9 de outubro de 2009

A Outra

Mas eu te entendo, sim. É que deve te doer, bem ali, na vaidade. Com certeza, deve te doer fininho, sim, e bem lá no fundo, saber que nenhum significado mais possuis, e que te restam agora apenas esses cordões para puxar, mesmo assim, a romperem-se um a um, nada mais existindo ali para te apossares, as zonas de pressão, que antes tinham algum efeito, a se fazerem insensíveis à tua presença, cada vez mais redundante e incômoda. Noites de solidão, dias de solidão, manhãs, tardes, enfim. Os olhares de simpatia, no máximo, onde se pode ler piedade. E o tempo passando. Conspiras, povoas o imaginário de amigos com pedidos sub-reptícios de ajuda e apoio. Indisfarçável o teu despeito. Repetes para ti mesma essas frases do tipo dar a volta por cima, autoconfiança, coragem, valeu a pena, mas... Mas. O espelho que te mostra outra pessoa, que aparece apenas em preto e branco. Como tua vida, que antes tinha alguma cor, embora pouca. Há quem viva de pouco, de esmolas, de conformidade. Consciência de quem nunca teve a medida do que sempre deu, e vive de adiar as despedidas. Triste, muito triste ser infeliz. Dá pra entender, sim. Eu te entendo. Anos e anos, décadas de dedicação e fidelidade à sombra de um cão, e ouvidos surdos ao teu desesperado ne me quitte pas. Tanto que até essas minhas palavras estão aqui, todas para ti, e todas a fazerem eco nesse teu imenso vazio.
Extraído do conto A Outra