27 de junho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

A METÁFORA
domingo, 24 de junho de 2012
ERA UMA VEZ Maria, que vivia ensimesmada nos livros que lia. Os livros de Maria tinham capas duras como corações de pedra. Mas havia as traças. E elas acabaram destruindo, ao longo do tempo, vagarosamente, as capas duras dos livros que Maria lia. Os buracos foram aparecendo um a um. O ar foi entrando. Também umidade, poeira, farelos de pão, substâncias de toda sorte. Enfim, tudo o que se enfia por entre páginas de livros, inclusive ideias e sustos.
 “Parece que isso pode ser, afinal, o que a palavra viver significa de verdade, quando a gente brinca com ela.”

Maria, assim, acabou por sair de dentro dos livros que lia. Foi quando percebeu que o mundo era mesmo todo feito de livros,exatamente como ela pensava que fosse. Havia também todo o resto das coisas que faziam parte desse mundo de Maria, mas essas não importavam tanto, parece. Os livros, sim, importavam. A diferença entre eles, contudo, ficava no fato de que os livros que formavam o mundo eram de dois tipos: uns com traças, outros sem elas. Uns com buracos, outros sem nenhum. Sendo que todos os livros, indiferentemente, acabariam devorados pelas traças algum dia.

A morte devora a vida dos homens, e traças devoram as letras dos livros. Todos sabem que ninguém escapa. Nem os homens da morte, nem os livros das traças. Contudo, entre o existir e o extinguir, há um tempo a preencher, e inutilmente a vida da gente vai se inventando verdades cada vez mais absurdas, como costumam ser todas as verdades verdadeiramente inventadas.

Mas acontece que nesta história inventada — como é o caso de todas as coisas não acontecidas — havia um João. Mesmo de longe, era ele também afetado desse mesmo malefício executado pelo serviço diligente das traças. E esse João, que se julgava um sábio, já sabia que o mundo era feito de livros. E de outras coisas que ele, contudo, achava que valiam a pena.

Um dia, por causa de um livro, João encontrou Maria, e ambos começaram a conversar. Falavam bons dias, formalmente. Depois, dos malefícios recíprocos, dos tempos de cativeiro, dos encantamentos e das traças. Conversavam em silêncio e ausentes, pois o falar de ambos se dava por notas apenas. Escreviam tudo nas margens dos livros que tinham, por cima e por baixo dos textos que outros já haviam escrito. Os livros do mundo, todos eles, são cheios de letras e de palavras. E aos personagens letrados desta história não faltavam palavras, aí incluídos um monte de verbos, substantivos, adjetivos e muitos advérbios pomposos, adequadamente lubrificados, bem como aqueles com os quais se escrevem provérbios, versículos, anedotas, dissertações e teses.

Conversavam muito, embora tristemente restritos ao pequeno espaço das margens. Ainda assim, pareciam satisfeitos com isso. Era o que tinham. Com o tempo, aprenderam a ser uma presença, mas no princípio não sabiam disso. Não assim, logo de cara. Antes, era apenas por notas breves que conversavam. Ausentes, sim, mas anotando a vida um do outro, e amontoando milhares de letras de diversas fontes, e muitos pontos e vírgulas e exclamações e interrogações, coisa de umas três mil notas com milhares de palavras e mais letrinhas avulsas, muitas, tantas destas que dariam para encher pratos e mais pratos de sopa. Ah! — e também travessões — que ela, a Maria dessa história, tinha gosto por eles, os tais travessões. Com o tempo, as traças de um e de outro se deram a conhecer e foram se tornando íntimas. Eles também. De uma intimidade esotérica e abstrata, todavia.

“E assim, como a vida tem encantos por toda parte, andam sem poder seguir o destino, que ninguém mais sabe nem pode saber que futuro esteja reservado a cada um.”

Pontuais, breves, corriqueiros, eram eles mesmos apenas por delicadeza e por curiosidade. Iam inventando uma vida vivida em palavras, alimentada de letras, uma vida feita de textos que contavam só as verdades mais letradas de cada um. Certo é que havia outros textos, sérios e concretos, com capítulos, índices, introduções, prólogos compridos, sem lugar para figuras, sem lugarpara folhas dobradas, sem lugar para desenhos e riscos nas margens, desses que as crianças fazem com lápis de cor, e que eu faço até hoje nos meus livros. Eles apenas anotavam a vida um do outro, pontuavam-se, delirando. Talvez no verão. Quem sabe? E o verão ia e o verão vinha, e eles continuavam com o texto das vidas acontecendo à revelia de cada um, mas sempre com as notas, exatamente como as notas são, tendo apenas a função de explicitar algumas coisas e de camuflar outras.

E brincavam os dois, muito. Ainda que fossem apenas gente de verdade. Tinham vidas, órgãos, certidões, títulos, compromissos, mãos, dedos, braços, pernas, tronco, cabeça, orelhas, olhos, óculos e tudo! Mas com essas partes aí eles não brincavam, não. Nem com aquelas outras. Eles brincavam apenas com as palavras, porque as palavras existem para que com elas a gente invente todas as coisas que jamais aconteceram, mas que, nem por isso, deixam de ser a mais pura verdade que o coração pode inventar. Eram gente séria; ou fingiam ser. Mas também brincavam de Princesa e de Urso, com Maria virando uma princesa de faz-de-conta e João virando um urso: curioso, brincalhão, mas certeiro na patada. Brincavam de ser aquilo que eles seriam, se não fossem o que sempre foram, e se não fosse o tempo, as estações, as desculpas, o destino, a distância, a imensidão, as contingências, o correio. Se não fossem os créditos somados e os descréditos subtraídos às respectivas vidas, se não fossem as chuvas em São Paulo, o Lula, o terrorismo, o Guaíba, a Rua da Praia, a 25 de Março e a 7 de Setembro, as traças, os livros, os ácaros, eles e elas, os outros, os daqui, os dali e os de lá, todos formando uma imensa Cia. Se não fosse tudo isso, então, como seria? Então escreviam, escreviam, escreviam... Brincando com as notas, é claro. Brincando com as bandeirinhas, com o mapa do Brasil, com Nélson Rodrigues, com a diabete, com o enfisema, com a mesa da cozinha, com a história, o Radecki, o Lombroso, o Gabriel, os exames médicos, os prognósticos esperançosos que se seguiam aos diagnósticos sombrios.

E antes que algum desavisado me pergunte exatamente de que eles brincavam, eu vou logo dizendo que passavam o tempo brincando de significados. Adultos, quando brincam, só brincam disso. É mais politicamente correto e menos arriscado que o antigo fazer de conta infantil. João e Maria eram complexos, sinistros como todos os adultos. Brincavam apenas assim. A importância e a razão maior de brincar de significados é que as palavras não podem ficar presas para sempre ao que os dicionários dizem delas. É preciso libertá-las da rotina que as escraviza e que as condena a valeram sempre pelo que são.

“O que mais preocupa dentre as palavras perdidas desta história é que a palavra Maktub, que aparece em outro conto maluco desses, também foi roída e esburacada.”

Tão triste ser apenas aquilo que se é, e mais nada.  Bem como eles eram, esse João e essa Maria. Sempre vistos de acordo com o seu respectivo funcionamento. Como as palavras que permanecem submissas aos dicionários. Como elas, eles também tinham seus papéis, funções, fardos e enfartos. Daí o empenho de brincarem tão a sério com palavras, fazendo com que significassem sempre muito mais do que queriam dizer. Nem mesmo um não sempre é não. Ele às vezes pode ser, sim. Pode também não ser, sim, se tropeçar nesta vírgula aí. A engenharia da pontuação, como todos sabem, é inspirada pela cabala, e não há verdade que algum dia não tenha sido mentira.

E assim, as coisas se iam descrevendo, e o mundo ia tomando a forma que as palavras lhe davam ao bel prazer das notas. As notinhas. Sempre pontuando a vida de cada um. A vida que passava e que passa ainda, inexorável, pelo metrô e pelo Guaíba e, sobretudo, pela voracidade tenaz das traças. E eles iam vivendo. E a vida passando, arrastando com ela tanta coisa que eles sempresouberam perder com elegância, ora com, ora sem valentia. Vida habitada, lotada de coisas, de outros e outras, e ainda livros, contas, desesperos, alegrias, orgulhos, expectativas, objetivos, canseiras, tristezas, prazos, processos, compromissos, deveres, honras, cozinhas, salas, latrinas, remédios, decepções, esperanças. Hospícios? Tudo no lugar. Tudo parte dos livros, dos scripts, das histórias bem contadas, sempre tão mal contadas. Tudo?

Tudo, sim. E, no fundo, um tudo tão cheio de nada, um fundo tão raso de profundezas, que só as malditas notinhas de rodapé mesmo para pôr um pouco de fantasia, de magia, de brincadeira, de sentido àquela sucessão de acontecimentos lógicos, previsíveis e prosaicos, cheios de aparente seriedade, bem do tipo que é para valer, porque todos sabem que a lógica do absurdo é implacável, é substancial como um hipopótamo. De bom mesmo, pelo menos havia as notinhas simples, não obrigatórias, limitadamente escritas, com hora marcada, dentro das regras, como tudo o que é perigoso, arriscado, imoral ou mesmo rigorosamente desnecessário. Bem assim como a presença de cada um deles nas páginas dos livros do outro. Inútil, sim. Desnecessária e até incômoda presença, mas nunca, jamais, uma presença redundante, e isso desde aquele tempo. 

“As traças comeram quase tudo o que estava escrito, e que era a parte séria das vidas de cada um.”

Aí aconteceu a tragédia da qual esta história vai tratar, pois histórias como esta devem ter exageros de tragédias. Se não fosse assim, os finais felizes — se é que esta história terá um — estariam todos condenados à insipiência, à sensaboria, a significar coisas que só essas palavras retumbantes como música marcial podem fazer significar.

A tal tragédia consistiu numa misteriosa proliferação das traças que teve lugar um dia. Como se uma praga bíblica, rogada do alto da montanha, houvesse multiplicado os bichos que, excitados,devoravam tudo: páginas e capas, a cola, as letras e até as fitas e os santinhos guardados por dentro das páginas dos livros. E então os livros, dentre estes justamente aqueles onde estavam escritos os destinos da Maria e do João desta história, acabaram todos furiosamente atacados.

“Tudo por causa das traças. Tudo por causa do papel em branco que restou e que devia ser todo preenchido, não mais por textos, mas pelas notas, elas mesmas, pelas delirantes notas que pontuavam as solidões.  Até que as notas cessaram.”

Aí, sem livros inteiros nem destinos traçados, as notas acabaram tomando conta dos textos. As traças comeram quase tudo o que estava escrito, e que era a parte séria das vidas de cada um. Destruíram a lombada dos livros onde o destino deles estava traçado, e misturaram as páginas, perfurando o número de cada uma delas. Então, as histórias das vidas de cada um — que eram para estar separadas em prateleiras diferentes — cada uma em um livro, acabaram com as páginas todas confundidas e misturadas, sem que se pudesse saber o que vinha antes e o que vinha depois, sem contar os durantes que se tornaram perpétuos.

Pior ainda foi que se perderam os significados reais de algumas palavras que conseguiram escapar à ditadura dos dicionários. Imaginem só, se algum dia neste mundo em que vivemos os eu te amo banais começassem a ser para valer! Quanta confusão!  E veio o caos assim. Tudo por causa delas, as traças. Vai ver, cruzamentos pouco recomendados a originar outras traças de maior agressividade e gula. Traças transgênicas que devoraram os livros deles onde estavam escritas  as regras do mundo.

Culpa das traças, sim. Culpa delas, que iam e vinham de lá pra cá. Como todos sabem, as traças, ainda que entupidas de letras, nunca souberam nada dos números e, não sabendo contar, acabaram por misturar tudo. Foi assim que o Urso, que não era Urso, acabou virando Urso de verdade inventada; a Princesa, que era de faz-de-conta, acabou Princesa de verdade inventada também. E as traças comeram até o final da história.

As notas acabaram por substituir os textos da vida de João e de Maria. Diante do inexorável, não houve outro jeito senão passarem a levar a sério o fato de que, dali por diante, seriam Urso e Princesa, não sobrando mais ninguém para tirar um e outro do surto em que se meteram. Tudo por causa das traças. Tudo por causa do papel em branco que restou e que devia ser todo preenchido, não mais por textos, mas pelas notas, elas mesmas, pelas delirantes notas que pontuavam as solidões.  Até que as notas cessaram. A Princesa quis ver de que cor era o Urso, e o Urso quis conferir se ela calçava mesmo 34.

E como os livros se perderam e as notas escassearam, João e Maria acreditam agora que são Urso e Princesa e andam pelo mundo a se desencontrar, até hoje.

O que mais preocupa dentre as palavras perdidas desta história é que a palavra Maktub, que aparece em outro conto maluco desses, também foi roída e esburacada. E agora não existe mais nada escrito, e eles terão de escrever, cada um do seu jeito, as próprias histórias. Livros não há mais, nem scripts, nem definições. Os dicionários, apavorados que pudesse a brincadeira contagiar seus verbetes, fecharam-se em copas e muitos se recusam hoje a expor suas páginas ao risco das patadas do Urso ou dos delírios da Princesa, que come romãs e toma luar em vez de sol.

“Pior ainda foi que se perderam os significados reais de algumas palavras que conseguiram escapar à ditadura dos dicionários.”

E assim, como a vida tem encantos por toda parte, andam sem poder seguir o destino, que ninguém mais sabe nem pode saber que futuro esteja reservado a cada um. Sabe-se apenas que eles permanecem, ao menos por enquanto, ainda reféns do cativeiro que os mantém cativos e cativados. É que, como as traças comeram o caminho de volta, comeram o final da história, comeram os números das páginas, comeram os registros, as certidões, os documentos, as escrituras, os títulos de propriedade e os bacharelatos, só restam folhas soltas do que um dia foi o Livro da Vida de cada um. E agora eles podem fazer o que quiserem das páginas em branco que profusamente o Word edita e cursor percorre deixando, por toda parte atrás de si, letrinhas diversas que formam palavras insensatas que só os loucos e os apaixonados conseguem entender, coisa que Olavo Bilac já sabia, quando falou de estrelas.

Parece que isso pode ser, afinal, o que a palavra viver significa de verdade, quando a gente brinca com ela. Viver é fazer sentido para a gente mesmo, ainda que isso implique num texto sem clareza, sem qualidade, sem nitidez, arbitrário e tão certeiro em seu hermetismo que só pode ser decifrado por quem ama as palavras pelo que são, e não pelo que os dicionários dizem delas.

Como a gente, se pudesse valer sempre apenas pela emoção que desperta e que sente, sem rótulos, certificados nem propósitos. Daí a importância das traças. Às vezes é preciso saber brincar com tudo. Seriamente.




Autor: Maristela Bleggi Tomasini

21 de junho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL


IMPROVISANDO A VELHICE
terça-feira, 19 de junho de 2012
A dor nas costas, incômoda e insistente, leva você à farmácia. Sua prima, que trabalha lá, vem atendê-lo. Você conversa, explica a dor, pede o remédio. Comenta que isso é um sinal de que está ficando velho. Ela, que é jovem, sorri e lhe diz, muito simplesmente:— Como ficando? Você já é velho, ora! Não é só com você. Comigo também acontece. Parece não ser com a gente, mas é, assim como a dor nas costas, o cansaço, as escadas, a bolsa que pesa cada vez mais.


A dor nas costas, incômoda e insistente, leva você à farmácia. Sua prima, que trabalha lá, vem atendê-lo. Você conversa, explica a dor, pede o remédio. Comenta que isso é um sinal de que está ficando velho. Ela, que é jovem, sorri e lhe diz, muito simplesmente:— Comoficando? Você já é velho, ora! Não é só com você. Comigo também acontece. Parece não ser com a gente, mas é, assim como a dor nas costas, o cansaço, as escadas, a bolsa que pesa cada vez mais. É o espelho que insiste em mostrar que o tal creme caríssimo não adiantou nada.
 “Não vou acumular experiências nem pré-formatar o mundo. É excesso de bagagem. Vou gastar tudo o que tenho até o fim, despender todas as palavras que tiver.”
É o espelho que insiste em mostrar que o tal creme caríssimo não adiantou nada. Quando não é nosso olhar, é o olhar dos outros. É ainda o acostumar-se a ser visto simplesmente como velho. —Como assim, velho? Eu? — Sim, é com a gente.Não adianta olhar para o lado. Não há mais ninguém ali com quem se possa compartilhar o efeito dessas observações repletas de desconcertante sinceridade. Lembro de mim, encantada com uma peça de roupa à venda numa loja de departamentos. A vendedora me olhou do alto de sua juventude e perguntou, parecendo intrigada:
 — É para a senhora?
— Sem dúvida, seria. Mas, pensando bem, acho que...
Estou certa de que temos coisa pior para lembrar. Não é melhor esquecer? Não, não é. Devemos nos lembrar de nós mesmos quando éramos jovens. Quando pensávamos que juventude era ter menos de vinte. Sim, senhor! Adulto é nos vinte. Trinta é coroa. Quarenta? Meia idade. Que dizer dos 50? Cinquenta é meio século ora!
Crueldade escrever coisas assim? Não. Somos velozmente desapropriados pelo tempo de uma série de coisas. É bem difícil conformar-se a essas perdas. Você vai dizer que temos sabedoria, experiência, histórias para contar. Fala sério! O Google tem muito mais respostas. É mais sábio que qualquer um de nós. Experiência? Ah! Sim. Costumamos fazer de conta que essa tal experiência é tudo, mas creio que nem mesmo de sexo a gente entende bem atualmente. É verdade que sabemos lidar com diversas coisas, especialmente quando se trata de pôr sucatas para funcionar. Aliás, é lindo aquele rádio a válvulas que você deixa perto do porta-retratos onde está a minha fotografia. E você entende de carburadores e radiadores também.  Sabemos mexer em computador. Você se lembra do 486? Do Pentiun 100?
Somos romanticamente redundantes quando, empertigados, admitimos as perdas e procuramos compensá-las com a experiência. Bobagem. A lição mais difícil a gente ainda precisa aprender. A pior de todas: aprender a ser velho. Só isso. Vantagem? Ah! De vez em quando acho uma: eu digo que passei dos cinquenta e alguém me mente, dizendo que não parece. Deve ser a safra da Madona e da Barbie.
 “Eu fracassei em muita coisa. A principal foi jamais ter conseguido me tornar uma pessoa focada e objetiva

Trágico é que tenho uma memória que muita gente da minha idade faz questão de não ter. Eu me lembro perfeitamente do que pensava aos vinte e antes dos vinte sobre gente da minha idade e da sua. Tudo bem, quando eles se deixavam ser apenas velhos e ficavam na deles, aproveitando-se da hierarquia natural que resultava da idade. Tinham cabelos brancos, usavam roupas de velhos, pensavam como velhos e, com isso, adquiriam certa autoridade. Eram respeitados e não queriam nada além desse respeito. O problema começava quando desejavam ser um de nós. Não eram! Se chegaram assim à velhice, nunca entenderam bem sequer a própria juventude.


Como era chata aquela mulher que se vestia com a roupa da filha, meu deus! E o sujeito que empregava as nossas gírias, sem ter a menor noção de que ficava ridículo! Pensava estar se comunicando. Tinha, quando muito, nossa indulgência. Você gosta disso? Eu ainda me lembro muito bem do que comentávamos a respeito do Tio Sukita. Ah! Era justo, justíssimo que nós jovens praticássemos, sim, esse mesmo bullying quea sua prima fez com você, e que a vendedora da loja fez comigo. No nosso tempo, não era assim nenhum pecado achar que velho era feio, chato, metido e inconveniente. Não havia o tal estatuto, e ainda não haviam inventado a vitimização.
Será que eu fui uma jovem cruel? Seguramente não menos cruel que a maioria dos que, como eu, nasceu há mais de cinquenta anos atrás. A diferença é que me recuso a fazer de conta que perdas assim podem ser compensadas. Não podem. Salvo se quisermos cultivar a ilusão de que a vida começa aos 40 e que existe a melhor idade. Acho que se eu ouvisse uma frase destas na década de 70 ia morrer de rir. E daí que nós já tivemos vinte? Nossa experiência dos vinte se deu em outro tempo, em outra época, quando vigoravam outros valores que não podem ser simplesmente presentificados sem uma enorme deformação.
Fácil fingir que experiência conta, que velhice tem belezas próprias. Imagina! Ficamos feios, ora! A pele muda de cor, o cabelo fica branco e engrossa, dentes caem ou ficam escuros, a visão diminui, os ouvidos apitam, as carnes amolecem e os ossos se tornam porosos, a gente engorda em algumas partes enquanto outras murcham e viram pelanca. Ah! Lugares que antes era peludos vão ficando carecas, enquanto surgem pelos duros e brancos onde a gente nunca os teve antes. No queixo, por exemplo. As regras escasseiam e depois cessam. A taxa de hormônios despenca. A minha bexiga cai, é verdade; mas a sua próstata aumenta. Não falta muito para que daí resulte aquele cheiro de xixi. Cada inverno se torna mais frio. A conservação ou manutenção do corpo dá uma trabalheira danada. E custa caro. Conseguimos fazer com que algumas partes de nós se conservem com 30, mas isso não acontece com todas as partes. É possível substituir alguma coisa, mas não tudo. E não sei até que ponto é interessante ter peitos de 20, bunda de 40, cara de 30 e pescoço de 50. Fica meio estranho. Como se uma orquestra executasse a mesma música, mas em tempos e tons diferentes.
Sobrou alguma coisa então? Depende. Da minha experiência, pouco e aproveita. Talvez tenha aprendido a escrever. Contudo, mais de cinquenta anos não me demoveram da mania de descobrir a novidade das coisas. Pessoas experientes perdem esta visão, acham que sabem tudo, que viram tudo. Mentira! Nada se repete. Só a gente é a gente mesmo, o tempo todo. O resto é mudança. É todo um mundo a ser gerado através de nossas primeiras impressões. A primeira impressão é tudo. Dizem que você nunca tem uma segunda chance de causar uma primeira impressão. Intuição pura. Uma imensidão caótica de dados que chegam aos sentidos sem passar por nenhum processo, nenhum método, nenhum preparo prévio. Não é um olhar experiente. É espontâneo, grátis, absurdo. É maravilhosamente chocante como foi olhar, pela primeira vez, para uma galinha. Que bicho mais feio! Provar o gosto da terra quando chovia. Ver a parte transparente do ovo ficar branca quando estava sendo frita. Minha avó me ensinando a cozinhar, e eu ali, encantada com o poder do fogo que tornava a clara opaca. Gostava de identificar o cheiro das coisas: da terra molhada, das bonecas novas, dos livros franceses que até hoje lembram melhoral infantil. E nada era igual. Mudava. Alguma coisa sempre era inovadora, mesmo naquelas que eu já conhecia, ou pensava conhecer. Todas essas grandes verdades eu descobri sozinha. Ninguém poderia me ensinar coisas assim. Só porque se é velho não significa que se olhe apenas para trás, e que se faça do passado um memorial de saudade. Eu nunca lhe contei, mas aquele CD que você coloca para tocar em viagens é tão chato! Você não tem saudade daquele tempo. Você tem saudade é de você no tempo. Como se não fôssemos capazes de emoções tão boas quanto aquelas, cujo grande segredo era a novidade. Bem feito! Quem manda olhar para o mundo procurando por coisas conhecidas, repetidas, padronizadas? Quem procura acha. Você só vai encontrar em toda parte a confirmação das suas verdades e, não demora muito, vai começar a vir com aquela do no meu tempo era assim ou assado. Como se não houvesse mais novidade neste mundo! Por que não vemos? Porque nos achamos o máximo, porque teimamos em repetir que somos pessoas experientes, quando o tempo nos torna simplesmente velhos.
 “Você não tem saudade daquele tempo. Você tem saudade é de você no tempo. Como se não fôssemos capazes de emoções tão boas quanto aquelas, cujo grande segredo era a novidade.”
 Ah! Pense naqueles encontros das décadas de formados, das décadas de casado, das décadas disso e daquilo.— Como você está bem! Qual é o segredo? É amor? — Não, querida. É Botox mesmo. — Tem horas que é impossível segurar certa dose maldade. O tal lado maroto da gente. Se não há nenhuma vantagem nisso, vamos tratar de inventar alguma. Não vamos segurar a velhice. Não demora ela vai tomar conta até mesmo daquelas partes nossas que estão mais preservadas.
Eu fracassei em muita coisa. A principal foi jamais ter conseguido me tornar uma pessoa focada e objetiva. Minha completa falta de assertividade me causa até hoje não poucos problemas. Atualmente acho que isso me preservou — não da velhice — mas da segurança tão peculiar às pessoas que sempre souberam definir quem são, de onde vêm e para onde vão. Devo ter passado batido pela tal esfinge que interroga. Ia ter de inventar algo, improvisar, como estou agora improvisando essa coisa chamada velhice. Quero uma só minha, sob medida, única. Nada de cultivar a tal horta das nossas realizações passadas. Eu também plantei batatas por aí. Hoje semeio palavras. Algumas brotam, florescem até, mas isso pouco depende de mim. Vem dos outros, que me leem e que por aí me sabem.
Não vou acumular experiências nem pré-formatar o mundo. É excesso de bagagem. Vou gastar tudo o que tenho até o fim, despender todas as palavras que tiver. Só vive de verdade quem é perdulário com suas emoções, quem não foge aos desgastes. Viver dói muito às vezes, e há feridas que não curam. A cereja do bolojá foi, e o que temos é apenas a rapa do tacho. E até a sua prima da farmácia e a minha vendedora da loja de departamentos sabem disso melhor que a gente.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini
Matéria vista 167 vezes

7 de junho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL


A SONSA
terça-feira, 12 de junho de 2012
Vocês sabem identificar uma sonsa? Têm certeza? Não é tão simples como definir aquela que nem fede, nem cheira. Isso é só o começo. Vocês só se darão conta da existência dela depois de a coisa estar feita. Mas aí é tarde demais para desgrudá-la. Vocês estão achando engraçado, é? Ora, quero mais é que os meus leitores riam comigo. É divertido observar o modo de agir desse tipo de mulher, que de medíocre não tem nada, ainda que, no caso da sonsa que atualmente anda rondando o meu principado...


Hoje eu quero compartilhar com vocês uma dessas lições que a vida ensina, quando ela é bem malvada com a gente. Sabe aquelas situações de onde ninguém sai mocho? Pois é. Bem, na verdade, isso aqui é um desabafo. Posso usar um pouquinho o ombro dos meus leitores? É puro despeito meu, eu sei. Vaidade ferida. Mas que ninguém diga que eu não tenho bom humor!
Simular superioridade e classe na vida real é de matar. E quando a gente lida com mulher sonsa então! Ora, a vontade que dá é de armar barraco, mas isso sai caro e, no meu caso, eu acabaria levando a pior. Um dia ainda consigo imitar a sonsa em matéria de dissimulação. Juro que farei tudo para aprender a engolir sapos sem reclamar. Nos últimos tempos, aliás, tenho me superado nisso, mas com um esforço sobre-humano e muitas crises de enxaqueca.
Na literatura, entretanto, somos todos livres, daí eu me permitir ao menos escrever, uma vez que ela, a sonsa, tem todo o direito de existir, de ser quem é, e de fazer o que faz.  Não que ela se garanta. Não precisa! Tem quem faça isso por ela. Eu já preciso me esforçar, ao menos para ganhar a simpatia de algum leitor ou leitora que já tenha sofrido a angústia de ver-se às voltas com uma sonsa.Está fechando o cerco com muita esperteza. Mais dia, menos dia, vai aprontar, sem deixar de mostrar-se recatada e cheia de dedos. Toda sonsa é escrupulosa.
Seja como for, acho importante colocar para vocês como age esse estranho tipo de mulher que a gente, à primeira vista, adjetiva de sonsa.  De cara, ela simplesmente não fede nem cheira. Não se faz notar. Pouco se percebe que ela existe. Ainda assim, mulher sonsa é um perigo. Acreditem.
A gente se cuida muito das sirigaitas, das lambisgoias, das cretinas, das piranhas, das cachorras, das galinhas, das ex, das mulheres fatais, das gostosonas e das gostosinhas, mas a gente se esquece da sonsa, justamente da vaca de presépio! E quando se percebe quem na verdade ela é... Tarde demais. Já ganhou terreno e simplesmente não se pode desencaixá-la das brechas nas quais criou raízes, bem ao lado dele. Coisa de mulher. Ah! Tudo coisa de mulher. Ciúme? Claro que sim. Mas sonsa está lá!
Vocês sabem identificar uma sonsa? Têm certeza? Não é tão simples como definir aquela que nem fede, nem cheira. Isso é só o começo. Vocês só se darão conta da existência dela depois de a coisa estar feita. Mas aí é tarde demais para desgrudá-la. Vocês estão achando engraçado, é? Ora, quero mais é que os meus leitores riam comigo. É divertido observar o modo de agir desse tipo de mulher, que de medíocre não tem nada, ainda que, no caso da sonsa que atualmente anda rondando o meu principado, confessadamente, eu deva admitir que menosprezei seu poder de fogo. Bem feito para mim! É que a sonsa tem uma sedução bastante sutil, é verdade, mas muito mais eficiente do que se imagina.
Quando a gente percebe o perigo, ela já alistou a seu favor quem queria. Pior: nós é que nos tornamos alvo de crítica, por termos ousado nos colocar contra a coitada da fulana, da qual teimamos em não reconhecer os méritos mais louváveis. Vocês sabem quais são os méritos da sonsa? Nada de bunda ou rebolado. São qualidades inefáveis, que vão desde uma penetrante inteligência até um espírito de sacrifício comparável ao de Madre Teresa deCalcutá. E ela é simpática, qualidade que a torna até que bem bonitinha, olhando assim. Pronto. Fiat merda.Ela não precisou de bunda, nem de peitos, nem de rebolado. Passamos por despeitadas. É quando a gente percebe que se ferrou. Não demora muito, vamos de Cinderela a gata borralheira, com a sonsa ainda nos ajudando a limpar o borralho. Ela toma nossa defesa, alega que não fizemos por mal, e ainda nos elogia com imensa prodigalidade.
 A sonsa é um perigo, acreditem. Como é do tipo que ninguém nota, precisa apelar. Mas não apela para o arsenal de costume, esse que qualquer mulher vulgarmente sabe empregar e não raro muito bem.
Cínica? Ela? Que nada! Cínica sou eu. Ela é simplesmente superior. Toda sonsa é dotada de uma superioridade de espírito sem precedentes. Ela nunca se rebaixa às instâncias do desaforo. Jamais armaria um barraco! Ela teria mesmo a pachorra de sorrir, compreensiva, da nossa indignação. Vai articular quem mais nos interessa para tomar a defesa dela, e ficamos simplesmente amargando o ridículo, enquanto a sonsa faz o diagnóstico de nossa falta de equilíbrio e ainda pergunta no que pode ajudar.
Ah! Vocês sabem do que estou falando? Devem saber. Se leram tudo isso até aqui, é porque estão, ao menos vocês, ― quem me dera! ― solidários com a minha bem humorada indignação. Felizmente, vocês não conhecem a sonsa da qual eu estou falando! Caso a conhecessem, não sei não, se também não iam fazer parte da torcida dela. Nossa! Daria para lotar um estádio de futebol só com gente que lhe deve favores. Fosse santa, teria uma capelinha lotada de ex-votos. Ora, direis! Ela é simplesmente demais! Uma mulher perfeita, admirável, inteligente, sagaz. Dá para presumir o resto? Sei que sim.
A sonsa é um perigo, acreditem. Como é do tipo que ninguém nota, precisa apelar. Mas não apela para o arsenal de costume, esse que qualquer mulher vulgarmente sabe empregar e não raro muito bem. Não. Nada disso. Não abaixa a calcinha nem inclina o decote para se fazer ver. Também não rebola nem quando tem bunda. É esperta demais para cair nessa. Ela não deseja ser notada por alguma coisa que chame a atenção, salvo as boas ações e o espírito de sacrifício. Aparentemente insípida e inexpressiva, ela é queridinha, e fica sempre à vontade na sombra.  A sonsa é útil. Ah! Vocês não imaginam do que a sonsa é capaz em matéria de utilidade! É prestativa. Está sempre disponível 24 horas por dia. É paciente, sabe ouvir, chega quando a gente mais precisa, entra silenciosa por uma porta e sai quieta pela outra. É do tipo que carrega penicos sem reclamar nem torcer nariz, dá injeção, lava e veste defunto, providencia enterros e exumações, guarda segredos como um túmulo, lustra sapatos, trata de frieiras, trafica informações, ensina simpatias infalíveis, alerta contra tempestades, cuida de criancinhas, de velhos, doentes, puxa reza em novenas, leva o lixo para a rua, é confiável, confidente, penitente, compreensiva, tolerante, religiosa até a ponta das unhas, caridosa, enfim, discreta, e bem depressa sabe como se tornar absolutamente indispensável. Adivinha para quem? Para ele, é claro!
Fosse santa, teria uma capelinha lotada de ex-votos. Ora, direis! Ela é simplesmente demais! Uma mulher perfeita, admirável, inteligente, sagaz.
Manipula quem bem entende e monta um teatro de marionetes, puxando os fios e dirigindo o espetáculo, apenas jogando com interesses e informações. A gente só olha, quando ele cai na jogada da sonsa, exatamente como aquele clássico patinho do ditado. Baba atrás dela! Ela tem torcida, sabem? Nunca perde a calma, a serenidade. Nunca se lamenta. Sonsa também não surta, mas quando a gente surta por causa dela, é capaz de trazer a corda para nos atar, evidentemente, para o nosso bem, para que não nos machuquemos. Como duvidar da retidão de seu caráter e da pureza de suas intenções?
Em pouco tempo, a gente começa a ouvir uma ladainha toda feita de elogios à pessoa da sonsa. Bom, ela já está por perto, já faz parte da vida dele e, por aí, da nossa. Conhece nossas fraquezas, nossos limites, nossas vulnerabilidades e, então, ela começa a jogar. A sonsa, lentamente, cresce e se faz ver. Basta desconfiar que há mortos e feridos, e lá está ela, perfeita, chorando no velório, consolando os aflitos. Cata latas, junta caquinhos, adora restaurar e consertar corações feridos. Faz companhia aos solitários também, com eles trocando aqueles olhares compridos como o dos cães que pretendem dar provas da mais firme solidariedade. Torna-se a amiga consoladora, cúmplice das angústias, ouvidora das queixas, ainda daquelas feitas em silêncio. E como fala bem da gente! Só elogia.
 E elas existem. Tornam-se fortes, porque, infelizmente, há pessoas que têm a incompreensível tendência a se deixarem levar por um tipo de mulher que simplesmente transcende a falsidade.
Essa sonsa! Ela tem uma reputação ilibada, é politicamente correta e, fora eu, duvido que mais alguém cometa a loucura de questionar seus interesses. Só que quer comer pelas beiras, e não tem pressa de chegar até a azeitona da minha empada. Está fechando o cerco com muita esperteza. Mais dia, menos dia, vai aprontar, sem deixar de mostrar-se recatada e cheia de dedos. Toda sonsa é escrupulosa. Sei não. Bem feito para mim! Vou levar até puxão de orelha, e mais uma vez precisar lavar a boca com sabão por ter tido a ousadia, o desplante, a estupidez de ter insinuado que essa sonsa é bem mais sonsa do que parece. Que injustiça! Eis a inocência aviltada pela maldade de um coração insensível! Afinal, quem eu penso que sou para falar mal da pobre moça que só está fazendo o seutrabalho?! Ele acredita nela... Vocês viram aonde a coisa chegou?
Exagerei? Claro que não! Tomara fosse! É que não tenho a tal singularidade das chamadas mulheres superiores. Nem quero! Não tenho nenhum problema em admitir que me sinto muito incomodada com a presença dessa sonsa na minha vida, aliás, na vida dele! É um grande estrago no meu querido ego. Além disso, essa coisa de esconder o lado escuro da gente nunca foi comigo. Pode não ser elegante falar mal de alguém que teoricamente nunca nos fez mal algum, mas existe uma coisa chamada intuição. E quando o meu santo não bate, podem escrever: daí vem bomba.
 Há personalidades que fazem sentir sua presença de uma maneira indefinível, mas com exatidão absoluta. E elas existem. Tornam-se fortes, porque, infelizmente, há pessoas que têm a incompreensível tendência a se deixarem levar por um tipo de mulher que simplesmente transcende a falsidade.  Homens em especial apresentam mais essa fraqueza.  Coitados! A gente não pode esquecer de que eles têm duas cabeças, ora. Passam a vida reféns, ora das vacas sagradas, ora das vacas de presépio. Antes as cobras que, pelo menos, não dissimulam sua natureza maldita. Elas sabem a hora de se recolherem ao interior de suas próprias tocas. Seja como for, eu avisei. Dei nome aos bois. E depois que as minhas previsões se mostrarem muito bem fundamentadas, ninguém diga que eu não avisei. E que não reclamem quando eu retrucar com o meu clássico: eu não disse?

Autor: Maristela Bleggi Tomasini

4 de junho de 2012

Esforço

Eu me esforço bastante para ser assim... como se diz? Acho que ajustada. A-jus-ta-da. Será mesmo? Devo ter educação, boas maneiras, sorrir, falar baixo, fazer de conta que não vejo tudo o que vejo, que não ouço tudo o que escuto, que não sei nada de tudo quanto sempre soube, que não ligo, que não dói, que não sinto e que, enfim, não sou eu nem sei de mim, mas me torno esse papel que decora a parede, onde tem um prego para que ali se pendure um aviso: FECHADO. 

2 de junho de 2012

Envelhecer

Então disseste a ela que estás ficando velho, e ela te respondeu: "Ficando? Mas você já é velho".
Ah, tá estranhando o quê? 
A gente já teve a mesma idade dela. Pára para pensar! Também praticamos esse mesmo bullyng contra os velhos. Tivemos a mesma idade e não éramos diferentes. Basta lembrar que nós também pensávamos assim e sentíamos assim as pessoas que o tempo já havia modificado. A pele muda, cabelo, voz, corpo... A gente fica mais feio, menos atraente ao tato, visão, olfato, aos sentidos enfim. Amolecemos, mudamos de cor, perdemos brilho, dentes, paladar, a pele mancha, enferruja, fica transparente. Engordamos em algumas partes enquanto outras murcham. Não conseguimos mais fazer coisas sem cansar. Não temos mais equilíbrio. Os reflexos funcionam, mas... não são mais confiáveis. Escadas, cadeiras, estantes, a noite, caminhadas, peso a carregar, tudo nos assusta. 
Fomos crianças e jovens tão impiedosos quanto ela. 
Eu achava gente de quarenta muito feia, e já muito velha. Jovem era ter menos de vinte. Trinta já era assustador. Com 50, definitivamente, a semi-secularidade impunha-se.
E ainda acho. 
Contudo, se o tempo do qual dispusemos esses anos todos foi bem aproveitado, certamente adquirimos algumas habilidades que até podem servir para alguma coisa. Pouca, é verdade, mas ainda assim alguma coisa. Eu amontoei tesouros de letras. Nem todas as traças do mundo conseguiriam devorar todas elas. 
E me enxergo também. Esta habilidade eu não perdi, infelizmente.

1 de junho de 2012