14 de junho de 2025

Absolutamente

Cês aí nem sabem, nem sonham, nem imaginam. Acabo de ganhar presentes! Inesperados presentes. Bem no sábado, dia de escritas e de pensamentos, de faxinas e reflexões. 

Bem neste sábado, quando lia Georges Perec ouvindo rock enquanto a roupa secava na secadora, porque, afinal, pode chover e, no fim, acabou chovendo. E, em meio ao insólito caoísmo do infra-ordinário da cotidianidade mais banal, chegam-me presentes, inesperados presentes, que são o cúmulo do refinamento.  

Upgrade imediato das percepções e da sensorialidade, porque é café especial e porque são pães de queijo que chegam em pleno fim de tarde.  

Memorável.  Absolutamente.

9 de junho de 2025

O Rascunho e o Jardim

Porque existem lugares imaginados, nos quais as cores escolhem seus próprios tons. Ali há verdadeira paz, sossego, beleza e música, assim como cheiros suaves que misturam flores e frutas. 

Lugares imaginados têm a concretude dos sonhos e a consistência do pensamento. Eles são invulneráveis. São indestrutíveis. Sua induvidosa existência concretiza-se a partir de um mínimo de exigências. 

E eis que surgem. Amplos, ilimitados, ostentado horizontes abertos que provocam a memória. Onde foi? Onde estava? Quem fez? 

Tanto faz, porque não há respostas a perguntas desnecessárias. O que sei, de verdade, é que todos têm seus lugares imaginários, exceto os desistentes: os que não sonham, os que não imaginam, os que não sabem, os que não ousam. Enfim, que não contam.

E, entre tais, esses todos generalizados e as exceções ora excepcionadas, oscilam, de um lado, a existência, de outro, todas as dúvidas que ela suscita. 

Seres intermitentes, existimos por entre incertezas e expectativas. O que nos sustenta senão o vislumbre de lugares onde todos os possíveis convivem em paz?  

É nesses refúgios inventados que habitamos. E talvez, no fim, viver não seja senão isso: um vaivém entre o que é e o que poderia ser — entre o chão e o céu.

Só não se deve esquecer que um rascunho triste pode, muitas vezes, esconder um jardim.


8 de junho de 2025

Do pensamento à palavra

Então, são pensamentos que vêm e que vão. Que competem. Que resvalam. Outros se escondem. Enfileirados, seguem em procissão. Ora vêm à luz, ora vão às sombras. Sempre assim. Deslizantes. Confusos. Sossegam, todavia, aqui: quando encarnam palavras. Daí, finalmente, acontecem.

7 de junho de 2025

Sábado

 

Há sentido nos dias da semana. Eles se repetem. São incansáveis. 

Mas esse sentido que os dias tomam, sendo segundas ou sábados, sendo domingos de missa ou de galeto, têm muito a ver com a idade, como essa nossa graduacão na temporalidade. 

Porque para crianças não faz muita diferença e, para muitos velhos, tampouco faz sentido que hoje seja segunda ou sexta. 

Seja como for, a sequência dos dias marca uma cadência que empresta sentidos ao tempo. 

E ao que fazemos dele. 

1 de junho de 2025

Ninguém vai amá-lo

Faz pelo menos vinte e cinco anos que vou ao mesmo salão. A Luísa, que começou como minha cabeleireira, virou amiga — daquelas que já sabem dos silêncios, que olham pelo espelho e entendem o que não se disse. Muita gente ali é assim. Clientes de longa data, histórias cruzadas entre tinturas, cortes e cafés. Às vezes, parece mais uma pequena comunidade do que um salão.

Naquele dia, minha hora seria logo depois de um cliente especial. Luísa já tinha me contado dele algumas vezes, com um cuidado que é só dela. Eu tomava um café quando ele chegou, acompanhado da mãe.

Ele devia ter mais de cinquenta. A mãe, bem mais. Talvez setenta e muitos. Vestia-se com elegância simples, dessas que vêm de tempos antigos. Estava arrumada, com os cabelos presos e as unhas feitas. Mas as mãos tremiam. O filho era magro, moreno, cabelo encaracolado e comprido, barba por fazer, grandes suíças. Sentou-se com ajuda. Ajeitou-se na cadeira como pôde, e as pernas não paravam de se mover.

Luísa o acolheu com aquele jeito leve, sem cerimônia. Prendeu a capa em volta do pescoço dele, ajustou com delicadeza, como se arrumasse um laço. Perguntou sobre música. Ele respondeu que tocava de vez em quando. A voz era quase neutra, o olhar oblíquo, perdido em algum ponto que ninguém mais via.

A mãe, à margem da cadeira, observava com atenção. Em silêncio. Os olhos não saíam dele. Quando Luísa começou a cortar os fios, ela me olhou. E eu vi — nos olhos dela, algo que pesava muito mais do que aquele corpo trêmulo deixava mostrar.

Aproximou-se de mim como quem não quer incomodar. E disse baixo, com esforço:

— Ele tinha 17 anos quando isso se manifestou. Desde então, nunca mais... você sabe, né? A... esquizo...

Assenti. Ela não esperava uma resposta.

Fez uma pausa. Depois falou outra vez, agora olhando bem nos meus olhos. A voz firme, sem lágrimas, sem cena. Só verdade:

— E agora eu, com esta doença. Esse mal de Parkinson. Penso em como vai ser. Porque, sabe? Eu não posso adoecer. Eu não posso morrer. Tenho que levá-lo toda semana pro tratamento. Ele faz eletrochoques. Daí melhora. Preciso cuidar dele.

(Respirou fundo.)

— Por isso não posso morrer.

(Fez mais uma pausa. Olhou para o filho, e então concluiu.)

— Se eu morrer... ninguém vai amá-lo.

A frase saiu assim. Sem drama. Como quem fala do tempo ou do preço do pão. Mas ficou no ar como um espinho — fino, invisível, impossível de arrancar.

O corte terminou. Luísa ajeitou os últimos fios, limpou o pescoço dele com o mesmo cuidado de quem penteia uma criança. A mãe agradeceu. Acertaram a conta. E saíram, os dois, devagar.

A porta fechou-se com o barulho suave do sininho pendurado no alto. Luísa e eu nos olhamos. E calamos.

Não havia o que dizer.