Ela fala, eu escuto. Não por
algum impulso de empatia forçada, mas porque estou ali, à mesa de um café
qualquer, com a xícara esfriando e o vapor subindo como um detalhe irrelevante.
É sobre um homem. Sobre
ele: essa categoria que só as mulheres conhecem.
Ele pode ser um projeto de futuro.
Ele representa o
amor,
mas na verdade
ele não passa de uma equação mal resolvida. Ouço a
história repleta de indiferenças. Para cada falha dele, ela cria uma
justificativa. Em último caso, a culpa recai sobre uma suposta
outra, que
sequer existe, mas que deve existir, com certeza, para o fechamento da equação,
para o equilíbrio das coisas, para que o déficit não consuma, de uma só vez,
todo estoque de esperança.
Penso em Eugénie Grandet, que
gastava seus dias esperando ser vista por ele. Não há poesia nisso, só
um padrão repetitivo: a espera como armadilha. Minha amiga não vive no século
XIX, mas poderia. Ela constrói castelos que desmoronariam sob o peso da lógica.
"Ele vai mudar", diz, como se o futuro dependesse do cumprimento de
certas cláusulas de contrato que visam garantir sua felicidade. Eu não digo
nada. Em vez disso, aponto o óbvio com um comentário cortante: "Esse cara?
Ele acha que o mundo é um espelho dele mesmo." Ela ri, um riso breve, que
não disfarça o vazio nos olhos dela. Não é um vazio metafórico, é concreto: a
ausência de algo que preencha o tempo vivido além da espera.
Olho para mim e penso no empenho
que faço em não depender dessa tal esperança. Talvez porque pense e calcule. Talvez
porque tenha medo de parecer patética. Vejo o óbvio, mas posso fingir que ele
não existe, porque sei como conferir uma nova versão às coisas, ao mundo, à
vida. Faço isso quando misturo farinha, açúcar e suco de laranja numa tigela. Ralo
gengibre, misturo canela e o calor do forno perfuma a casa com um cheiro que
não explica nada, mas que ocupa todos os espaços. E quando não há farinha, eu escrevo,
em cadernos que ninguém lê, frases e histórias que nem sempre publico. Houve um
tempo em que plantava sementes em vasos e os colocava na janela, para observar
as folhas que cresciam sem alarde. Depois desisti, pois o vento espalhava a
terra e as pobres plantas insistiam em morrer, quando eu me esquecia de
regá-las. Ou quando eu não fazia nem isso por elas, e as via definhar, pensando
que a vida também não acontece por si, a não ser até certo ponto. Tudo porque a
morte está sempre presente, à espreita. Mas minha amiga não sabe nada disso. Nem
quer saber. Refém do sonho, não cozinha, não escreve, não planta e apenas ele
germina em sua vida.
Tento explicar. Penso nos scripts
culturais que moldam o que ela reconhece como amor. Regras antigas, papéis de
gênero que a Modernidade ainda não apagou, mas que fatalmente apagará, quando
daqui partir o último boomer. Mulheres devem ser estratégicas, dizem os
ecos de romances baratos e até novelas clássicas. Devem calcular, seduzir,
nunca se expor. A sinceridade, nesses scripts, é um erro de amador. Ela
parece acreditar nisso, mesmo sem dizer. Ama em segredo, como se admitir o
sentimento fosse uma confissão de derrota. Eu não comento. Não porque não me
importe, mas porque não sei o que dizer. Desiludi-la seria apontar o óbvio: o
amado é uma miragem.
Mas por que eu apagaria a miragem
do deserto dela? Para que ela acolhesse e assumisse a rejeição? Rejeição não é
mera abstração. É conta que não fecha porque depende do amanhã. Contingente e
imponderável, o amanhã não pertence nem a ela, nem a ele, nem a mim. E, além
disso, o amanhã dos esperançosos não chega nunca, porque pode ser adiado
indefinidamente. E ela “sabe” que só será amanhã quando ele chegar. Penso
nas pílulas que prometem felicidade, nos filtros que escondem rugas e verdades.
Ela não usa nada disso. Não foge do luto nem da renúncia. Não tem um rosto
voltado para o mundo. Ela apenas espera.
O que faço? Escuto, porque é o
que posso fazer. Zombo do amado, porque é fácil e porque ela ri. Não digo que a
espera é uma escolha nem que escolhas podem ser mudadas. Não porque acredite em
grandes viradas, mas porque sei criar futuros. E faço isso quando coloco um
novo bolo no forno, quando vejo a tinta desenhar palavras nos meus cadernos. Terra
no vaso é promessa cumprida à semente. E depois, histórias bem contadas desafiam
o tempo, o destino e a morte.
Hoje ela vai esperar por ele mais
uma vez, trocando a vida pelo sonho. E eu, contando essa história, só penso em
você que, lendo isso, pensará que não faz sentido. Não importa. Eu só queria
mesmo era lembrar você do sabor daquele bolo de laranja. Só não se esqueça do
gengibre. Nem da canela. E coma depressa, enquanto seu café não esfria.
REVISTA VIDA BRASIL