Porto Alegre, 26 de setembro de 2024.
Querida Mana,
adorei saber que te lembraste de mim recentemente e que comentaste acerca
de nossas tantas e tão nostálgicas lembranças. Não sei se é bem nostalgia,
esta palavra tão cult que não vai muito além da saudade. Também não sei
se é saudade, porque, afinal, cenários não voltam. O importante foi saber que
te lembraste de mim. E saber disso foi como um chamado, para que eu me
lembrasse de quem sou. É que às vezes esqueço. Afinal, nada pior do que assumir
o peso de um eu inadequado.
Eu te entendo, Mana. Sei que estamos ambas sempre meio desafinadas.
Detestamos ser contrariadas e, se as coisas dependessem de nós, o mundo seria
muito, mas muito melhor do que é. Mas,
claro! Isso só se seria possível se todo mundo conseguisse ver o que nós vemos
e sentir o que nós sentimos. Não nascemos para aceitar, sem reclamar, um mundo
feio no qual ninguém mais se importa com aqueles detalhes que fazem toda
diferença.
Contudo, sei que tu, assim como eu, se importa. Não é o café, é também a
xícara. Não é o presente, é também a embalagem. Para nós, a festa começa na
véspera, e os ensaios são a melhor parte da peça. Aquilo que os outros vivem
como real, é banal para a gente, que costuma olhar o bordado pelas tramas que
aparecem no avesso. Daí eu dizer que somos desafinadas. Inconsequentes, às
vezes. Alienadas, frequentemente, como um ponto fora da curva.
É claro que não somos fáceis para ninguém. Todavia, os outros tampouco
são fáceis para nós, de sorte que estamos quites. Afinal, a grande maioria
comporta-se como zumbis. Desconfio de que já são zumbis. É uma epidemia que
promete, de modo que a gente deve tratar de se adaptar. Afinal, não há retorno possível
lá fora de nós, onde tudo se torna cada vez mais feio. Sim, Mana. O feio
existe. E ele veio para ficar. Coisas e pessoas estúpidas também. É preciso
conviver com tudo isso, querendo ou não.
O rebanho nos empurra: ou aceitamos o ritmo, ou corremos o risco do
atropelo e consequente pisoteio. A manada existe e, queiramos ou não, ela conduz
o mundo e recria tudo por um viés verdadeiramente enviesado, para não dizer
torto. Torto, sim, porém sem a elegância de um Picasso, porque torto para
adaptar-se à carência de sensibilidade. Contudo, para pessoas privilegiadas
como nós, Mana, que sentimos tudo e que vemos tudo nas oitavas mais profundas
como também nas mais altas, algumas portas ainda se abrem. Podemos nos alienar
disso tudo e viajar um pouco no tempo. Não é o que fazemos?
Vamos tentar? Vem comigo, Mana. Tenho certeza de que tu, assim como eu,
ainda se lembra do “Marinha Magazine”, onde se comprava roupas de qualidade a
preços justos. Ah! Tinha uma tal “A Botinha da Zona”, uma sapataria popular muito
falada no rádio. Nunca estive lá, mas era fácil imaginar o movimento. Lembras de
uma Loja chamada “Garota Porto Alegre Bebê”? De lá, o meu vestidinho estilo
marinheiro. Não ficava muito longe daqui. Ah! Com certeza, os uniformes de
colégio. Lembra? Eram comprados nas “Casas Carvalho”, ali na Otávio Rocha esquina
Marechal Floriano. Loja lotada a cada início de ano letivo. Saias azul marinho
pregueadas, de tergal. As blusas brancas. Meias americanas sempre brancas. E
havia os sapatos colegiais marca Vulcabrás. Tempos idos. Andei de bonde. Lembro
dos bancos de madeira, dos trilhos, do ruído que faziam, da cor amarela, dos
reclames ― comercial é coisa de agora ― colados acima das janelas. Emulsão
Scott, óleo de fígado de bacalhau, Cafiaspirina, Regulador Xavier, a Saúde da
Mulher, Pomada Minâncora. Lembra Mana? Sabonete Palmolive desbancado depois
pelo sabonete Lux, usado por nove entre dez estrelas de cinema. Nas Seleções do
Reader’s, Jane Fonda e Ursula Andrews apareciam usando Lux. Como duvidar? Creme
dental era simplesmente pasta de dente. Kolinos ou Colgate. Shampoo Colorama. Depois
apareceu o Seda Shampoo, que sobrevive até hoje. O melhor, todavia, era o
maravilhoso shampoo cremoso, cor de rosa, Helena Rubistein, que só tinha na
Casa Lyra. Não havia muitas escolhas, é verdade, mas o consumo era glamuroso e levado
muito a sério: preço e qualidade eram tudo. Eu sei que hoje temos muito mais
escolhas, mas me ressinto da falta de estilo, assim como do tempo e da importância
dedicados a tudo o que se fazia. Comer galinha, por exemplo. Coisa de domingo.
Afinal, era preciso matar o bicho e proceder a toda uma série de operações que
antecediam o preparo. Comia-se na sala. Cerimoniosamente. Aos domingos, missa
obrigatória. Depois, flexibilizada, porque valia também a missa de sábado, às
18 horas. Muito chique. Vivia-se ao compasso de horas marcadas.
A cidade era também mapeada socialmente. Havia os pontos mais chiques,
assim como os tradicionais. A Mesbla, por exemplo, era uma loja enorme. Andares
e mais andares de produtos. Vendedores profissionais, que atendiam de gravata e
usavam camisas brancas impecáveis. Barba feita. Água de colônia. Unhas limpas. Nas
Lojas Americanas funcionava uma lancheria onde eu comia o Sanduíche
Universitário, feito com três fatias de pão de forma, com queijo, presunto,
tomate, alface tenra, maionese, cortado quatro triângulos que eram colocados
com a ponta para cima, no meio, batatas palha. E havia sorvete com uma gelatina
bem dura e colorida que dava para morder. Havia a Banca 40 no Mercado Público,
onde se tomava o melhor sorvete da cidade e comia-se uma salada de frutas
sempre preparada na hora. Tudo fazia muito sentido. Voltando ao Centro, havia a
Loja JH Santos, Ibraco, Incosul, Casa Quoates. O Centro era muito seleto. Gente
arrumada. Homens que engraxavam e lustravam os sapatos na Praça XV. Meninos
engraxates, e também adultos. Todos cuidavam da aparência, porque era
importante parecer alinhado. Ninguém ousava ir para o Centro usando roupas do
cotidiano. Não havia buffets. Naturalmente, comia-se a la carte
em restaurantes onde havia garçons muito educados. Com licença, por favor e
muito obrigado não eram regras, mas leis.
Ah, lindas lojas. Havia o Bromberg, onde a gente comprava cristais,
pratas, presentes de casamento. Havia a Sloper. A Casa Lyra. A Escosteguy e a
Elegância Modas. A sapataria Don Gerson, a Loja Europeia. A joalheria Scarpini.
A Casa Mason, com aquele relógio. A Casa Louro, com aquela sacola de papel
brilhante na qual aparecia uma rosa vermelha fotografada sobre um tecido pied
de poule. Eu ainda seria capaz de reconhecer cada uma dessas lojas e muitas
outras, se andasse pela rua dos Andradas. Ainda sou capaz de me lembrar,
precisamente, dos cheiros e dos sabores. A vida era regular: na Sexta-Feira
Santa só se ouvia música clássica. Ninguém comia carne, embora não fosse
exatamente um sacrifício sentar à mesa para saborear o bacalhau.
Porto Alegre era outra, muito diferente. Apesar de ser “a capital do
estado”, era muito provinciana, conservadora, pequeno burguesa, chata, muitas
vezes mesquinha, outras vezes generosa, mas sempre convicta. É que todos
pareciam saber a diferença entre “certo e errado”, ainda que de uma forma
obtusa e rasa. Sabes do que mais sinto falta, Mana? Da cortesia. Bem ou mal, por
mais modestas que fossem as pessoas, a grosseria era uma raridade. E, quando
acontecia, caso acontecesse, uma reprovação geral crescia em silêncio a ponto
de constranger quem quer que cometesse um ato tosco ou deselegante. Não! Não
era essa “indignação geral” e coletiva que se trombeteia por aí. Nada disso. Era
uma reprovação muda, silenciosa, elegante, mas que gelava o sangue nas veias. O
meu, por exemplo, caso derrubasse um talher em um restaurante, ou despenteasse
o cabelo preso em coque.
Sabe, Mana, eu não sabia que sentia tanta falta disso. Afinal, trata-se
apenas do passado. Mas agora, tentando te levar comigo nesse passeio pelo
tempo, compreendo que nunca soube me conformar inteiramente às mudanças que
despojaram antigas paisagens de tantos ícones. Como conformar-se à rasa
estupidez que grassa por aí? Não consigo me conformar ao verniz superficial que
pretende se estender a todos, ditando comportamentos que não passam de
artifícios e simulações. Afinal, não é necessário ser, basta parecer. No fim,
nada encobre o imenso vazio que deve ser preenchido por um consumo voraz que se
estende a ideias niveladas cada vez mais baixo na escala daquilo que um dia foi
“o Belo”. Penso que este “Belo” já foi varrido pelos ventos do rebanho, para os
quais “o Justo” e “o Bom” também foram relativizados, a ponto de estes dois
últimos já terem se tornado tão irreconhecíveis quanto o primeiro.
Filosofias à parte, Mana, importante é estarmos ainda por aqui. Somos
seres de pouca luz. Acredito que só você seria capaz de compreender isso com
precisão. Somos seres de pouca luz, sim, tremulando no escuro, como velas
acesas à beira de uma praia em noite de ventania. Resistimos. Não somos
espetaculares como os grandes eventos que não podem prescindir do fetiche dos
fogos de artifício. Não rugimos com força. Nossa voz só pode ser ouvida no
silêncio. Nossa memória jamais será história, e nossas lembranças vão se dispersar
como folhas soltas de revistas antigas cujas páginas se perderam. Somos
disfuncionais.
De bom, porém, foi saber que lembraste de mim, Mana, e que, não obstante
perdidas entre tigres e zumbis, nosso glamour subsiste. Nossas
lembranças são mais fortes que toda a realidade banal que invade o mundo.
Fique bem, Mana. Continue afinada por dentro, atenta a tudo sem ligar de
verdade para nada. A gente se reinventa cada vez que o mundo investe contra nós
e nos desmonta, porque nossa coerência é interna e prescinde dos modelos
pré-formatados.
Adorei te rever! Obrigada por me lembrar de quem sou, de quem és e de
quem somos enfim.
Com carinho,
Da tua Mana Maristela