31 de janeiro de 2014

Revista Vida Brasil

Namoro em praia deserta

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014





Pois bem, tirando tudo isso, e mais a fantasia nossa de cada dia, a questão é que todos os eleitos pensam em ir, — confesse, até você! —, mas poucos são os escolhidos que efetivamente vão para a tal praia deserta.  Ah! Claro! Falo em praia deserta para namorar! Pescar? Não! Nada a ver com pescar. O cenário é praia deserta para namorar, certo?

Você já foi? Já namorou em praia deserta? Ainda sonha com isso? Ou você faz mais o meu gênero: o de uma criatura absolutamente urbana, que ama barulho de automóveis, buzinas, multidão que leva tudo pela frente, agitação, asfalto, céu sem estrelas, muitos prédios, muita fumaça, poluição! Nenhum desses aspectos do urbano, considerados terríveis pela maioria das pessoas, me incomoda. Bem ao contrário: eu simplesmente adoro tudo isso. Tanto que não me atrai viajar, a não ser que seja para outra cidade. E, de preferência, outra cidade bem maior que a minha. Com muita gente, com muito asfalto, com muita fumaça, com muito barulho, com muito stress, com muito de tudo isso!
Mas, como diziam os antigos, a boca fala, mas não paga; o homem põe, mas deus dispõe, e outros ditados menos politicamente corretos. Não é que eu fui convidada para passar uns dias numa praia deserta? Juro! Aconteceu comigo. Até ia escrever que foi com uma amiga minha. Dane-se, agora saiu. Já escrevi que foi comigo mesmo que aconteceu essa história. E me pegou de surpresa, porque era ainda na tal fase de começo de namoro.
Vocês devem saber como é começo de namoro. Não se pode ter sinceridade grau dez nesta fase. É preciso controlar o gênio, especialmente um gênio do cão como é, francamente, o meu. Pensa-se sempre que o outro vai morrer quando souber que a gente odeia comer o que ele come, que a gente odeia aquelas músicas chatas, que a gente detesta tal ou qual criatura, que a gente não suporta aquela pessoa tão simpática, nem aquela outra tão boazinha, que a gente não leu e não gostou do livro aquele. Enfim, descobre-se que conviver com enormes diferenças não é nada! Quero ver é conviver com profundas divergências. Em início de namoro então! Mas vocês, caros leitores, vocês todos sabem bem do que estou falando.  Não sabem? Início de namoro é um pesadelo! Trocar de namorado então! Trocar de namorado, depois de algum tempo, é terrível! Dá uma canseira danada! Mas às vezes acontece. E aconteceu comigo.
Bem, justamente nessa fase de namorado novo, fase de amaciar, fase de muita delicadeza, de muita gentileza, o homem me veio com essa história de praia deserta. Gente! Eu quis morrer. Por nada deste mundo me passaria pela cabeça levar a sério um convite para namorar em praia deserta! Eis-me diante de um grande dilema. Ou decepcionava o namorado, dizendo que não queria saber de praia deserta coisa nenhuma, ou... Bem, cedi, e pensei comigo: seja o que deus quiser.
Decisão tomada, aceitei o convite e, com muito jeitinho, foi interrogando a criatura, a fim de saber o que eu deveria levar comigo para o tal lugar encantado que ele havia descoberto  para nós. E quanto mais eu arrancava dele referências sobre o tal lugar, mais me apavorava com a ideia de ir namorar no fim do mundo. Fim do mundo, sim! O sujeito queria me levar para o fim do mundo!
Eu teria de viajar mais de mil e duzentos quilômetros. Chegar de madrugada em Guarulhos e então viajar até uma cidade para lá do Trópico de Capricórnio. Depois de chegar a tal cidade e pegar a chave de uma casa de pescador — Não era barraca, então! Ave Maria! Escapei do acampamento! — teríamos de voltar para a estrada e continuar a viagem. Depois desse bom pedaço de chão, bem adiante do núcleo de civilização onde vivia o japonês, locador da tal casa de pescador, teríamos de pegar um desvio e seguir — por uma estrada de chão batido!  — tão estreita que por ela não se cruzavam dois carros, até o lugar onde havia um estacionamento.
Estacionamento? Para que estacionamento? — perguntei. — Simples, ele disse — tudo é “simples” para os homens! — a praia fica entre dois rochedos e carros não entram lá. Vamos a pé. E teremos de levar tudo. A casa fica no alto da serra do mar, em meio à mata nativa.
Ai, meu deus! O raio da casa fica bem no fim do mundo, pensei. E a tal casa “de pescador” fica no alto. Ele disse “no alto” da serra do mar e no meio do mato!  Pensei comigo que era uma sorte só existir o tal do MSN para namorar a distância. Vocês já namoraram pelo MSN? Apenas mensagens de texto trocadas entre conexões discadas. Isso parece coisa do século passado, mas nem faz tanto tempo assim, namorava-se trocando mensagens tecladas. Arcaico, não é mesmo? Mas foi uma sorte. Hoje, em tempos de Skype, eu não teria conseguido esconder todas as reservas com que recebera o convite para ir namorar numa “praia deserta”.
Reservas? Bem, as reservas viraram quase pânico quando ele me disse que eu só levasse o mínimo de bagagem. “Não se preocupe com isso. Eu cuido de tudo”. Ora, qualquer mulher entra em pânico com essa frase! De tudo? Mas como ele sabe o que é “tudo” para uma pessoa nada despojada como eu? O que mais me atrai nesta vida de cidade é justamente o fato de ela permitir que a gente não precise se despojar de certos hábitos. Tudo se tem ao alcance da mão! Tudo fica perto, e até o tempo é o nosso, pois não prevalece o dia sobre
a noite. Escolhe-se a hora de viver o tempo na cidade, e espero viver para ver o dia em que sempre será dia, por 24 horas. Lugares afastados, contudo, são moldados pela natureza, e as regras dessa natureza estão em toda parte, sem artificialismos. É tudo muito solene, muito formal, muito obediente ao clima. Na cidade, posso ficar em casa sem nem mesmo olhar pela janela, apenas lendo, escrevendo, estudando, bebendo café, eu e meus livros. Ninguém vem sem ser convidado. A cidade impõe uma reserva natural até mesmo aos abusados que gostam de puxar assunto ou fazer visitas. A cidade, e só ela, pode nos isolar mais do que qualquer praia ou ilha deserta. Para quem ama solidão, nada melhor que se esconder numa grande cidade.
Mas voltemos à praia deserta.
Bem, a decisão estava tomada. Eu já sabia para onde ia e o que levaria comigo: apenas o mínimo de coisas. Não tive coragem de dizer que não iria. Era melhor dar um crédito ao namorado novo que me contrariava, mas, afinal, garantia que eu ia gostar do lugar.  Claro, ele garantia. Eu não. Já me via comida viva por mosquitos, imaginava os bichos, talvez até cobras, sapos, insetos, grilos a noite toda, talvez chovesse, talvez não houvesse chuveiro quente... Ai, meu deus! Será que eu sobreviveria?
Bem, para variar, eu estava completamente errada. E ele, como sempre, tinha toda razão.
A começar pelo começo. 

Cheguei de madrugada no aeroporto, e o namorado já estava lá desde cedo.  Não só estava lá, como ainda lembrou-se de me levar direto para tomar café, pois sabe que eu não fico sem café, nem sem coca-zero, nem sem uma série de outros venenos urbanos. Ponto para ele.
No estacionamento, carro abastecido e todo revisado. — O diabo do homem não esquece nada, pensei. — Tudo preparado para viajar sem surpresas. Eu ia observando e anotando esses detalhes mentalmente. Naturalmente ele não se esquecera da câmera fotográfica que passou às minhas mãos. A cidade não ficava muito longe, e precisávamos chegar lá em horário comercial. Para evitar canseiras, pernoitamos pelo caminho, com direito a um jantar caprichado. A coisa ia bem, pensei. Ao chegarmos à cidade, ele não demorou a orientar-se e achar o tal senhor japonês, com o qual pegou a chave da “casa de pescador”. Depois fomos a um supermercado, e ele lembrou-se de tudo, como sempre. Seguimos viagem. A paisagem ia mudando rapidamente. Em alguns trechos era possível ver um mar calmo, que parecia um rio;  outros eram simplesmente soberbos. 
Então ele me mostrou uma placa não muito grande. Creio que pouca gente enxerga. Ela indicava um caminho que nem mesmo se podia chamar de estrada. 
Entramos por ali, e a paisagem tornou-se deslumbrante. A mata nativa era cheia de flores, samambaias, plantas de uma beleza espantosa que se combinavam entre si, de sorte a fazer pensar num projeto de jardinagem. O caminho era estreito e parecia estreitar-se mais ainda na medida em que avançávamos. Paramos num mirante. A vista inesquecível de um mar escandalosamente azul me deixou quase sem fôlego.  Achei que não havia lente capaz de registrar tudo aquilo. Muito devagar, fomos percorrendo os treze quilômetros que nos levaram até o estacionamento.
No porta-malas do Possante (nome do carro do namorado, comprado para tornar possível esta viagem, aliás) outra surpresa: uma grande mala com tudo o que se possa imaginar para facilitar a vida. O homem não se esqueceu de nada! Levou roupa de cama, mesa e banho, até produtos de higiene pessoal, e não deixou de lado nem repelente de mosquitos, nem filtro solar. Pensou em tudo. Inclusive em fósforos e velas. Meu café, coca, guloseimas, fora as compras que fizéramos no supermercado da cidade. Deixamos o Possante no tal estacionamento e tomamos a trilha que levava até a praia. O lugar era mesmo tudo aquilo. Difícil imaginar mais cores, mais luz e paisagem mais bela. 
Entramos em um pedaço de praia com não mais de dez metros de largura. Esta estreita faixa de areia, contudo, também não tinha nem cem metros de comprimento. A areia dourada fazia uma curva de 180 graus em direção ao mar, ou melhor, de uma água verde azulada, transparente, sem ondas, que brilhava como cristal, e que se limitava à esquerda e à direita por dois enormes rochedos, parte da própria serra que, naquele ponto, entrava mar adentro. Em frente ao mar, a serra coberta de mata.
Havia algumas casas escondidas por ali. Uma, porém, bem ao alto, da qual se podia ver apenas a varanda, chamava a atenção de quem olhasse para cima. Era preciso subir. Uma subida que não foi difícil, contudo, pois havia degraus de pedra ao longo da mata,  esforço compensado pela exuberante beleza do lugar.
Essa casa foi outra surpresa. Se era mesmo uma casa de pescador eu não sei. Sei que era bem mobiliada, tinha uma suíte, um quarto e banheiro extra, sala, cozinha, televisão, geladeira, fogão e até micro-ondas. Havia copos, pratos, panelas e talheres. Claro que havia luz elétrica e chuveiro quente. E isso sem contar a varanda com vistas para o mar, com direito a nascer do sol, a entardecer, com direito a luar e, ainda por cima, com direito ao namorado, um sujeito cujo passatempo favorito é me contrariar o tempo todo.
Aliás, ele continua me contrariando. Até hoje!

Autor: Maristela Bleggi Tomasini