"Foi num dia de verão de 1947, ao passar em frente à Praça de Maio, pela Rua San Martin, na travessa do Município. Vinha distraído, quando de súbito ouvi uma campainha, uma campainha como de alguém que quisesse despertar-me de um sonho milenar. Eu caminhava, enquanto ouvia a campainha que tentava penetrar nos estratos mais profundos de minha consciência; ouvia-a, mas não a escutava. Até que, de repente, aquele som, ténue mas penetrante e obsessivo, pareceu tocar alguma zona sensível de meu eu, algum desses lugares em que a pele do eu é finíssima e de sensibilidade anormal: e despertei sobressaltado, como ante um perigo repentino e perverso, como se na obscuridade tivesse tocado com as minhas mãos a pele gelada de um réptil. Diante de mim, enigmática e dura, observando-me com todo o seu rosto, vi a cega que ali vendia bugigangas. Havia parado de tocar a sua campainha; como se a tivesse movido unicamente para mim, para despertar-me de meu insensato sono, para advertir-me que a minha existência anterior havia acabado, como uma estúpida etapa preparatória, e que agora deveria enfrentar a realidade. Imóvel, com o seu rosto abstracto dirigido para mim, eu paralisado como por uma aparição infernal mas frígida, ficamos assim durante esses instantes que não formam parte do tempo e dão acesso à eternidade. Tão logo minha consciência voltou a entrar na torrente do tempo, fugi."
SÁBATO, Ernesto. RELATÓRIO SOBRE CEGOS, cap. III da obra "Heróis e Túmulos" [1961]