4 de outubro de 2024

Querida Mana

Porto Alegre, 26 de setembro de 2024.

Querida Mana,

adorei saber que te lembraste de mim recentemente e que comentaste acerca de nossas tantas e tão nostálgicas lembranças. Não sei se é bem nostalgia, esta palavra tão cult que não vai muito além da saudade. Também não sei se é saudade, porque, afinal, cenários não voltam. O importante foi saber que te lembraste de mim. E saber disso foi como um chamado, para que eu me lembrasse de quem sou. É que às vezes esqueço. Afinal, nada pior do que assumir o peso de um eu inadequado.

Eu te entendo, Mana. Sei que estamos ambas sempre meio desafinadas. Detestamos ser contrariadas e, se as coisas dependessem de nós, o mundo seria muito, mas muito melhor do que é.  Mas, claro! Isso só se seria possível se todo mundo conseguisse ver o que nós vemos e sentir o que nós sentimos. Não nascemos para aceitar, sem reclamar, um mundo feio no qual ninguém mais se importa com aqueles detalhes que fazem toda diferença.

Contudo, sei que tu, assim como eu, se importa. Não é o café, é também a xícara. Não é o presente, é também a embalagem. Para nós, a festa começa na véspera, e os ensaios são a melhor parte da peça. Aquilo que os outros vivem como real, é banal para a gente, que costuma olhar o bordado pelas tramas que aparecem no avesso. Daí eu dizer que somos desafinadas. Inconsequentes, às vezes. Alienadas, frequentemente, como um ponto fora da curva.

É claro que não somos fáceis para ninguém. Todavia, os outros tampouco são fáceis para nós, de sorte que estamos quites. Afinal, a grande maioria comporta-se como zumbis. Desconfio de que já são zumbis. É uma epidemia que promete, de modo que a gente deve tratar de se adaptar. Afinal, não há retorno possível lá fora de nós, onde tudo se torna cada vez mais feio. Sim, Mana. O feio existe. E ele veio para ficar. Coisas e pessoas estúpidas também. É preciso conviver com tudo isso, querendo ou não.

O rebanho nos empurra: ou aceitamos o ritmo, ou corremos o risco do atropelo e consequente pisoteio. A manada existe e, queiramos ou não, ela conduz o mundo e recria tudo por um viés verdadeiramente enviesado, para não dizer torto. Torto, sim, porém sem a elegância de um Picasso, porque torto para adaptar-se à carência de sensibilidade. Contudo, para pessoas privilegiadas como nós, Mana, que sentimos tudo e que vemos tudo nas oitavas mais profundas como também nas mais altas, algumas portas ainda se abrem. Podemos nos alienar disso tudo e viajar um pouco no tempo. Não é o que fazemos?

Vamos tentar? Vem comigo, Mana. Tenho certeza de que tu, assim como eu, ainda se lembra do “Marinha Magazine”, onde se comprava roupas de qualidade a preços justos. Ah! Tinha uma tal “A Botinha da Zona”, uma sapataria popular muito falada no rádio. Nunca estive lá, mas era fácil imaginar o movimento. Lembras de uma Loja chamada “Garota Porto Alegre Bebê”? De lá, o meu vestidinho estilo marinheiro. Não ficava muito longe daqui. Ah! Com certeza, os uniformes de colégio. Lembra? Eram comprados nas “Casas Carvalho”, ali na Otávio Rocha esquina Marechal Floriano. Loja lotada a cada início de ano letivo. Saias azul marinho pregueadas, de tergal. As blusas brancas. Meias americanas sempre brancas. E havia os sapatos colegiais marca Vulcabrás. Tempos idos. Andei de bonde. Lembro dos bancos de madeira, dos trilhos, do ruído que faziam, da cor amarela, dos reclames ― comercial é coisa de agora ― colados acima das janelas. Emulsão Scott, óleo de fígado de bacalhau, Cafiaspirina, Regulador Xavier, a Saúde da Mulher, Pomada Minâncora. Lembra Mana? Sabonete Palmolive desbancado depois pelo sabonete Lux, usado por nove entre dez estrelas de cinema. Nas Seleções do Reader’s, Jane Fonda e Ursula Andrews apareciam usando Lux. Como duvidar? Creme dental era simplesmente pasta de dente. Kolinos ou Colgate. Shampoo Colorama. Depois apareceu o Seda Shampoo, que sobrevive até hoje. O melhor, todavia, era o maravilhoso shampoo cremoso, cor de rosa, Helena Rubistein, que só tinha na Casa Lyra. Não havia muitas escolhas, é verdade, mas o consumo era glamuroso e levado muito a sério: preço e qualidade eram tudo. Eu sei que hoje temos muito mais escolhas, mas me ressinto da falta de estilo, assim como do tempo e da importância dedicados a tudo o que se fazia. Comer galinha, por exemplo. Coisa de domingo. Afinal, era preciso matar o bicho e proceder a toda uma série de operações que antecediam o preparo. Comia-se na sala. Cerimoniosamente. Aos domingos, missa obrigatória. Depois, flexibilizada, porque valia também a missa de sábado, às 18 horas. Muito chique. Vivia-se ao compasso de horas marcadas.

A cidade era também mapeada socialmente. Havia os pontos mais chiques, assim como os tradicionais. A Mesbla, por exemplo, era uma loja enorme. Andares e mais andares de produtos. Vendedores profissionais, que atendiam de gravata e usavam camisas brancas impecáveis. Barba feita. Água de colônia. Unhas limpas. Nas Lojas Americanas funcionava uma lancheria onde eu comia o Sanduíche Universitário, feito com três fatias de pão de forma, com queijo, presunto, tomate, alface tenra, maionese, cortado quatro triângulos que eram colocados com a ponta para cima, no meio, batatas palha. E havia sorvete com uma gelatina bem dura e colorida que dava para morder. Havia a Banca 40 no Mercado Público, onde se tomava o melhor sorvete da cidade e comia-se uma salada de frutas sempre preparada na hora. Tudo fazia muito sentido. Voltando ao Centro, havia a Loja JH Santos, Ibraco, Incosul, Casa Quoates. O Centro era muito seleto. Gente arrumada. Homens que engraxavam e lustravam os sapatos na Praça XV. Meninos engraxates, e também adultos. Todos cuidavam da aparência, porque era importante parecer alinhado. Ninguém ousava ir para o Centro usando roupas do cotidiano. Não havia buffets. Naturalmente, comia-se a la carte em restaurantes onde havia garçons muito educados. Com licença, por favor e muito obrigado não eram regras, mas leis.

Ah, lindas lojas. Havia o Bromberg, onde a gente comprava cristais, pratas, presentes de casamento. Havia a Sloper. A Casa Lyra. A Escosteguy e a Elegância Modas. A sapataria Don Gerson, a Loja Europeia. A joalheria Scarpini. A Casa Mason, com aquele relógio. A Casa Louro, com aquela sacola de papel brilhante na qual aparecia uma rosa vermelha fotografada sobre um tecido pied de poule. Eu ainda seria capaz de reconhecer cada uma dessas lojas e muitas outras, se andasse pela rua dos Andradas. Ainda sou capaz de me lembrar, precisamente, dos cheiros e dos sabores. A vida era regular: na Sexta-Feira Santa só se ouvia música clássica. Ninguém comia carne, embora não fosse exatamente um sacrifício sentar à mesa para saborear o bacalhau.

Porto Alegre era outra, muito diferente. Apesar de ser “a capital do estado”, era muito provinciana, conservadora, pequeno burguesa, chata, muitas vezes mesquinha, outras vezes generosa, mas sempre convicta. É que todos pareciam saber a diferença entre “certo e errado”, ainda que de uma forma obtusa e rasa. Sabes do que mais sinto falta, Mana? Da cortesia. Bem ou mal, por mais modestas que fossem as pessoas, a grosseria era uma raridade. E, quando acontecia, caso acontecesse, uma reprovação geral crescia em silêncio a ponto de constranger quem quer que cometesse um ato tosco ou deselegante. Não! Não era essa “indignação geral” e coletiva que se trombeteia por aí. Nada disso. Era uma reprovação muda, silenciosa, elegante, mas que gelava o sangue nas veias. O meu, por exemplo, caso derrubasse um talher em um restaurante, ou despenteasse o cabelo preso em coque.

Sabe, Mana, eu não sabia que sentia tanta falta disso. Afinal, trata-se apenas do passado. Mas agora, tentando te levar comigo nesse passeio pelo tempo, compreendo que nunca soube me conformar inteiramente às mudanças que despojaram antigas paisagens de tantos ícones. Como conformar-se à rasa estupidez que grassa por aí? Não consigo me conformar ao verniz superficial que pretende se estender a todos, ditando comportamentos que não passam de artifícios e simulações. Afinal, não é necessário ser, basta parecer. No fim, nada encobre o imenso vazio que deve ser preenchido por um consumo voraz que se estende a ideias niveladas cada vez mais baixo na escala daquilo que um dia foi “o Belo”. Penso que este “Belo” já foi varrido pelos ventos do rebanho, para os quais “o Justo” e “o Bom” também foram relativizados, a ponto de estes dois últimos já terem se tornado tão irreconhecíveis quanto o primeiro.

Filosofias à parte, Mana, importante é estarmos ainda por aqui. Somos seres de pouca luz. Acredito que só você seria capaz de compreender isso com precisão. Somos seres de pouca luz, sim, tremulando no escuro, como velas acesas à beira de uma praia em noite de ventania. Resistimos. Não somos espetaculares como os grandes eventos que não podem prescindir do fetiche dos fogos de artifício. Não rugimos com força. Nossa voz só pode ser ouvida no silêncio. Nossa memória jamais será história, e nossas lembranças vão se dispersar como folhas soltas de revistas antigas cujas páginas se perderam. Somos disfuncionais.

De bom, porém, foi saber que lembraste de mim, Mana, e que, não obstante perdidas entre tigres e zumbis, nosso glamour subsiste. Nossas lembranças são mais fortes que toda a realidade banal que invade o mundo.

Fique bem, Mana. Continue afinada por dentro, atenta a tudo sem ligar de verdade para nada. A gente se reinventa cada vez que o mundo investe contra nós e nos desmonta, porque nossa coerência é interna e prescinde dos modelos pré-formatados.

Adorei te rever! Obrigada por me lembrar de quem sou, de quem és e de quem somos enfim.

Com carinho,

Da tua Mana Maristela

1 de outubro de 2024

Inútil espera


O cotidiano não pode ser elaborado. Ele é simples, seja quando tem pressa, seja quando se espreguiça.  Se algo acontece, está além da janela, como a luz, como o vento, como os verdes e os azuis; do lado de dentro, a inútil espera: não vais voltar.

Nosso Café

Sei o quanto sou repetitiva quando se trata de dizer o quanto gosto de café. Sim, pelo paladar, naturalmente. Mas, acima disso, pelo que representa. Café é aconchego, é acolhimento, paz e sossego. É minha casa recendendo a aromas que se cruzam no ar. É pausa para descansar. É o antes, para dar coragem, e é o depois, para reanimar. Sim, agora é o meu café, aqui de casa. Mas havia o teu. que era mágico. Tirado daquela cafeteira italiana achada em ferro velho visitado dia daqueles, pela estrada, por acaso. Mexias na máquina e, por incrível que pareça, tínhamos café espresso (sim, com s, italiano). E gostavas de me servir. Era tão nosso aquilo tudo. Acho que é ainda, porque eu soube, sim, não apenas saborear nossos cafés, como também cada segundo daqueles momentos que vivemos. Sem desperdícios.

Hoje ainda tenho meu café. Mas tu és agora todo ausência. Um oco cheio de ecos que se confundem às vezes: teu abraço envolvente, nossos silêncios, nossas mãos dadas, pequenos nadas que eram tudo o que tínhamos, riqueza que sempre soubemos reconhecer. Nos primeiros tempos, falávamos abertamente de amores, da sorte que era viver alguma coisa intensa, arrebatadora, extrema e, ao mesmo tempo, tão cheia de paz. Depois, não sei exatamente quando, passamos a evitar o assunto. Eram apenas nossos olhares, uma pressão nas mãos, um toque a mais nos abraços e éramos, enfim, cúmplices. E, como dizias, éramos nós dois, e o resto era apenas o resto. E o café? Ah, voltando ao ponto, sempre o café: havia o de Congonhas, das chegadas e partidas; o do Pátio do Colégio, lá no Museu; o daquela cafeteria: rodávamos quilômetros para ir até lá; e o nosso, sempre o nosso. 

Difícil lembrar, mas esquecer seria muito pior. Na angústia, imaginar o nada onde te escondes agora, e saber que lá me faço presente, por certo que sim. E desta certeza, concluo que por lá, naturalmente, há café. E quanto ao resto? Ah, simplesmente não interessa. Apenas nós dois e um bom café. O resto? O resto é o resto.