23 de outubro de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

DA MINHA ESCRITA EM SI
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
Faço isso por pura provocação. Porque tenho andado atentada como nunca antes. Deve ser resultado dos ferros que me atravessaram as entranhas, dos anestésicos gerais, dos calmantes, das coisas invasivas que me entraram pelo corpo, como que buscando uma alma inexistente, abstrata, abstraída e fugidia como sorvete em dia de vento. Hoje meu percurso é solitário. Sem qualquer outro tema além da escrita. Porque se trata de um exercício de purificação.

Nunca fui centrada nem dada a seguir linhas que obedeçam a qualquer tipo de lógica. Nem gosto. Muito embora, por vezes, me entregue a essa prática assim profana, que pretende explicar coisas, pessoas, enredos, casos, descasos, etc. Daí me envolvo num tema qualquer, depois desenvolvo e no fim acabo por escrever alguma coisa que parece ter começo, meio e fim. Parece apenas, porque visto mais de perto é pura desculpa. É quando minto, e faço de conta que há uma lógica interna aqui dentro. Mas não há nenhuma nem nunca houve. Há só ecos longínquos que eu escuto por dentro e que, quando me permito ― que nem hoje ― saem e viram palavras assim, sem nexo, ou com o nexo que você quiser que elas contenham, atribuindo-lhes um sentido qualquer que faça sentido para você, para mim, para nós.
É tão bom fazer como agora. Deixar que as palavras se moldem à própria sonoridade do eco que escuto lá por dentro, no recente oco das minhas entranhas doídas e profanadas que ainda nem cicatrizaram. Que essas palavras se façam por si e em si, sem mais nada que não seja a própria força com que despertam na ponta dos dedos, ou do lápis. Pena o lápis. Gostava de escrever a lápis e ainda faço isso por conta da saudade que tenho daqueles... Eram verdes, sextavados, macios.... 4B, 6B, molengos e bem pretos. Borravam. Mas moldavam lindas palavras. Depois veio o desabituar e o tempo das teclas acomodou mãos e dedos na concórdia dessas máquinas silenciosas. Foram muitas mudanças, muitos regimes, muitas ditaduras. Gramaticais, de estilo, ortográficas, caleidoscópicas, contingentes, cegas, soturnas, desentendidas. Tudo isso representando um custo, um argumento do que deve ser assim ou assado, porque é assim que se faz, caso contrário não vale.
A conquista de uma liberdade anárquica tem seu preço. Ela passa pelo enfrentamento da severidade. Você conhece a severidade? Ela é cheia de escrúpulos, essas bolhas que nos deixa a água quente quando lava nossos pecados. Severidade é o filtro interno que a gente instala para não sair da casinha ortográfica, para não viajar nem mesmo no pensamento, para fazer tudo certo, inclusive com as vírgulas. Sou boa de vírgulas e travessões: uso-os para burlar a severidade. Enquanto ela se propõe a buscar meus erros ortográficos, eu decomponho a lógica da razão e encho páginas e páginas de delírios. Mas as vírgulas são empregadas corretamente, assim como os travessões nossos que estão no texto, santificadas sejam as vossas regras assim na ortografia como na sintaxe, amém... Amém, Jesus! ― Ah! Não! Amém Jesus fica horrível e, fora o santo nome em vão, gera cisma. ― Sinistro isso. Mas agora que escrevi vai ficar, porque meu pacto hoje é frear a tecla del, a delatora das palavras desusadas. Hoje estou de farra. De porre na escrita, dando escândalo em público, porque escondido eu sempre fiz assim.
Estou de mal com as coisas certas. Elas me cansaram. Excesso de clareza, excesso de lógica, excesso de tudo, inclusive de estupidez. Começa-se a dar aos personagens e às pessoas uma coerência que eles nunca tiveram. Isso apaixona, porque simplifica suas ações que se tornam lógicas. O resultado são personagens e leitores mutilados em sua dimensão mais profunda. Somos todos contraditórios, ora. Amamos e odiamos simultaneamente, gritamos em silêncio, recaímos em lugares comuns com a mesma facilidade com que acreditamos em presságios que, no fundo, não deixam de ser dados objetivos que nossa subjetividade, depravada, deforma e ajusta aos próprios desejos. Eleger uma linha de ação significa excluir todo o restante do plano. E eu não quero perder nada da vida, nem um só de seus pedacinhos, nem uma só de suas mais tediosas saudades. Não é o buliçoso movimento que me atrai. Não é esse dinamismo decadente e rápido que me fascina. Ao contrário, são os imensos vazios que gosto de percorrer, quadros monocórdios e tênues que se sobrepõe ao real como se foram tecidos com tênues fios de teias de aranha.
Sou inteira em cada um de meus fragmentos, como espelho estilhaçado que, depois de quebrado, descobre que sempre prescindiu de nexo. Talvez seja o mesmo com a escrita. Acredito piamente que ela se faça por si, ao comando de algum acaso que se esconde de mim feito pêlo teimoso que escapa da pinça e brilha depois na fotografia. Não vou me desculpar por isso tampouco. Nem por aquilo. Porque estou congestionada de palavras que não disse nem escrevi. Elas escoam como enchente, se infiltram no papel, condecoram páginas, respeitando apenas as margens. Não sei direito o que querem dizer, contudo, porque são palavreados de seitas, cheias de sentidos, de secretas insinuações que nenhum olhar pode conter ou emanar. Fazem sua própria história, criam suas impróprias rimas e saúdam estranhos que, aliás, nem sonham por que motivo seguem, com seus olhos, tais sequências repletas de insanidade, repletas desse imenso cansaço que me tira as forças e que me atira ao branco dessas páginas editadas sabe-se lá por qual combinação alquímica onde se infunde algum mercúrio chorado.
Essa é a minha escrita em si. Como acredito devesse ser sempre. Sem necessidade de fazer sentido ou de ajustar-se às necessidades e vicissitudes nossas de cada dia. Infelizmente nem sempre é assim, e há dias em que todas as coisas devem funcionar de acordo com as regras e as leis de um universo que expele os desajustados diferentes desafinados. Para tanto, restam os indesculpáveis. Palmas aos ajustados que lindamente vão apertando todos os parafusos frouxos que encontram pela frente. Até o fim, infinitamente, até que se fundam ao tecido da camisa de força que os sujeita.
Amanhã me ajusto, me normalizo, me curo. Mas amanhã. Não hoje. Não agora.

6 de outubro de 2012

4° Motivo da Rosa

"Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.
Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim."

Cecília Meireles

5 de outubro de 2012