Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro.
Saramago
30 de outubro de 2010
Sabe o roxo?
Tem coisa mais expressiva que cor? Só palavras mesmo me parecem tão expressivas quanto as cores. E não têm elas seu próprio colorido? Roxo é assim, quanto mais por perto do amarelo. Azul e rosa já dizem tanto. Brancos, verdes. Uns pureza, outros esperança, quem sabe inveja, quem sabe ciúme, quem sabe. Cores e palavras, umas e outras me parecem todas carregadas de expressividade.
Tem dia que falta sol...
E tem noite que falta luz.
Só para reforçar
Eu continuo dizendo a mesma coisa. Amigo de meu inimigo, meu inimigo é.
29 de outubro de 2010
Beatriz
Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida
Olha
Será que ela é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida
Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz
Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida
Edu Lobo/Chico Buarque
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida
Olha
Será que ela é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida
Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz
Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida
Edu Lobo/Chico Buarque
28 de outubro de 2010
Tempo
Há quase cinqüenta anos eu era muito ligado à filosofia de Spencer. Percebi, um belo dia, que o tempo não servia para nada, que ele não fazia nada. Ora, aquilo que não faz nada não é nada. Entretanto, eu me dizia, o tempo é alguma coisa. Logo, ele age. Que pode fazer? O simples bom senso respondia: o tempo é aquilo que impede que tudo seja dado de repente. Ele retarda, ou de preferência ele é retardamento. Ele deve, pois, ser, elaboração. Não seria então veículo de criação e de escolha? A existência do tempo não provaria ela que existe indeterminação nas coisas? O tempo não seria esta indeterminação mesma?
Se esta não é a opinião da maior parte dos filósofos, é que a inteligência humana é feita justamente para aprender as coisas pelo outro lado. Eu digo a inteligência, eu não digo o pensamento, eu não digo o espírito. Ao lado da inteligência existe, com efeito, a percepção imediata, para cada um de nós, de sua própria atividade e das condições nas quais ela se exerce. Chamam-no como quiserem; é o sentimento que nós temos de sermos os criadores de nossas intenções, de nossas decisões, de nossos atos, e por aí de nossos hábitos, de nosso caráter, de nós mesmos. Artesãos de nossa vida, artistas mesmo, quando nós o desejamos, trabalhamos continuamente para moldar, com a matéria que nos é fornecida pelo passado e pelo presente, pela hereditariedade e pelas circunstâncias, uma figura única, nova, original, imprevisível como a forma dada pelo escultor à argila.
BERGSON, Henri. Le possible et le réel. Essai publié dans la revue suédoise Nordisk Tidskrift en novembre 1930, in La pensée et le mouvant. Essais et conférences.(Recueil d’articles et de conférences datant de 1903 à 1923).
Se esta não é a opinião da maior parte dos filósofos, é que a inteligência humana é feita justamente para aprender as coisas pelo outro lado. Eu digo a inteligência, eu não digo o pensamento, eu não digo o espírito. Ao lado da inteligência existe, com efeito, a percepção imediata, para cada um de nós, de sua própria atividade e das condições nas quais ela se exerce. Chamam-no como quiserem; é o sentimento que nós temos de sermos os criadores de nossas intenções, de nossas decisões, de nossos atos, e por aí de nossos hábitos, de nosso caráter, de nós mesmos. Artesãos de nossa vida, artistas mesmo, quando nós o desejamos, trabalhamos continuamente para moldar, com a matéria que nos é fornecida pelo passado e pelo presente, pela hereditariedade e pelas circunstâncias, uma figura única, nova, original, imprevisível como a forma dada pelo escultor à argila.
BERGSON, Henri. Le possible et le réel. Essai publié dans la revue suédoise Nordisk Tidskrift en novembre 1930, in La pensée et le mouvant. Essais et conférences.(Recueil d’articles et de conférences datant de 1903 à 1923).
Alhos & Bugalhos
"Convém não confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que são a parte ideológica e vã."
Machado de Assis
Fonte: Migalhas nº 2.500, de hoje.
Machado de Assis
Fonte: Migalhas nº 2.500, de hoje.
Achados entre as páginas
Ixe, já viu pato desquerer de toda água?!
.....
Havia, sim, os sub-valentões, sedentários de mão pronta e mau gênio, a quem, por garantia, todos gostavam de dar os filhos para batizar.
......
Nunca vi defunto tão esticado de comprido.
.........
Achados em GUIMARÃES ROSA, João. Sagarana, Livraria José Olímpio Editora, 18ª edição, Rio de Janeiro, 1976, vol. 1. Tudo o que ele escreve me aparece como assombração, como palavras redimencionadas, tipo esse desquerer aí em cima, ou o comprimento esticado do defunto.
27 de outubro de 2010
20 de outubro de 2010
Dúvida
Sutil e indefinível como a sensação de não reconhecer o óbvio, ainda que, obviamente, ele seja óbvio.
19 de outubro de 2010
18 de outubro de 2010
17 de outubro de 2010
Confiança
Aprendizado. Outros sentimentos por mais ardentes que sejam podem até se tornarem banais com o tempo. Mesmo prosaicos. Mudam, mudam-se, desgastam-se. Até aumentam de tamanho às vezes. Vão de um a dez, mesmo de um a cem. Mas confiança nunca sofre desgastes. Ou é inteira ou não é nada. A confiança é pragmática. Por isso algumas profissões implicam sempre em sigilo, sigilo que até a Lei protege e resguarda. Há um pacto nisso, e todo pacto é sagrado, ao menos no imaginário da humanidade há gerações e gerações. Feliz daquele que tem alguém a quem pode confiar um segredo, uma aberração, um sentido, uma dolorosa fraqueza, uma dor ou uma alegria. Ao longo da vida, encontramos todos os sentimentos uma vez ou outra, mas o mais raro e precioso dentre todos aqueles que o coração humano é capaz de abrigar é, sem dúvida alguma, a confiança. Encontrar alguém, uma só pessoa que seja ao longo de toda a vida, capaz de merecer a nossa confiança equivale a encontrar um tesouro.
Versos Íntimos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Augusto dos Anjos
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Augusto dos Anjos
13 de outubro de 2010
Sentimento, razão e experiência
O método experimental apóia-se sucessivamente sobre o sentimento, a razão e a experiência. O sentimento engendra a idéia ou a hipótese experimental, quer dizer, a interpretação antecipada dos fenômenos da natureza. Toda iniciativa experimental está na idéia, porque é ela que provoca a experiência. A razão ou o raciocínio servem apenas para deduzir as conseqüências desta idéia e submetê-las à experiência.
Claude Bernard
Claude Bernard
Crer na ciência
A primeira condição que deve preencher um sábio que se entregue à investigação dos fenômenos naturais é a de conservar uma inteira liberdade de espírito assentada sobre a dúvida filosófica. Não é preciso, todavia, ser cético; é preciso crer na ciência, ou seja, no determinismo, em relação ao absoluto e necessário das coisas, tanto quanto nos fenômenos próprios aos seres vivos quanto a todos os outros; mas é preciso, ao mesmo tempo, estar muito convencido de que nós não temos essa relação senão que de uma maneira mais ou menos aproximativa, e que as teorias que nós possuímos estão longe de representar verdades imutáveis. Quando nós fazemos uma teoria, geral em nossas ciências, a única coisa da qual nós estamos certos é de que todas essas teorias são falsas absolutamente falando. Elas não são senão verdades parciais e provisórias que nos são necessárias, como graus sobre os quais nós repousamos para avançar na investigação; elas não representam senão que o estado atual de nossos conhecimentos, e, por conseqüência, elas deverão se modificar com o crescimento da ciência, e tanto mais freqüentemente quanto as ciências estejam menos avançadas em sua evolução. De um outro lado, nossas idéias, assim como dissemos, nos vêm à vista de fatos que foram previamente observados e que nós interpretamos a seguir. Ora, causas de inúmeros erros podem introduzir-se em nossas observações, e malgrado toda nossa atenção e nossa sagacidade, não estamos jamais seguros de haver visto tudo, porque freqüentemente os meios de constatação nos faltam ou são muito imperfeitos. De tudo isso resulta, pois, que, se o raciocínio nos guia na ciência experimental, ele não nos impõe necessariamente suas conseqüências. Nosso espírito pode sempre permanecer livre para aceita-las ou discuti-las. Se uma idéia se apresenta a nós, não devemos repeli-la unicamente porque ela não esta de acordo com as conseqüências lógicas de uma teoria reinante. Podemos seguir nosso sentimento e nossa idéia, dar curso a nossa imaginação, visto que todas as nossas idéias são apenas pretextos para instituir novas experiências que possam nos fornecer fatos probantes ou inesperados e fecundos.
Claude Bernard
Claude Bernard
Falta pouco
Falta muito pouco para ver-se o mundo do lado de dentro da torre do castelo... Ou para se fechar a cortina e simplesmente não ver. Para que o mundo? O mundo, neste nosso caso, é um detalhe meramente circunstancial.
Contagem Regressiva
Não faltam muitos dias agora. Ainda assim, é como se o tempo passasse cada vez mais devagar. Deve ser para que se pense melhor. Para que se veja melhor.
12 de outubro de 2010
11 de outubro de 2010
Indústria da Cultura
O mundo fica cada vez mais espetacularmente feio.
8 de outubro de 2010
Do Desejo
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Hilda Hilst, Do Desejo, 1992,
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Hilda Hilst, Do Desejo, 1992,
6 de outubro de 2010
Ravaisson
Jean-Gaspar-Félix Laché Ravaisson nasceu em 23 de outubro de 1813 em Namur. Tinha um ano apenas, quando sua família abandonou a cidade natal. Pouco tempo depois, ele perdia seu pai. Sua primeira educação foi dirigida por sua mãe e também por seu tio materno, Gaspard-Théodore Molien, do qual tomou o nome mais tarde. Numa carta datada de 1821, Molien escreve de seu pequeno sobrinho, então com a idade de oito anos: “Félix é um matemático completo, um antiquário, um historiador, tudo enfim”. Já se revelava na criança uma qualidade intelectual à qual deviam juntar-se, facilmente, muitas outras.
A filosofia grega, – diz Ravaisson, – explica primeiro todas as coisas por um elemento material: a água, o ar, o fogo ou alguma matéria indefinida. Dominada pela sensação, como o era no início a inteligência humana, ela não conhece outra intuição que não a intuição sensível nem outro aspecto das coisas que não a materialidade. Vieram então os pitagóricos e os platônicos que mostraram a insuficiência das explicações unicamente pela matéria, e tomaram por princípio os Números e as Idéias. Mas o progresso foi mais aparente que real. Com os números pitagóricos, com as idéias platônicas, está-se na abstração e, por sábia que seja a manipulação à qual se submetem esses elementos, permanece-se no abstrato. A inteligência, maravilhada pela simplificação que ela aporta ao estudo das coisas, em as agrupando sob idéias gerais, imagina, sem dúvida, penetrar através delas até a própria substância da qual as coisas são feitas. À medida que ela via mais longe na série de generalidades, acreditava elevar-se mais na escala das realidades. Mas o que ela toma por uma espiritualidade mais alta não é senão a crescente rarefação do ar que ela respira. Ela não vê que, quanto mais uma idéia é geral, mais ela é abstrata e vazia, e que, de abstração em abstração, de generalidade em generalidade, caminha-se para o nada. O mesmo vale ater-se aos dados dos sentidos, que não nos entregam, sem dúvida, senão uma parte da realidade, mas que nos deixam ao menos sobre o sólido terreno do real. Haveria outro caminho a seguir. Isso seria prolongar a visão do olho por uma visão do espírito. Isso seria, sem abandonar o domínio da intuição, quer dizer, das coisas reais, individuais, concretas, procurar, sob a intuição sensível, uma intuição intelectual. Isso seria, por um poderoso esforço de visão mental, atravessar o invólucro material das coisas e ir ler a fórmula, invisível ao olho, que desenrola e manifesta sua materialidade. Então apareceria a unidade que liga os seres uns aos outros, a unidade de um pensamento que nós veríamos, – da matéria bruta à planta, da planta ao animal, do animal ao homem, – reunir-se sob sua própria substância até que, de concentração em concentração, chegaríamos ao pensamento divino, que pensa todas as coisas e se pensa a si mesmo. Tal foi a doutrina de Aristóteles. Tal é a disciplina intelectual da qual ele forneceu a regra e o exemplo. Nesse sentido, Aristóteles é o fundador da metafísica e o iniciador de um certo método de pensar que é a própria Filosofia.
Mas não parece duvidoso que, do período compreendido entre 1835 e 1845, date o estudo mais aprofundado que ele fez da arte italiana da Renascença. E é ao mesmo período que se deve fazer remontar a influência que teve sobre ele o mestre que não cessou jamais de ser, aos seus olhos, a personificação mesma da arte: Leonardo da Vinci.
Há, no Tratado de Pintura de Leonardo da Vinci, uma página que Ravaisson gostava de citar. É aquela onde ele diz que o ser vivo se caracteriza pela linha ondulosa ou serpentina; que cada ser tem sua maneira própria de serpentear; e que o objetivo da arte é expressar esse serpenteamento individual.”O segredo da arte de desenhar é descobrir, em cada objeto, a maneira particular através da qual ele se dirige ao longo de toda sua extensão, tal como uma onda central que se desdobra em ondas superficiais, uma certa linha flexível que é como seu eixo gerador”. Esta linha pode, aliás, não ser nenhuma das linhas visíveis da figura. Ela não está mais aqui do que ali, mas ela dá a chave de tudo. Ela é menos percebida pelo olho que pensada pelo espírito. “A pintura, – dizia Leonardo da Vinci, – é coisa mental”. E acrescenta que é a alma que faz o corpo a sua imagem. A obra inteira do mestre poderia servir de comentário a essa frase. Detenhamo-nos perante o retrato de Monna Lisa ou mesmo diante daquele de Lucrezia Crivelli: não nos parece que as linhas visíveis da figura vão na direção de um centro virtual situado atrás da tela, onde se descobriria de um golpe, reunido numa só palavra, o segredo que nós jamais terminaríamos de ler, frase a frase, na enigmática fisionomia? É aí que o pintor está colocado. É desenvolvendo uma visão mental simples, concentrada neste ponto, que ele encontrou, traço por traço, o modelo que tinha sob os olhos, reproduzindo, à sua maneira, o esforço gerador da natureza.
A arte do pintor não consiste, pois, para Leonardo da Vinci, em detalhar cada um dos traços do modelo, para transportá-los à tela, reproduzindo, porção por porção, a materialidade. Ela não consiste, não mais, em figurar eu não sei que tipo impessoal e abstrato, onde o modelo que se vê e que se toca vem a dissolver-se numa vaga idealidade. A verdadeira arte visa a expressar a individualidade do modelo e, para isso, ela vai procurar, atrás das linhas que se vêem, o movimento que o olho não vê, atrás do próprio movimento, alguma coisa de mais secreta ainda, a intenção original, a aspiração fundamental da pessoa, pensamento simples que equivale à riqueza indefinida de formas e de cores.
Como não ser surpreendido pela semelhança entre esta estética de Leonardo da Vinci e a metafísica de Aristóteles, tal como Ravaisson a interpreta?
Fonte:Bergson, Henri La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Presses Universitaires de France, 1950, 27ª edição, Paris, 1950, Capítulo IX. A Vida e a Obra de Ravaisson, tradução parcial.
A filosofia grega, – diz Ravaisson, – explica primeiro todas as coisas por um elemento material: a água, o ar, o fogo ou alguma matéria indefinida. Dominada pela sensação, como o era no início a inteligência humana, ela não conhece outra intuição que não a intuição sensível nem outro aspecto das coisas que não a materialidade. Vieram então os pitagóricos e os platônicos que mostraram a insuficiência das explicações unicamente pela matéria, e tomaram por princípio os Números e as Idéias. Mas o progresso foi mais aparente que real. Com os números pitagóricos, com as idéias platônicas, está-se na abstração e, por sábia que seja a manipulação à qual se submetem esses elementos, permanece-se no abstrato. A inteligência, maravilhada pela simplificação que ela aporta ao estudo das coisas, em as agrupando sob idéias gerais, imagina, sem dúvida, penetrar através delas até a própria substância da qual as coisas são feitas. À medida que ela via mais longe na série de generalidades, acreditava elevar-se mais na escala das realidades. Mas o que ela toma por uma espiritualidade mais alta não é senão a crescente rarefação do ar que ela respira. Ela não vê que, quanto mais uma idéia é geral, mais ela é abstrata e vazia, e que, de abstração em abstração, de generalidade em generalidade, caminha-se para o nada. O mesmo vale ater-se aos dados dos sentidos, que não nos entregam, sem dúvida, senão uma parte da realidade, mas que nos deixam ao menos sobre o sólido terreno do real. Haveria outro caminho a seguir. Isso seria prolongar a visão do olho por uma visão do espírito. Isso seria, sem abandonar o domínio da intuição, quer dizer, das coisas reais, individuais, concretas, procurar, sob a intuição sensível, uma intuição intelectual. Isso seria, por um poderoso esforço de visão mental, atravessar o invólucro material das coisas e ir ler a fórmula, invisível ao olho, que desenrola e manifesta sua materialidade. Então apareceria a unidade que liga os seres uns aos outros, a unidade de um pensamento que nós veríamos, – da matéria bruta à planta, da planta ao animal, do animal ao homem, – reunir-se sob sua própria substância até que, de concentração em concentração, chegaríamos ao pensamento divino, que pensa todas as coisas e se pensa a si mesmo. Tal foi a doutrina de Aristóteles. Tal é a disciplina intelectual da qual ele forneceu a regra e o exemplo. Nesse sentido, Aristóteles é o fundador da metafísica e o iniciador de um certo método de pensar que é a própria Filosofia.
Mas não parece duvidoso que, do período compreendido entre 1835 e 1845, date o estudo mais aprofundado que ele fez da arte italiana da Renascença. E é ao mesmo período que se deve fazer remontar a influência que teve sobre ele o mestre que não cessou jamais de ser, aos seus olhos, a personificação mesma da arte: Leonardo da Vinci.
Há, no Tratado de Pintura de Leonardo da Vinci, uma página que Ravaisson gostava de citar. É aquela onde ele diz que o ser vivo se caracteriza pela linha ondulosa ou serpentina; que cada ser tem sua maneira própria de serpentear; e que o objetivo da arte é expressar esse serpenteamento individual.”O segredo da arte de desenhar é descobrir, em cada objeto, a maneira particular através da qual ele se dirige ao longo de toda sua extensão, tal como uma onda central que se desdobra em ondas superficiais, uma certa linha flexível que é como seu eixo gerador”. Esta linha pode, aliás, não ser nenhuma das linhas visíveis da figura. Ela não está mais aqui do que ali, mas ela dá a chave de tudo. Ela é menos percebida pelo olho que pensada pelo espírito. “A pintura, – dizia Leonardo da Vinci, – é coisa mental”. E acrescenta que é a alma que faz o corpo a sua imagem. A obra inteira do mestre poderia servir de comentário a essa frase. Detenhamo-nos perante o retrato de Monna Lisa ou mesmo diante daquele de Lucrezia Crivelli: não nos parece que as linhas visíveis da figura vão na direção de um centro virtual situado atrás da tela, onde se descobriria de um golpe, reunido numa só palavra, o segredo que nós jamais terminaríamos de ler, frase a frase, na enigmática fisionomia? É aí que o pintor está colocado. É desenvolvendo uma visão mental simples, concentrada neste ponto, que ele encontrou, traço por traço, o modelo que tinha sob os olhos, reproduzindo, à sua maneira, o esforço gerador da natureza.
A arte do pintor não consiste, pois, para Leonardo da Vinci, em detalhar cada um dos traços do modelo, para transportá-los à tela, reproduzindo, porção por porção, a materialidade. Ela não consiste, não mais, em figurar eu não sei que tipo impessoal e abstrato, onde o modelo que se vê e que se toca vem a dissolver-se numa vaga idealidade. A verdadeira arte visa a expressar a individualidade do modelo e, para isso, ela vai procurar, atrás das linhas que se vêem, o movimento que o olho não vê, atrás do próprio movimento, alguma coisa de mais secreta ainda, a intenção original, a aspiração fundamental da pessoa, pensamento simples que equivale à riqueza indefinida de formas e de cores.
Como não ser surpreendido pela semelhança entre esta estética de Leonardo da Vinci e a metafísica de Aristóteles, tal como Ravaisson a interpreta?
Fonte:Bergson, Henri La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Presses Universitaires de France, 1950, 27ª edição, Paris, 1950, Capítulo IX. A Vida e a Obra de Ravaisson, tradução parcial.
Quem? Ora, Jeremy Benthan!
Bem, parece que virou desconhecido, mas Benthan foi um famoso "quem", sim, senhor! Até eu falei dele, e não faz tanto tempo assim, embora, particularmente, não seja nem um pouco apaixonada por suas idéias. Fácil! Aposto que dá para lembrar bem agora, lendo esta nota que coloquei lá nas Transformações do Direito.
“A maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas” — este era o lema com o qual Bentham define o utilitarismo, doutrina por ele criada, cujo fim era a obtenção do bem-estar do indivíduo pela organização pragmática da sociedade. Jeremy Bentham nasceu em Londres em 15 de fevereiro de 1748. Ele estudou direito em Oxford, formando-se em 1772. Em sua obra An Introduction to the Principles of Morals and Legislation (1789) expôs a doutrina do utilitarismo, cuja base era o reconhecimento de que o mundo é regido por dois princípios: prazer (bem) e dor (mal). Como esse fato é incontestável, a ordem social e moral deve buscar a utilidade, ou melhor, aquilo que produz o bem do indivíduo ou, pelo menos, evita uma dor desnecessária. Para tanto, é preciso que se crie uma ordem de valores, de acordo com a utilidade de cada um, optando-se pragmaticamente pelos que possam produzir o maior bem para o maior número de pessoas.
O castigo, assim, que produz dor e não bem-estar, só deve ser empregado para prevenir males maiores. Bentham contribuiu para que diversos países adotassem mudanças em suas leis penais e processuais. Em 1823 participou da fundação da Westminster Review e formou a seu redor um grupo de discípulos, entre eles o filósofo John Stuart Mill, que perpetuou sua doutrina ao longo do século XIX. Escreveu uma teoria das penas e das recompensas, obra da qual possuo cópia integral da edição belga de 1840. Morreu em Londres, em 6 de junho de 1832.
Diferir
Existir é diferir. Nossas semelhanças, que o sábio estuda, nossas mútuas imitações, não são senão um meio de pôr em relevo nossa diferença essencial, delícias de artista, única razão de ser de nosso ser. Eis aí aquilo que pertence ao filósofo demonstrar, se ele quiser cumprir sua missão inteiramente, que não é apenas a de sublimar a ciência e destilar a arte, mas combinar, em suas fórmulas, todo o suco de uma com a essência da outra.
G. Tarde
Observação: Eu já declarei minha paixão por Gabriel Tarde muitas vezes, paixão que persiste cada vez forte, na medida em que, mais de cem anos depois de sua morte, nenhuma outra percepção de mundo me parece tão surpreende e instigante quanto a dele. Embora complexo e exigindo muito de seus leitores, o esforço é plenamente compensado, e o contato com sua obra realiza uma verdadeira revolução de idéias, como se nos abrisse um novo sentido, aquele que, sem deter-se nas coisas tais como são, nos torna ávidos por contemplar o avesso dessas mesmas coisas.
G. Tarde
Observação: Eu já declarei minha paixão por Gabriel Tarde muitas vezes, paixão que persiste cada vez forte, na medida em que, mais de cem anos depois de sua morte, nenhuma outra percepção de mundo me parece tão surpreende e instigante quanto a dele. Embora complexo e exigindo muito de seus leitores, o esforço é plenamente compensado, e o contato com sua obra realiza uma verdadeira revolução de idéias, como se nos abrisse um novo sentido, aquele que, sem deter-se nas coisas tais como são, nos torna ávidos por contemplar o avesso dessas mesmas coisas.
Modernidade
A Modernidade consiste neste movimento político e filosófico que vem acontecendo nos últimos três séculos da história ocidental e que, portanto, abrange nossas vidas.
Eis os cinco processos convergentes que caracterizam a modernidade:
a individualização, pela destruição das antigas comunidades de pertinência;
a massificação, pela adoção de comportamentos e de modos de vida estandardizados;
a dessacralização, pelo refluxo das grandes pregações religiosas em proveito de uma interpretação científica;
a racionalização, pela dominância da razão instrumental através da troca de mercadorias e da eficácia técnica,
a universalização, pela extensão planetária de um modelo de sociedade implicitamente colocada como único possível racionalmente, logo, como superior.
Dentro desses processos caracterizadores da modernidade, a humanidade é aí percebida como uma soma de indivíduos racionais que, por interesse, por convicção moral, por simpatia ou ainda por temor, são chamados a realizar sua unidade na história. Nesta perspectiva, a diversidade do mundo torna-se um obstáculo, e tudo aquilo que diferencia os homens é percebido como acessório ou contingente, ultrapassado ou perigoso.
Fonte: BENOIST e CHAMPETIER. Manifeste : la Nouvelle Droite de l'an 2000, Eléments n°94, février 1999.
Eis os cinco processos convergentes que caracterizam a modernidade:
a individualização, pela destruição das antigas comunidades de pertinência;
a massificação, pela adoção de comportamentos e de modos de vida estandardizados;
a dessacralização, pelo refluxo das grandes pregações religiosas em proveito de uma interpretação científica;
a racionalização, pela dominância da razão instrumental através da troca de mercadorias e da eficácia técnica,
a universalização, pela extensão planetária de um modelo de sociedade implicitamente colocada como único possível racionalmente, logo, como superior.
Dentro desses processos caracterizadores da modernidade, a humanidade é aí percebida como uma soma de indivíduos racionais que, por interesse, por convicção moral, por simpatia ou ainda por temor, são chamados a realizar sua unidade na história. Nesta perspectiva, a diversidade do mundo torna-se um obstáculo, e tudo aquilo que diferencia os homens é percebido como acessório ou contingente, ultrapassado ou perigoso.
Fonte: BENOIST e CHAMPETIER. Manifeste : la Nouvelle Droite de l'an 2000, Eléments n°94, février 1999.
3 de outubro de 2010
Tentativa
― Por que você pelo menos não tenta perceber o mundo em vez de pensá-lo? Não é uma questão de entender e menos ainda uma questão de aceitar. Entender e aceitar são formas de fechar-se. Não é isso. É uma questão de perceber. De perceber por dentro. Por que você pelo menos não tenta?
.........................................................................................................................................................................
R.: (De) formação, simples deformação. Um dia eu aprendo.
.........................................................................................................................................................................
― Foi deformando o que pensava ver e saber que Picasso aprendeu a perceber o mundo. Deforme-se, então, empregando a forma reflexiva. Ou apregoe por aí que é preciso desentortar os quadros de Picasso. Ou gente como eu, pela correção ou pela cura.
2 de outubro de 2010
1 de outubro de 2010
Ângelo Roque Dorta
Ângelo Roque Dorta, meu amigo Roque, acho que a única pessoa neste mundo que ostenta a tal originalidade irredutível do ser. Roque, que fala de si na terceira pessoa do singular, consegue ser ele mesmo a despeito do mundo, das normas, das regras, de tudo. Ainda assim, filosofa e cria essas legendas de vida, quando menos se espera.
Agora me veio com esta: tem dia que falta sol.
E tem mesmo, não tem, Roque?
Vou te ver. Pode esperar. Não tenho sol nenhum para levar ao teu dia, mas vou. Daí a gente proseia e tira retrato.
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