31 de janeiro de 2014

Revista Vida Brasil

PENSANDO BEM...

domingo, 30 de junho de 2013

Inusitada - É que tem dessas coisas. Pequenos imponderáveis que a gente registra; porque não é apenas de grandezas que a vida é feita. Somos todos cotidianos. Querendo ou não, uma boa dose de surpresa existe sempre por aí, perdida nas nossas rotinas, desviada de nosso olhar: voltado sempre para o próximo instante, a próxima hora, a próxima obrigação a ser cumprida. Qualquer hora, e compro prendedores de roupa. Depois saio por aí enfeitando as árvores, pondo brincos em suas folhas. 

Qualquer hora, quando eu tiver tempo.
Qualquer hora, quando eu me sentir menos assim.
Menos o quê?
Ah! Preterida. Preterida?
Pois é. Bem que um "f" nesta palavra faria toda a diferença...
Esforço
Eu me esforço bastante para ser assim... Como se diz? Acho que ajustada. A-jus-ta-da. Será mesmo? Devo ter educação, boas maneiras, sorrir, falar baixo, fazer de conta que não vejo tudo o que vejo, que não ouço tudo o que ouço, que não sei nada de tudo quanto eu sempre soube, que não ligo, que não dói, que não sinto. Enfim, faz de conta que não sou eu, que nem sei de mim. Posso mesmo ser este papel que decora a parede, onde tem um prego fincado bem fundo, para que ali se pendure um aviso: FECHADO. 
Um Papel
E meus olhos não fugiam do pequeno papel dobrado deitado ao chão lado a lado ao cigarro que alguém fumou até além do fim. E deu-me tamanha vontade de desdobrar e de ler. Fiquei perguntando aos tais botões, que devo ter de meus, se não havia alguma coisa ali escrita, e que a água lavaria tal e qual batismo místico, e que algum gari varreria, tal e qual fosse lixo, e que lixo bem era, certamente. E se houvesse ali algo escrito? Pudera! Que houvesse por certo algum recado, bilhete, endereço, nota, quem sabe, um abraço uma dedicatória, uma perda... Ah, quantas dessas notas irrecuperáveis não se desperdiçam ao longo da vida, e que uma chuva não leva, e que um gari não varre e que eu não juntaria por comodidade, por inspiração, por quereres de mistérios que gosto de inventar assim. Por nada.
Contra o fundo azul
É tão simplesmente bonito sentir apenas as cores e seu impacto sobre o fundo dos olhos. O azul purificado de um dia luminoso e o rosa matizado de branco e de maravilha, mais o escuro dos troncos e... pronto! Irresistível. É preciso fotografar e torcer pela fidelidade da lente que introduz a eternidade do efêmero, que prolonga o prazer de perceber as coisas assim, por nada, por puro acaso. Na paisagem, na asa de um inseto, no reflexo fugidio provocado pelo vidro de uma janela que bate com o vento, nesses pequenos nadas que não contam, mas que humildemente compõe uma parte tão pouco perceptível da vida. 
Contornar é ótimo. Pois é. O gato subiu no telhado, me engana que eu gosto, eu não tinha escolha, nem alternativa, eu não queria, mas. Manda quem pode, obedece quem tem juízo, ou quem precisa, ou mesmo quem quer, mas não assume. Tirar o corpo fora é possível, sim, mas sempre se deixa alguma coisa na reta, contando com fato de que os farrapos comos quais acobertamos nossas desculpas não deem margem a boatos do tipo que anuncia, por exemplo, a nudez do rei. Ah! Como a linguagem permite essas dubiedades, e como esses discursos têm se tornado assombrosos, ao menos do ponto de vista das coisas ditasrepublicanas. É notório o quanto todos têm se tornado sutilmente respeitosos, e o quanto a coerência anda em alta. Difícil é engolir e digerir os sapos & cobras que nos são servidos nesses banquetes de delicadeza, nessas considerações alinhavadas com tanta doçura. Eu me sinto lisonjeada por merecer tantas satisfações. Eu até tenho conseguido fingir bem direitinho que acredito piamente em tudo quanto me dizem. Alguma dúvida?
Convívio
Quase sempre acabamos transformando uma conversa numa disputa, depois numa briga, depois num mal-estar que perdura por dias, até que cedemos novamente. Ruim por perto, ruim também quando longe, porque sinto falta de alguma coisa nele que nem sei direito o que poderia ser. Nunca soube e acho que nunca vou saber. Ele também, eu acho. Presumo que soframos os dois como doidos cada vez que acontece uma briga que nos coloca um de cada lado. Contudo, de longe, continuamos sempre a nos espreitar reciprocamente, até que, devagar, um poupando o ego do outro, cuidadosamente, nos reaproximamos utilizando até uma linguagem cerimoniosa. Depois cedemos, para lamber feridas e recompor vaidades.

Cogumelos

Eles nasceram assim. Tão perto, que me atentaram. Então fotografei e documentei os cogumelos do Parque da Redenção. Tão perto! Nasceram praticamente colados! Este parque é cheio desses mistérios, de coisas e pessoas muito estranhas com as quais a gente se depara sem esperar. É um lugar onde os imponderáveis abundam... — Que frase mais pedante, céus! — Só que me deu vontade de escrever assim, bem assim, por desaforo, por derrisão, para mexer com a paciência do leitor ocasional, que vem aqui sem saber por que, e depara-se com essas manifestações tão inesperadas. Na falta de coisa melhor, nada como sair em busca de mistérios. Nem que sejam assim, bem singelos, simplórios ou, melhor dizendo, à maneira dos pernósticos: prosaicos. Pensei na hora em arrancá-los, tomar posse deles, sentir nas mãos seu estofo macio, que lembra a borracha que apaga o grafite. Pensei na hora em cheirá-los, e lembrar-se daquele leve odor de mofo de livros, que eu amo sentir. Pensei na hora em comê-los talvez, mas deu-me dó separá-los, desgrudá-los um do outro, só pela vaidade de ser mais forte, e de dispor de poder para tanto. Ponderei essas coisas todas. Meu cérebro é cheio dessas bobagens inconfessáveis, que só não são pura doidice pela imensa elasticidade do conceito de literatura. Qualquer bobagem que a gente escreva pode ser literatura. A pós-modernidade é tolerante, e as bienais proliferam. Por que não proliferar então os cogumelos geminados? Por que não fotografá-los? Afinal, são bonitos e têm a tal da atitude. Atitude? Sei lá. Deve ser algo assim o que eles têm.
Cidades
Cada uma sendo do jeito que é. É certo que se pode olhar para elas a partir de dados que dizem tudo: pode-se saber quantos moram nela, o que fazem, quanto ganham, se há carros, aeroportos, se há rios, se há mares, se há velhos, jovens, adultos, se os há, e quantos há de cada um. Mas nada fala tanto da cidade quanto nosso olhar de ver, quando se aprende a atentar, não para as coisas mensuráveis e quantificáveis, mas para esses dados avulsos, essas coisas soltas, esses pequenos grandes achados que se inscrevem em muros, paredes, calçadas, e que são feito tatuagens. Dessas coisas únicas, que não se repetem: marcas individuais que definem uma cidade dentre tantas e tantas outras.
Fluidos
Com a primeira semivogal tonalizada, como deve ser. Fluidos. Lembro-me de quando ouvi pela primeira vez esta palavra aplicada por um espiritista dado a discursos sobre as tais estranhas forças que nos cercam. Tudo é cheio de forças — dizia ele — de fluidos, de emanações, de energias que se deslocam pelo espaço, mesmo estando fora do espaço como se entende espaço. Contingentes, imprecisas, sempre refugindo ao alcance de nossos parcos sentidos. Criança ainda, aquilo impressionou-me profundamente, acossou-me a imaginação, e fiquei a me representar os tais fluidos pelo espaço, à deriva, formando estranhos desenhos ainda mais leves e sutis que aqueles que eu costumava flagrar nas nuvens. Dei-me conta de que imaginava os tais fluidos do espiritista como algo assim: uma sutilíssima fumaça que desenha formas abstratas pela paisagem, irradiando luares, vibrações, assombros. Pensamento consolador. Como qualquer verdade que se oponha a esse cotidiano prosaico que nos esmaga com sua retórica precisa e seca. 
Frases Feitas
Quando se diz que se faz de tudo, ou qualquer coisa, ou quando se diz que quanto mais se reza mais assombração aparece; e quando o Roque diz que tem dia que é noite, penso em todas as frases feitas que tenho feito e desfeito ultimamente, rosário desfiado de predições que se debulha, tipo dia de muito véspera de pouco, mais vale não ter que ter e perder, e todas essas outras bobagens, miudezas, coisas pequenas, mas, verdade é, afinal de contas, que manda quem pode obedece quem quer.
Ausências & Presenças
Talvez não seja exatamente o que pensamos uma ausência. Há outros onipresentes a quem designamos um exílio emocional tão determinante que jamais se fazem presentes e, ainda que estejam por perto, sua ausência é sempre absoluta. Nascem mortos, ou se morrem, ou os matamos nós, dolosa ou culposamente. Outros dentre os outros são sempre esquecidos, porque nunca chegaram a ser lembrados, a não ser de modo fugidio e, não fossem agendas e lembretes, não tomavam existência nem corporeidade nunca. Até que se desejaria não os esquecer, até que se desejaria, por delicadeza ou complacência, lembrá-los mais vezes, só que, ainda assim, nos fogem, nos escapam, e nada deles deixa rastro de memória que nossa sensibilidade possa capturar, indiferentes que são. Muito iguais, nunca chegaram a tomar corpo e assim ficaram, para sempre fragmentados. Outros há, todavia, cuja presença é tão intensa que já fazem parte de nós, presentificam-se em nosso interior, ficam sempre ali e de tal forma, e com tamanha persistência, que viram um pouco outros eus da gente também. E, no fim, nos acostumamos com suas presenças que ausência alguma é capaz de esmorecer. Deixam de ser outro e passam a ser um pouco a gente mesmo. Ou a gente mesmo vira esse outro lá por dentro. O que não sei dizer é se isso é assim mesmo ou só impressão minha.

E me virás como? Singular ou todo cheio de plurais, a desafiar-me as mágoas, como quem espreita minha intimidade? Não sei. Apenas estarei lá, fugindo ao óbvio que nos ameaça, recomeçando o final, desde o princípio, quando éramos apenas o verbo. Este, uma vez carne, conheceu então a dor e o silêncio.
Descobri que gosto de me reler de vez em quando. Estava folheando essas páginas, brincando com o cursor para cima e para baixo, e me relia. Tentava lembrar-me de como era eu mesma antes de ontem. De como os dias passam e do quanto de nós fica pelas passagens. E pensava nessas mesmas passagens, que são largas, estreitas, escuras, claras, de todo jeito, e que também são lentas, podem ser rápidas, por vezes tormentosas, a vida levando a gente de arrasto. Passa, amanhece, os arranhões dão conta de que ontem foi ontem, e que ontens talvez se escondam nos nossos amanhãs. A vida deve ser feita de corredores e de relógios, de tensões e de acontecimentos. O que não se sabe bem é quando é para sempre ou para nunca mais.
Relatividade
Toda nova racionalidade traz consigo uma nova estética. O Bom, o Justo e o Belo, tão clássicos, ensejam hoje grandes discussões, relativizam-se, descompartimentam-se. Percebem-se fragmentos de um real que se abstrai. Tudo é muito relativo. Sei. Inclusive esta relatividade toda.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini

Revista Vida Brasil

Namoro em praia deserta

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014





Pois bem, tirando tudo isso, e mais a fantasia nossa de cada dia, a questão é que todos os eleitos pensam em ir, — confesse, até você! —, mas poucos são os escolhidos que efetivamente vão para a tal praia deserta.  Ah! Claro! Falo em praia deserta para namorar! Pescar? Não! Nada a ver com pescar. O cenário é praia deserta para namorar, certo?

Você já foi? Já namorou em praia deserta? Ainda sonha com isso? Ou você faz mais o meu gênero: o de uma criatura absolutamente urbana, que ama barulho de automóveis, buzinas, multidão que leva tudo pela frente, agitação, asfalto, céu sem estrelas, muitos prédios, muita fumaça, poluição! Nenhum desses aspectos do urbano, considerados terríveis pela maioria das pessoas, me incomoda. Bem ao contrário: eu simplesmente adoro tudo isso. Tanto que não me atrai viajar, a não ser que seja para outra cidade. E, de preferência, outra cidade bem maior que a minha. Com muita gente, com muito asfalto, com muita fumaça, com muito barulho, com muito stress, com muito de tudo isso!
Mas, como diziam os antigos, a boca fala, mas não paga; o homem põe, mas deus dispõe, e outros ditados menos politicamente corretos. Não é que eu fui convidada para passar uns dias numa praia deserta? Juro! Aconteceu comigo. Até ia escrever que foi com uma amiga minha. Dane-se, agora saiu. Já escrevi que foi comigo mesmo que aconteceu essa história. E me pegou de surpresa, porque era ainda na tal fase de começo de namoro.
Vocês devem saber como é começo de namoro. Não se pode ter sinceridade grau dez nesta fase. É preciso controlar o gênio, especialmente um gênio do cão como é, francamente, o meu. Pensa-se sempre que o outro vai morrer quando souber que a gente odeia comer o que ele come, que a gente odeia aquelas músicas chatas, que a gente detesta tal ou qual criatura, que a gente não suporta aquela pessoa tão simpática, nem aquela outra tão boazinha, que a gente não leu e não gostou do livro aquele. Enfim, descobre-se que conviver com enormes diferenças não é nada! Quero ver é conviver com profundas divergências. Em início de namoro então! Mas vocês, caros leitores, vocês todos sabem bem do que estou falando.  Não sabem? Início de namoro é um pesadelo! Trocar de namorado então! Trocar de namorado, depois de algum tempo, é terrível! Dá uma canseira danada! Mas às vezes acontece. E aconteceu comigo.
Bem, justamente nessa fase de namorado novo, fase de amaciar, fase de muita delicadeza, de muita gentileza, o homem me veio com essa história de praia deserta. Gente! Eu quis morrer. Por nada deste mundo me passaria pela cabeça levar a sério um convite para namorar em praia deserta! Eis-me diante de um grande dilema. Ou decepcionava o namorado, dizendo que não queria saber de praia deserta coisa nenhuma, ou... Bem, cedi, e pensei comigo: seja o que deus quiser.
Decisão tomada, aceitei o convite e, com muito jeitinho, foi interrogando a criatura, a fim de saber o que eu deveria levar comigo para o tal lugar encantado que ele havia descoberto  para nós. E quanto mais eu arrancava dele referências sobre o tal lugar, mais me apavorava com a ideia de ir namorar no fim do mundo. Fim do mundo, sim! O sujeito queria me levar para o fim do mundo!
Eu teria de viajar mais de mil e duzentos quilômetros. Chegar de madrugada em Guarulhos e então viajar até uma cidade para lá do Trópico de Capricórnio. Depois de chegar a tal cidade e pegar a chave de uma casa de pescador — Não era barraca, então! Ave Maria! Escapei do acampamento! — teríamos de voltar para a estrada e continuar a viagem. Depois desse bom pedaço de chão, bem adiante do núcleo de civilização onde vivia o japonês, locador da tal casa de pescador, teríamos de pegar um desvio e seguir — por uma estrada de chão batido!  — tão estreita que por ela não se cruzavam dois carros, até o lugar onde havia um estacionamento.
Estacionamento? Para que estacionamento? — perguntei. — Simples, ele disse — tudo é “simples” para os homens! — a praia fica entre dois rochedos e carros não entram lá. Vamos a pé. E teremos de levar tudo. A casa fica no alto da serra do mar, em meio à mata nativa.
Ai, meu deus! O raio da casa fica bem no fim do mundo, pensei. E a tal casa “de pescador” fica no alto. Ele disse “no alto” da serra do mar e no meio do mato!  Pensei comigo que era uma sorte só existir o tal do MSN para namorar a distância. Vocês já namoraram pelo MSN? Apenas mensagens de texto trocadas entre conexões discadas. Isso parece coisa do século passado, mas nem faz tanto tempo assim, namorava-se trocando mensagens tecladas. Arcaico, não é mesmo? Mas foi uma sorte. Hoje, em tempos de Skype, eu não teria conseguido esconder todas as reservas com que recebera o convite para ir namorar numa “praia deserta”.
Reservas? Bem, as reservas viraram quase pânico quando ele me disse que eu só levasse o mínimo de bagagem. “Não se preocupe com isso. Eu cuido de tudo”. Ora, qualquer mulher entra em pânico com essa frase! De tudo? Mas como ele sabe o que é “tudo” para uma pessoa nada despojada como eu? O que mais me atrai nesta vida de cidade é justamente o fato de ela permitir que a gente não precise se despojar de certos hábitos. Tudo se tem ao alcance da mão! Tudo fica perto, e até o tempo é o nosso, pois não prevalece o dia sobre
a noite. Escolhe-se a hora de viver o tempo na cidade, e espero viver para ver o dia em que sempre será dia, por 24 horas. Lugares afastados, contudo, são moldados pela natureza, e as regras dessa natureza estão em toda parte, sem artificialismos. É tudo muito solene, muito formal, muito obediente ao clima. Na cidade, posso ficar em casa sem nem mesmo olhar pela janela, apenas lendo, escrevendo, estudando, bebendo café, eu e meus livros. Ninguém vem sem ser convidado. A cidade impõe uma reserva natural até mesmo aos abusados que gostam de puxar assunto ou fazer visitas. A cidade, e só ela, pode nos isolar mais do que qualquer praia ou ilha deserta. Para quem ama solidão, nada melhor que se esconder numa grande cidade.
Mas voltemos à praia deserta.
Bem, a decisão estava tomada. Eu já sabia para onde ia e o que levaria comigo: apenas o mínimo de coisas. Não tive coragem de dizer que não iria. Era melhor dar um crédito ao namorado novo que me contrariava, mas, afinal, garantia que eu ia gostar do lugar.  Claro, ele garantia. Eu não. Já me via comida viva por mosquitos, imaginava os bichos, talvez até cobras, sapos, insetos, grilos a noite toda, talvez chovesse, talvez não houvesse chuveiro quente... Ai, meu deus! Será que eu sobreviveria?
Bem, para variar, eu estava completamente errada. E ele, como sempre, tinha toda razão.
A começar pelo começo. 

Cheguei de madrugada no aeroporto, e o namorado já estava lá desde cedo.  Não só estava lá, como ainda lembrou-se de me levar direto para tomar café, pois sabe que eu não fico sem café, nem sem coca-zero, nem sem uma série de outros venenos urbanos. Ponto para ele.
No estacionamento, carro abastecido e todo revisado. — O diabo do homem não esquece nada, pensei. — Tudo preparado para viajar sem surpresas. Eu ia observando e anotando esses detalhes mentalmente. Naturalmente ele não se esquecera da câmera fotográfica que passou às minhas mãos. A cidade não ficava muito longe, e precisávamos chegar lá em horário comercial. Para evitar canseiras, pernoitamos pelo caminho, com direito a um jantar caprichado. A coisa ia bem, pensei. Ao chegarmos à cidade, ele não demorou a orientar-se e achar o tal senhor japonês, com o qual pegou a chave da “casa de pescador”. Depois fomos a um supermercado, e ele lembrou-se de tudo, como sempre. Seguimos viagem. A paisagem ia mudando rapidamente. Em alguns trechos era possível ver um mar calmo, que parecia um rio;  outros eram simplesmente soberbos. 
Então ele me mostrou uma placa não muito grande. Creio que pouca gente enxerga. Ela indicava um caminho que nem mesmo se podia chamar de estrada. 
Entramos por ali, e a paisagem tornou-se deslumbrante. A mata nativa era cheia de flores, samambaias, plantas de uma beleza espantosa que se combinavam entre si, de sorte a fazer pensar num projeto de jardinagem. O caminho era estreito e parecia estreitar-se mais ainda na medida em que avançávamos. Paramos num mirante. A vista inesquecível de um mar escandalosamente azul me deixou quase sem fôlego.  Achei que não havia lente capaz de registrar tudo aquilo. Muito devagar, fomos percorrendo os treze quilômetros que nos levaram até o estacionamento.
No porta-malas do Possante (nome do carro do namorado, comprado para tornar possível esta viagem, aliás) outra surpresa: uma grande mala com tudo o que se possa imaginar para facilitar a vida. O homem não se esqueceu de nada! Levou roupa de cama, mesa e banho, até produtos de higiene pessoal, e não deixou de lado nem repelente de mosquitos, nem filtro solar. Pensou em tudo. Inclusive em fósforos e velas. Meu café, coca, guloseimas, fora as compras que fizéramos no supermercado da cidade. Deixamos o Possante no tal estacionamento e tomamos a trilha que levava até a praia. O lugar era mesmo tudo aquilo. Difícil imaginar mais cores, mais luz e paisagem mais bela. 
Entramos em um pedaço de praia com não mais de dez metros de largura. Esta estreita faixa de areia, contudo, também não tinha nem cem metros de comprimento. A areia dourada fazia uma curva de 180 graus em direção ao mar, ou melhor, de uma água verde azulada, transparente, sem ondas, que brilhava como cristal, e que se limitava à esquerda e à direita por dois enormes rochedos, parte da própria serra que, naquele ponto, entrava mar adentro. Em frente ao mar, a serra coberta de mata.
Havia algumas casas escondidas por ali. Uma, porém, bem ao alto, da qual se podia ver apenas a varanda, chamava a atenção de quem olhasse para cima. Era preciso subir. Uma subida que não foi difícil, contudo, pois havia degraus de pedra ao longo da mata,  esforço compensado pela exuberante beleza do lugar.
Essa casa foi outra surpresa. Se era mesmo uma casa de pescador eu não sei. Sei que era bem mobiliada, tinha uma suíte, um quarto e banheiro extra, sala, cozinha, televisão, geladeira, fogão e até micro-ondas. Havia copos, pratos, panelas e talheres. Claro que havia luz elétrica e chuveiro quente. E isso sem contar a varanda com vistas para o mar, com direito a nascer do sol, a entardecer, com direito a luar e, ainda por cima, com direito ao namorado, um sujeito cujo passatempo favorito é me contrariar o tempo todo.
Aliás, ele continua me contrariando. Até hoje!

Autor: Maristela Bleggi Tomasini

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