de serpentear; e que o objetivo da arte é expressar esse serpenteamento individual.”O segredo da arte de desenhar é descobrir, em cada objeto, a maneira particular através da qual ele se dirige ao longo de toda sua extensão, tal como uma onda central que se desdobra em ondas superficiais, uma certa linha flexível que é como seu eixo gerador”. Esta linha pode, aliás, não ser nenhuma das linhas visíveis da figura. Ela não está mais aqui do que ali, mas ela dá a chave de tudo. Ela é menos percebida pelo olho que pensada pelo espírito. “A pintura, – dizia Leonardo da Vinci, – é coisa mental”. E acrescenta que é a alma que faz o corpo a sua imagem. A obra inteira do mestre poderia servir de comentário a essa frase. Detenhamo-nos perante o retrato de Monna Lisa ou mesmo diante daquele de Lucrezia Crivelli: não nos parece que as linhas visíveis da figura vão na direção de um centro virtual situado atrás da tela, onde se descobriria de um golpe, reunido numa só palavra, o segredo que nós jamais terminaríamos de ler, frase a frase, na enigmática fisionomia? É aí que o pintor está colocado. É desenvolvendo uma visão mental simples, concentrada neste ponto, que ele encontrou, traço por traço, o modelo que tinha sob os olhos, reproduzindo, à sua maneira, o esforço gerador da natureza.
A arte do pintor não consiste, pois, para Leonardo da Vinci, em detalhar cada um dos traços do modelo, para transportá-los à tela, reproduzindo, porção por porção, a materialidade. Ela não consiste, não mais, em figurar eu não sei que tipo impessoal e abstrato, onde o modelo que se vê e que se toca vem a dissolver-se numa vaga idealidade. A verdadeira arte visa a expressar a individualidade do modelo e, para isso, ela vai procurar, atrás das linhas que se vêem, o movimento que o olho não vê, atrás do próprio movimento, alguma coisa de mais secreta ainda, a intenção original, a aspiração fundamental da pessoa, pensamento simples que equivale à riqueza indefinida de formas e de cores.
Como não ser surpreendido pela semelhança entre esta estética de Leonardo da Vinci e a metafísica de Aristóteles, tal como Ravaisson a interpreta?

Fonte:Bergson, Henri La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Presses Universitaires de France, 1950, 27ª edição, Paris, 1950, Capítulo IX. A Vida e a Obra de Ravaisson, tradução parcial.