31 de julho de 2009

Clarice Lispector


Minha força está na solidão.
Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.

A Aparição


E o busto invisível de Voltaire apareceu para mim, em meio aos meus livros. E tempos depois de ter me arriscado a pintar isso, ainda gosto de olhar pra ele.

Por Obrigação

A gente pensa que vive por gosto, mas vive por obrigação.
Riobaldo
Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas.

14 de julho de 2009

Hamlet, tradução de Machado de Assis

Ser ou não ser, eis a questão. Acaso/ É mais nobre a cerviz curvar aos golpes/ Da ultrajosa fortuna, ou japa lutando/ Extenso mar vencer de acerbos males?/ Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,/ Que as angústias extingue e à carne a herança/ Da nossa dor eternamente acaba,/ Sim, cabe ao homem suspirar por ele./ Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!/ Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,/ Quando o lodo mortal despido houvermos,/ Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre,/ Essa a razão que os lutuosos dias/ Alonga do infortúnio. Quem do tempo/ Sofrer quisera ultrajes e castigos,/ Injúrias da opressão, baldões de orgulho,/ Do mal prezado amor choradas mágoas,/ Das leis a inércia, dos mandões a afronta,/ E o vão desdém que de rasteiras almas/ O paciente mérito recebe,/ Quem, se na ponta da despida lâmina/ Lhe acenara o descanso? Quem ao peso/ De uma vida de enfados e misérias/ Quereria gemer, se não sentira/ Terror de alguma não sabida coisa/ Que aguarda o homem para lá da morte,/ Esse eterno país misterioso/ Donde um viajor sequer há regressado?/ Este só pensamento enleia o homem; / Este nos leva a suportar as dores/ Já sabidas de nós, em vez de abrirmos/ Caminho aos males que o futuro esconde,/ E a todos acovarda a consciência./ Assim da reflexão à luz mortiça/ A viva cor da decisão desmaia;/ E o firme, essencial cometimento,/ Que esta idéia abalou, desvia o curso,/ Perde-se, até de ação perder o nome.
Para quem não sabia desse lado de Machado de Assis, aí está a amostra de um trabalho seu de tradução, valendo lembrar que ele foi um autodidata. Achei este arquivo guardado faz alguns anos, e pensei ser uma boa idéia compartilhá-lo com vocês.

Peixes

Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
Antônio Vieira, Sermão de Santo Antônio aos Peixes, pronunciado em São Luís do Maranhão a 13 de junho de 1654.