21 de junho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL


IMPROVISANDO A VELHICE
terça-feira, 19 de junho de 2012
A dor nas costas, incômoda e insistente, leva você à farmácia. Sua prima, que trabalha lá, vem atendê-lo. Você conversa, explica a dor, pede o remédio. Comenta que isso é um sinal de que está ficando velho. Ela, que é jovem, sorri e lhe diz, muito simplesmente:— Como ficando? Você já é velho, ora! Não é só com você. Comigo também acontece. Parece não ser com a gente, mas é, assim como a dor nas costas, o cansaço, as escadas, a bolsa que pesa cada vez mais.


A dor nas costas, incômoda e insistente, leva você à farmácia. Sua prima, que trabalha lá, vem atendê-lo. Você conversa, explica a dor, pede o remédio. Comenta que isso é um sinal de que está ficando velho. Ela, que é jovem, sorri e lhe diz, muito simplesmente:— Comoficando? Você já é velho, ora! Não é só com você. Comigo também acontece. Parece não ser com a gente, mas é, assim como a dor nas costas, o cansaço, as escadas, a bolsa que pesa cada vez mais. É o espelho que insiste em mostrar que o tal creme caríssimo não adiantou nada.
 “Não vou acumular experiências nem pré-formatar o mundo. É excesso de bagagem. Vou gastar tudo o que tenho até o fim, despender todas as palavras que tiver.”
É o espelho que insiste em mostrar que o tal creme caríssimo não adiantou nada. Quando não é nosso olhar, é o olhar dos outros. É ainda o acostumar-se a ser visto simplesmente como velho. —Como assim, velho? Eu? — Sim, é com a gente.Não adianta olhar para o lado. Não há mais ninguém ali com quem se possa compartilhar o efeito dessas observações repletas de desconcertante sinceridade. Lembro de mim, encantada com uma peça de roupa à venda numa loja de departamentos. A vendedora me olhou do alto de sua juventude e perguntou, parecendo intrigada:
 — É para a senhora?
— Sem dúvida, seria. Mas, pensando bem, acho que...
Estou certa de que temos coisa pior para lembrar. Não é melhor esquecer? Não, não é. Devemos nos lembrar de nós mesmos quando éramos jovens. Quando pensávamos que juventude era ter menos de vinte. Sim, senhor! Adulto é nos vinte. Trinta é coroa. Quarenta? Meia idade. Que dizer dos 50? Cinquenta é meio século ora!
Crueldade escrever coisas assim? Não. Somos velozmente desapropriados pelo tempo de uma série de coisas. É bem difícil conformar-se a essas perdas. Você vai dizer que temos sabedoria, experiência, histórias para contar. Fala sério! O Google tem muito mais respostas. É mais sábio que qualquer um de nós. Experiência? Ah! Sim. Costumamos fazer de conta que essa tal experiência é tudo, mas creio que nem mesmo de sexo a gente entende bem atualmente. É verdade que sabemos lidar com diversas coisas, especialmente quando se trata de pôr sucatas para funcionar. Aliás, é lindo aquele rádio a válvulas que você deixa perto do porta-retratos onde está a minha fotografia. E você entende de carburadores e radiadores também.  Sabemos mexer em computador. Você se lembra do 486? Do Pentiun 100?
Somos romanticamente redundantes quando, empertigados, admitimos as perdas e procuramos compensá-las com a experiência. Bobagem. A lição mais difícil a gente ainda precisa aprender. A pior de todas: aprender a ser velho. Só isso. Vantagem? Ah! De vez em quando acho uma: eu digo que passei dos cinquenta e alguém me mente, dizendo que não parece. Deve ser a safra da Madona e da Barbie.
 “Eu fracassei em muita coisa. A principal foi jamais ter conseguido me tornar uma pessoa focada e objetiva

Trágico é que tenho uma memória que muita gente da minha idade faz questão de não ter. Eu me lembro perfeitamente do que pensava aos vinte e antes dos vinte sobre gente da minha idade e da sua. Tudo bem, quando eles se deixavam ser apenas velhos e ficavam na deles, aproveitando-se da hierarquia natural que resultava da idade. Tinham cabelos brancos, usavam roupas de velhos, pensavam como velhos e, com isso, adquiriam certa autoridade. Eram respeitados e não queriam nada além desse respeito. O problema começava quando desejavam ser um de nós. Não eram! Se chegaram assim à velhice, nunca entenderam bem sequer a própria juventude.


Como era chata aquela mulher que se vestia com a roupa da filha, meu deus! E o sujeito que empregava as nossas gírias, sem ter a menor noção de que ficava ridículo! Pensava estar se comunicando. Tinha, quando muito, nossa indulgência. Você gosta disso? Eu ainda me lembro muito bem do que comentávamos a respeito do Tio Sukita. Ah! Era justo, justíssimo que nós jovens praticássemos, sim, esse mesmo bullying quea sua prima fez com você, e que a vendedora da loja fez comigo. No nosso tempo, não era assim nenhum pecado achar que velho era feio, chato, metido e inconveniente. Não havia o tal estatuto, e ainda não haviam inventado a vitimização.
Será que eu fui uma jovem cruel? Seguramente não menos cruel que a maioria dos que, como eu, nasceu há mais de cinquenta anos atrás. A diferença é que me recuso a fazer de conta que perdas assim podem ser compensadas. Não podem. Salvo se quisermos cultivar a ilusão de que a vida começa aos 40 e que existe a melhor idade. Acho que se eu ouvisse uma frase destas na década de 70 ia morrer de rir. E daí que nós já tivemos vinte? Nossa experiência dos vinte se deu em outro tempo, em outra época, quando vigoravam outros valores que não podem ser simplesmente presentificados sem uma enorme deformação.
Fácil fingir que experiência conta, que velhice tem belezas próprias. Imagina! Ficamos feios, ora! A pele muda de cor, o cabelo fica branco e engrossa, dentes caem ou ficam escuros, a visão diminui, os ouvidos apitam, as carnes amolecem e os ossos se tornam porosos, a gente engorda em algumas partes enquanto outras murcham e viram pelanca. Ah! Lugares que antes era peludos vão ficando carecas, enquanto surgem pelos duros e brancos onde a gente nunca os teve antes. No queixo, por exemplo. As regras escasseiam e depois cessam. A taxa de hormônios despenca. A minha bexiga cai, é verdade; mas a sua próstata aumenta. Não falta muito para que daí resulte aquele cheiro de xixi. Cada inverno se torna mais frio. A conservação ou manutenção do corpo dá uma trabalheira danada. E custa caro. Conseguimos fazer com que algumas partes de nós se conservem com 30, mas isso não acontece com todas as partes. É possível substituir alguma coisa, mas não tudo. E não sei até que ponto é interessante ter peitos de 20, bunda de 40, cara de 30 e pescoço de 50. Fica meio estranho. Como se uma orquestra executasse a mesma música, mas em tempos e tons diferentes.
Sobrou alguma coisa então? Depende. Da minha experiência, pouco e aproveita. Talvez tenha aprendido a escrever. Contudo, mais de cinquenta anos não me demoveram da mania de descobrir a novidade das coisas. Pessoas experientes perdem esta visão, acham que sabem tudo, que viram tudo. Mentira! Nada se repete. Só a gente é a gente mesmo, o tempo todo. O resto é mudança. É todo um mundo a ser gerado através de nossas primeiras impressões. A primeira impressão é tudo. Dizem que você nunca tem uma segunda chance de causar uma primeira impressão. Intuição pura. Uma imensidão caótica de dados que chegam aos sentidos sem passar por nenhum processo, nenhum método, nenhum preparo prévio. Não é um olhar experiente. É espontâneo, grátis, absurdo. É maravilhosamente chocante como foi olhar, pela primeira vez, para uma galinha. Que bicho mais feio! Provar o gosto da terra quando chovia. Ver a parte transparente do ovo ficar branca quando estava sendo frita. Minha avó me ensinando a cozinhar, e eu ali, encantada com o poder do fogo que tornava a clara opaca. Gostava de identificar o cheiro das coisas: da terra molhada, das bonecas novas, dos livros franceses que até hoje lembram melhoral infantil. E nada era igual. Mudava. Alguma coisa sempre era inovadora, mesmo naquelas que eu já conhecia, ou pensava conhecer. Todas essas grandes verdades eu descobri sozinha. Ninguém poderia me ensinar coisas assim. Só porque se é velho não significa que se olhe apenas para trás, e que se faça do passado um memorial de saudade. Eu nunca lhe contei, mas aquele CD que você coloca para tocar em viagens é tão chato! Você não tem saudade daquele tempo. Você tem saudade é de você no tempo. Como se não fôssemos capazes de emoções tão boas quanto aquelas, cujo grande segredo era a novidade. Bem feito! Quem manda olhar para o mundo procurando por coisas conhecidas, repetidas, padronizadas? Quem procura acha. Você só vai encontrar em toda parte a confirmação das suas verdades e, não demora muito, vai começar a vir com aquela do no meu tempo era assim ou assado. Como se não houvesse mais novidade neste mundo! Por que não vemos? Porque nos achamos o máximo, porque teimamos em repetir que somos pessoas experientes, quando o tempo nos torna simplesmente velhos.
 “Você não tem saudade daquele tempo. Você tem saudade é de você no tempo. Como se não fôssemos capazes de emoções tão boas quanto aquelas, cujo grande segredo era a novidade.”
 Ah! Pense naqueles encontros das décadas de formados, das décadas de casado, das décadas disso e daquilo.— Como você está bem! Qual é o segredo? É amor? — Não, querida. É Botox mesmo. — Tem horas que é impossível segurar certa dose maldade. O tal lado maroto da gente. Se não há nenhuma vantagem nisso, vamos tratar de inventar alguma. Não vamos segurar a velhice. Não demora ela vai tomar conta até mesmo daquelas partes nossas que estão mais preservadas.
Eu fracassei em muita coisa. A principal foi jamais ter conseguido me tornar uma pessoa focada e objetiva. Minha completa falta de assertividade me causa até hoje não poucos problemas. Atualmente acho que isso me preservou — não da velhice — mas da segurança tão peculiar às pessoas que sempre souberam definir quem são, de onde vêm e para onde vão. Devo ter passado batido pela tal esfinge que interroga. Ia ter de inventar algo, improvisar, como estou agora improvisando essa coisa chamada velhice. Quero uma só minha, sob medida, única. Nada de cultivar a tal horta das nossas realizações passadas. Eu também plantei batatas por aí. Hoje semeio palavras. Algumas brotam, florescem até, mas isso pouco depende de mim. Vem dos outros, que me leem e que por aí me sabem.
Não vou acumular experiências nem pré-formatar o mundo. É excesso de bagagem. Vou gastar tudo o que tenho até o fim, despender todas as palavras que tiver. Só vive de verdade quem é perdulário com suas emoções, quem não foge aos desgastes. Viver dói muito às vezes, e há feridas que não curam. A cereja do bolojá foi, e o que temos é apenas a rapa do tacho. E até a sua prima da farmácia e a minha vendedora da loja de departamentos sabem disso melhor que a gente.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini
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